O drama Sírio
Alexandre Reis Rodrigues
Não existe de momento qualquer saída minimamente segura para a crise em que está envolvida a Síria. Passou o tempo em que um acordo com Assad para a instalação de um novo governo e a sua saída voluntária de cena se apresentava como tendo boas hipóteses de proporcionar uma solução razoável. Com a proliferação de grupos radicais islâmicos que combatem o regime – estando a ter, aliás, um papel determinante - a hipótese de um regime pós Assad liberto de jihadismo é cada vez mais remota. Não se pense, porém, que as dificuldades resultantes desse provável desfecho se confinarão às fronteiras sírias. Vão-se repercutir, direta ou indiretamente, por toda a região, nomeadamente, o Líbano, Turquia, Iraque, Jordânia e Israel, aumentando a instabilidade.
Agora, no entanto, existe um dado novo que pode influenciar os próximos desenvolvimentos. O reconhecimento pelos EUA de que terão sido usadas armas químicas, pelo menos em duas ocasiões. O assunto consta de um carta enviada pelo Presidente Obama ao Congresso, em que se fala de indícios de utilização, em escala limitada, de gás “sarin”. À luz de anteriores declarações do Presidente, o regime sírio passou uma “linha vermelha” que exigiria a intervenção dos EUA, mas essa recomendação, que seria o corolário lógico da posição inicialmente expressa pela administração americana, não consta da carta.
Não obstante, os serviços de informações de mais três Países (França, Israel e Reino Unido) reclamarem terem reunido as mesmas evidências, Obama mostra-se disposto a aguardar uma investigação independente conduzida pelas Nações Unidas, que será desencadeada tão cedo o regime sírio dê luz verde para avançar. Ganha assim algum tempo precioso sem pôr em risco a credibilidade do anúncio formal de que a violação da “linha vermelha” acarretaria consequências.
Entretanto, Obama vai avançando com algumas medidas que acalmarão os mais impacientes com a sua aparente inação e, ao mesmo tempo, tentam levar o Presidente Assad a ponderar o caminho a seguir, entre a possibilidade, agora mais próxima, de vir a sofrer uma intervenção externa que, de imediato, poria fim à“dinastia” Assad, ou aceitar a negociação da sua saída para instalação de um novo regime, a hipótese que melhor serviria a comunidade internacional. É sob essa perspetiva que deve ser interpretada a carta enviada ao Congresso e a decisão de estabelecer um núcleo inicial de um quartel-general, com cerca de 300 militares, na Jordânia. Esta medida, avançada sob a justificação de treinar as Forças Armadas jordanas e colaborar na gestão dos campos de refugiados sírios instalados no País, é, paralelamente, um sinal inequívoco de que com essa presença foi dado o primeiro passo concreto para uma eventual intervenção ulterior. Ainda não se trata, no entanto, de algo que possa ser classificado como alteração da postura militar.
Em qualquer caso, perante a existência de vítimas de uso de armas químicas, não se imagina que a investigação das Nações Unidas possa concluir diferentemente dos serviços de informações atrás referidos. Quando os EUA dizem que se trata de uma conclusão que precisa de ser apoiada em mais factos (conclusão obtida com «varying degrees of confidence») não estão apenas a ser cautelosos. Calcula-se que estão sobretudo a ganhar mais algum espaço de interpretação, à luz da experiência do Iraque e do Afeganistão, do que é a “linha vermelha” que não aceitam ver ultrapassada.
Na verdade, o discurso tem sido alterado ao longo do tempo. Inicialmente, Washington passou uma imagem bem menos condescendente que a atual. Ficou a perceção de que, na sua interpretação, os preparativos para o emprego de armas químicas só por si seriam motivo suficiente de intervenção: «A red line for us is if we see a whole bunch of chemical weapons moving around or being used». Os preparativos, no entanto, terão acontecido em dezembro, com o carregamento de ogivas, conforme então referiu o secretário da Defesa, Leon Pannetta, mas nada chegou a acontecer. O que se diz agora é que se forem reunidas provas definitivas e claras então os EUA consultarão amigos e aliados para decidir o rumo de ação, estando todas as opções em cima da mesa.
Em vez de uma posição inicial que era perfeitamente clara quanto à inevitabilidade de consequências, Obama hoje joga deliberadamente em alguma ambiguidade e sobretudo na diluição do conceito de “linha vermelha”. Compreende-se que tenha que ser assim; no ponto em que a crise interna se encontra, acelerar o seu desfecho pode facilmente encaminhá-la para uma situação ainda mais gravosa para o equilíbrio regional.
Em qualquer caso o tempo disponível para preparar o próximo passo é limitado. Primeiro porque quanto mais tarde se intervir, mais radicalizadas estarão as posições das partes e maior será a probabilidade de a resultante ser um Estado islâmico dominado por fações jihadistas. Segundo, porque mesmo que não seja possível confirmar que foi o regime que utilizou armas químicas – teoricamente, pode ter sido a oposição – nem por isso Assad deixa de ser responsável por não ter garantido a sua guarda e, obviamente, no mínimo, algo terá que ser feito para que, pelo menos, não se repita.
De facto, o espaço disponível para os EUA não correrem o risco de ficarem com a imagem de que afinal estavam a fazer “bluff” sírio vai aumentando se nada for feito perante a esperada confirmação das evidências. É um ponto que precisa de ser gerido com cuidado porque o Irão e Coreia do Norte, a quem também foram impostas “linhas vermelhas” sobre os respetivos programas nucleares, tirarão ilações sobre o significado concreto de uma “linha vermelha”.
Como margem de manobra, Washington só pode contar com o facto de nunca ter clarificado como interviria. A ideia de uma ação militar ficou subentendida, desde logo, mas o leque de modalidades possíveis, embora largo, apresenta-se muito complexo e cheio de desafios. A única que resolveria em definitivo a questão da eliminação dos “stocks” de armas químicas exigiria uma intervenção maciça no terreno (tipo Iraque), está fora de questão. Outras modalidades que os especialistas referem, para o mesmo fim, dificilmente estarão isentas de danos colaterais, porque exigem antes a supressão das defesas aéreas.
Infelizmente, o drama sírio já não se resume à questão das armas químicas. Mesmo que uma intervenção militar resolva esse aspeto, como parece ser indispensável, fica por resolver o fim da guerra civil em que o País mergulhou. E isso, como se tem visto, é algo que os EUA, mesmo com o apoio direto da Europa, não poderão ambicionar.
Jornal Defesa