A nova Marinha da Argélia Alexandre Reis RodriguesEntre 2005 e 2009, a Argélia, Marrocos, Tunísia e Líbia, no conjunto, foram responsáveis por 3% do total mundial de aquisições de armamento, um período em que o volume das importações em toda a África cresceu 62% em relação a 2000/2004. A Argélia, muito justamente mencionada em primeiro lugar, representou 89% do investimento total do conjunto norte-africano acima referido.
Como grande parte do financiamento foi direcionado para o reequipamento da Marinha, ramo onde, por regra, as aquisições de novas plataformas demoram no mínimo uma década, os resultados práticos do esforço feito estão agora a ficar à vista.
Quem não acompanha regularmente estes assuntos ficará surpreendido pela dimensão e qualidade do reequipamento naval e, certamente, intrigado sobre os possíveis propósitos estratégicos.1 O objetivo deste artigo é tentar perceber o enquadramento em que este processo foi concebido, já que, obviamente, é matéria que interessa a Portugal conhecer.
Como pontos de destaque, há a mencionar três programas de aquisição principais. Cinco novas fragatas (duas da classe MEKO, em construção na Alemanha, e três da classe C28 A2, em construção na China – o novo navio de assalto anfíbio de 8800 toneladas, construído em Itália (classe S. Giorgio) e já entregue à Marinha argelina (setembro de 2014) e dois novos submarinos (classe Kilo 636), um dos quais já entregue. Complementarmente, têm vindo a ser executados diversos programas de modernização de outras plataformas.
Numa análise operacional deste reequipamento, o primeiro aspeto que salta á vista, é a aposta feita na componente anfíbia, já que o novo navio vem em acréscimo de dois navios de desembarque de 2450 toneladas que foram sujeitos a um processo de modernização. No seu conjunto, os três navios poderão transportar e apoiar um elemento de desembarque de cerca de 800 efetivos, 50 veículos, seis lanchas de desembarque e oito helicópteros. São números de alguma forma importantes mas, como se sabe, uma capacidade anfíbia credível não se constrói apenas com números. Precisa também de qualidade o que, podendo estar na nova plataforma, dificilmente estará no pessoal se não houver garantia de apropriada especialização.
Se essa especialização existe ou não é algo que não se conseguiu apurar definitivamente, Segundo um estudo elaborado no âmbito do Center for Strategic and International Studies3, a Argélia não dispõe de fuzileiros mas a Global Security4 faz referência a um Batallion de Fuziliers Marins embora não lhe reconheça capacidade de assalto anfíbio. Esta limitação pode resolver-se num relativamente curto espaço de tempo mas, enquanto perdurar, exclui o emprego destes meios em operações exigindo perícias anfíbias em cenários de confrontação. Ou seja, ficam limitados a finalidades de natureza humanitária e simples transporte e apoio marítimo de tropas (funções essencialmente logísticas). Será muito estranho se esta situação não se alterar proximamente, mas o historial dos programas de reequipamento militar mostram várias inconsistências deste tipo. Veremos o que acontece desta vez.
O segundo elemento de destaque é o conjunto de cinco novas fragatas que juntando-se às três fragatas russas da classe Koni (entretanto também modernizadas) formarão uma força de superfície que revela uma ambição que vai bem para além do que é tradicional esperar da marinha de uma pequena potência em relação à defesa das suas costas e proteção dos seus interesses diretos no mar.
A Argélia apresenta o seu sistema de forças navais segundo a fórmula clássica (força submarina, força de superfície, força de ação aeronaval – helicópteros - e força de defesa costeira, incluindo esta última baterias de mísseis, artilharia de costa e forças de operações especiais). No entanto, uma leitura operacional da totalidade de meios disponíveis revela o potencial para a organização de uma capacidade de projeção de força que não existe nos outros países da região. Isto é, inclui para além do elemento de transporte e apoio do elemento de intervenção em terra, os elementos de escolta de superfície, subsuperfície e aérea (helicópteros embarcados).
Não obstante a Rússia continuar a ter um papel de fornecedor relevante, dominando a componente submarina (quer em novas construções, quer em modernizações das existentes)5 e o setor dos navios de superfície de pequena dimensão (Nanuchka e Osa II), para além das três fragatas atrás referidas (modernizações), este programa de reequipamento configura uma transição do modelo russo para um modelo mais ocidentalizado.
Esta opção merece destaque, porque dadas as limitações que enfrenta o setor de construção naval na Rússia, permite um modelo mais à altura dos desafios que se põem hoje no Mediterrâneo, quer em termos de segurança marítima, quer em termos de segurança regional. A primeira é, certamente, uma preocupação principal da Argélia - como país exportador de gás e petróleo e com planos para aumentar a sua produção - face ao objetivo de garantir o trânsito seguro do tráfego de navios tanques que crescerá. Na segunda perspetiva, avultam destacados, como preocupações de segurança, o problema da Líbia – onde vários portos estão sob o controlo dos rebeldes - seguido da instabilidade que ainda se vive na Tunísia (islamismo radical) e o problema do Saara Ocidental que representa um ponto de discórdia com Marrocos.
A postura regional que a Argélia dá sinais de querer adotar fica mais clara se atentarmos a uma recente conferência do ministro dos Negócios Estrangeiros (Ramtane Lamamra), em Washington (no CSIS), em que centrou o discurso à volta da ambição de que a Argélia passe a ser um país capaz de não só produzir segurança – estatuto que considera já ter uma vez que eliminou o extremismo - como também de exportar segurança. Os propósitos, então referidos pelo ministro, foram a continuação da luta contra o terrorismo, a procura de uma solução de reconciliação nacional na Líbia – objetivo para que a Argélia se considera mais qualificada do que qualquer outro país da região – e, finalmente, a resolução da crise que grassa no Sahel.
Para além destes propósitos, presume-se que estará também presente, embora não mencionada, a preocupação argelina de não permitir que a situação de vantagem que tem na região, como potência militar dominante, se altere no campo naval em consequência dos esforços de modernização a que Marrocos tem submetido a sua Marinha, incluindo novas fragatas (três fragatas multipropósito na Holanda e uma fragata FREMM em França) e quatro novos navios de patrulha oceânicos. Quer esta possível razão, quer a pretensão de protagonismo regional atrás referida, não poderiam deixar de passar por uma maior aposta naval.6 É mais um sinal de que as corridas aos armamentos navais não vão ficar confinadas, como se pensava inicialmente, à região Ásia/Pacífico. Vão ocorrer também aqui na nossa área próxima de interesse.
Depois de uma década de guerra civil extremamente violenta (150.000 mortos) a combater o islamismo radical, hoje faz sentido que a Argélia se preocupe hoje com a segurança numa dimensão regional. A questão que se lhe põe é complementar a estratégia que lhe permitiu escapar à onda de contestações associadas às “Primaveras Árabes” e ao regresso do islamismo - que combatem desde 1980 – com uma linha de ação que ajude a combater a instabilidade que se mantém na vizinhança próxima. Ao nível interno, malgrado enfrente os mesmos desafios políticos e sócio-económicos que despoletaram instabilidade nos vizinhos, a Argélia tem tido suficiente sucesso em aplacar os descontentamentos, reduzir as influências religiosas e manter os argelinos resignados, senão mesmo satisfeitos, com a sua situação apesar das imperfeições do regime.7
É este conjunto positivo de circunstâncias que permite agora avançar para um ambicioso programa naval que está a chamar a atenção internacional. O assunto não fica completo, no entanto, se, entretanto, não forem corrigidos alguns aspetos que, no passado, não permitiram uma avaliação sem pontos negativos e que, a persistirem, comprometerão a credibilidade de todo este processo. Estou a referir-me à avaliação que se fazia em 2010 no North African Military Balance e que considerava que o desempenho operacional em geral, a prontidão e o treino eram pobres («poor operational performance, overall readiness, training and equipment quality»). Este programa de reequipamento resolverá uma das vertentes da apreciação acima referida (equipment quality) mas falta ver como evoluirão os outros parâmetros de apreciação.
O desafio é grande por dois motivos. Primeiro, porque uma análise de anteriores programas - segundo os analistas - mostra que nunca foi bem resolvida a inconsistência resultante de uma alternância de prioridades entre o material e o pessoal, quando o recomendável seria uma aposta equilibrada nas duas vertentes.8 Até que ponto esta deficiência é reconhecida pelos atuais responsáveis é assunto que não está clarificado de momento. Segundo, porque com os novos meios vem um enorme desafio na área da formação do pessoal de operação e de manutenção, quer pelo salto tecnológico que acompanhará a entrada ao serviço das fragatas MEKO, quer pela diversidade de proveniência dos equipamentos e sistemas (cinco países: Alemanha, China, Itália, Rússia e Reino Unido).
Se estes desafios forem resolvidos, a Argélia, com este programa de reequipamento naval, introduzirá um elemento no equilíbrio de forças no Magrebe a que nenhum país da região ficará indiferente.
1 Contra a tendência, que se tem acentuado, de os países tornarem transparentes as suas políticas de defesa, nomeadamente através da publicação de livros brancos da defesa, a Argélia disponibiliza reduzida informação. Esta circunstância torna muito difícil conseguir um ponto de situação suficientemente seguro, porque as notícias e informações que aparecem em fontes abertas são frequentemente contraditórias e, regra geral, incompletas.
2 Construídas sob o desenho das P 22 Zulfiquar que foram fornecidas ao Paquistão, que adquiriu quatro segundo contrato assinado em 2006. Têm 123 metros de comprimento e 2800 toneladas de deslocamento. Embarcam um helicóptero em hangar. Estão classificadas como fragatas ligeiras mas alguns setores usam a designação de corveta, como é o caso do diagrama acima.
3 “The North African Military balance – Force Developments and Regional Challenges”, Anthony Cordsman and Aram Nerguizian (CSIS)(2010)
4
http://www.globalsecurity.org/military/ ... iliers.htm 5 A eventual opção por outro modelo ou proveniência de submarino iria tornar muito mais complexa a já difícil adaptação dos processos de formação do pessoal em resultado da entrada ao serviço de novos navios de superfície tanto mais porque o processo de formação na operação e manutenção de submarinos da classe Kilo encontra-se consolidado. Os dois primeiros submarinos da classe recebidos em 1983 foram adaptados para escola e treino do pessoal.
6 Esta situação está na linha de uma tendência geral de colocar uma maior ênfase no uso de poder militar com base em plataformas navais. Segundo a AMI International, estão previstos 800 mil milhões USD de investimentos globais em programas de reequipamento naval, nas próximas duas décadas.
7 “What’s next for Algeria?, 14 May 2014, CSIS Maghreb Roundtable. 8 Até ao final da década de oitenta, os investimentos foram canalizados quase exclusivamente para o material com óbvia negligencia da formação do pessoal. Entre o princípio da década de noventa e o início do século XXI, período em que o país esteve imerso numa feroz guerra civil, foi precisamente ao contrário. Apostou-se quase exclusivamente no pessoal com o prejuízo do material que ficou subfinanciado.
http://database.jornaldefesa.pt/crises_ ... lgeria.pdf