Um mundo mais perigoso
Alexandre Reis Rodrigues
Embora muito ansiada e louvada, a "primavera árabe” tornou o mundo mais perigoso. Pode ser que seja uma situação passageira, própria de uma transição que afinal mal começou. De facto, foi-se pouco além de remover os ditadores e organizar eleições que, embora tendo decorrido regularmente, não fazem sozinhas uma democracia. Há novas constituições em preparação para serem submetidas a escrutínio público e, obviamente, uma grande esperança de que a estabilidade social e a segurança acabarão por chegar para ficar.
Os novos governos, inexperientes, fracos e sem qualquer base política de apoio organizado parecem mais receosos de se parecerem, em autoritarismo, com os anteriores e hesitam em assumir as suas responsabilidades; as forças de segurança, desacreditadas por décadas de repressão ao serviço de regimes autoritários, não conseguem manter a ordem. As populações têm finalmente a liberdade por que reclamavam mas não a sabem interpretar, nem como fazer uso dela; depois de décadas a verem os seus governos a controlar tudo, não compreendem como no Ocidente não se proíbem os insultos e humilhações ao Profeta e seus seguidores. Assumem a situação como uma comprovação da perceção instalada no mundo muçulmano de que, afinal, diga-se o que se disser, o Ocidente, liderado pelos EUA, continua em guerra contra o Islão.
Os graves incidentes ocorridos no Egipto e Líbia, na sequência da divulgação de um vídeo que ofende os islamitas, produzido por um anónimo nos EUA, aí estão a demonstrar como é extremamente precária a situação.
O assalto à embaixada americana no Cairo fez-nos lembrar Teerão em 1979, mas com uma diferença essencial; aí, a sublevação foi fomentada pelo próprio regime iraniano. Desta vez, foi o regime egípcio que não foi capaz de se mostrar à altura da situação e proteger, como era da sua estrita obrigação, a embaixada. Valha o facto de os EUA tudo terem feito para não deixar escalar a situação, contendo o uso da sua segurança própria o que a ter-se verificado levaria, certamente, a baixas entre os assaltantes e dado uma dimensão ainda mais complexa ao incidente.
Na Líbia, o assalto ao consulado americano, em Bengasi, teve uma natureza totalmente diferente. Foi uma ação planeada por "profissionais” bem armados, do grupo "Ansar al-Shariya”, um dos vários grupos extremistas que o governo não consegue controlar e que beneficiam do muito armamento distribuído à população durante a sublevação contra Kadhafi. O embaixador Stevens, para a generalidade dos líbios, foi um alvo errado; era uma figura de que todos gostavam pelo esforço que fazia para os ajudar a resolver os seus problemas. Obviamente, al Zawahiri não pensava desta maneira; aliás, na véspera, tinha responsabilizado os EUA e o embaixador pela morte do chefe da al Qaeda na Líbia, por um drone.
É curioso comparar as reações oficiais em ambos os países. Na Líbia, apareceu de imediato um pedido de desculpas e a promessa de punir os responsáveis, o que permitiu ao Presidente Obama dizer que "seria feita justiça”. No Egipto, o Presidente Morsi pareceu mais interessado em reclamar dos EUA uma ação contra os que fizeram uma afronta ao Profeta do que garantir todos os esforços para que a segurança da embaixada americana não voltaria a ser violada. Até Baradei, fez uma declaração que foge ao essencial da questão: «Humanity can only live in harmony when sacred beliefs and the prophets are respected». Note-se que por alturas do assalto, estava de visita ao Cairo uma grande delegação de empresários americanos para dar seguimento a projetos de investimento externo de que o Egipto precisa desesperadamente. Acabou, por ficar tudo suspenso, inclusive uma moratória da dívida egípcia (mil milhões de um total de três).
Tornou-se evidente como é hoje incrivelmente fácil criar graves incidentes internacionais com repercussões por todo o mundo. Está à distância de um "clique” na internet para publicar um vídeo, fotografias ou cartoons considerados insultuosos para o islamismo. Tanto pode partir de um irresponsável, desejoso de notoriedade e incapaz de medir as prováveis consequências do seu ato, como ser fruto de uma ação pensada exatamente para provocar instabilidade e caos.
Esteja ou não na origem destas situações, quem as aproveita é a al Qaeda. Tem por esta via uma forma fácil e eficaz de minar o novo relacionamento que se começava a estabelecer entre o Ocidente e as "democracias” resultantes da chamada "Primavera Árabe”, comprometendo todo o processo. O terreno dificilmente poderia ser mais propício para a atuação de provocadores e extremistas islâmicos, pelas razões atrás apontadas.
Em consequência do atual incidente o registo de mortes vai em 16: quatro na Líbia e doze no Afeganistão em resultado de um ataque suicida em protesto. Do anterior caso – os cartoons publicados pelo jornal dinamarquês Jyllands Posten em 2005 – resultaram, dois anos depois, oito vítimas mortais em resultado de um ataque à embaixada dinamarquesa no Paquistão. Ainda existe o caso de uma jovem paquistanesa, de catorze anos e deficiente, para quem se pede uma condenação à morte por ter queimado algumas páginas do Corão. Não obstante toda esta loucura, o semanário francês Charlie Hebdo anunciou que publicará vários cartoons na edição de 19 setembro. Laurent Fabius, ministro dos Negócios Estrangeiros francês, ordenou um reforço de segurança em todas as embaixadas em países muçulmanos.
A continuar a faltar um mínimo de bom senso, estamos a permitir que a interpretação - quanto a mim errada - de liberdade de expressão e liberdade religiosa que está a ser usada nestes casos, mais próxima de liberdade de insultar e provocar do que liberdade de escolha, dê origem a um grave problema de segurança.
Jornal Defesa