Intervir militarmente na Síria?
Alexandre Reis Rodrigues
O plano de paz de Kofi Annan, mal-grado o apoio geral que recebeu, incluindo da Rússia e China, não alterou minimamente a situação interna na Síria. Nada faz Assad retroceder com a extrema violência com que tem enfrentado a oposição. Depois do massacre de Houla que provocou 100 mortos entre a população, no final de maio, veio o massacre de Qubeir, com 78 mortos, a 7 de Junho; foram quatro, nas duas últimas semanas.
Os Governos francês e britânico passaram a admitir uma eventual intervenção militar. William Hague, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, considera a situação já próxima da que existia na Bósnia na década de 90. Israel, talvez pressionado pelos EUA, passou a admitir que a saída de cena de Assad é uma boa solução e um ministro chegou a defender explicitamente que era necessária uma intervenção militar para pôr fim ao “genocídio”. Benjamin Netanyahu disse praticamente o mesmo: «This is a slaughter carried out not only by the Syrian Government. It has been helped by Iran and the Hezbolah». Anteriormente, Israel dizia que preferia lidar com o atual regime, não sabendo o que poderia vir a seguir, eventualmente um regime islamita mais hostil. Hoje, admite que continuando a fazer pressão sobre a Síria está a enfraquecer-se o Irão.
Os EUA, pela voz de Hilary Clinton, dizem que a saída de Assad não é uma pré-condição para a negociação de uma solução para o conflito, mas deve ser parte do seu desfecho final. Lavrov, em nome do Governo russo, diz que, se o povo sírio mostrar vontade inequívoca de que Assad entregue o poder, encarará essa saída favoravelmente. Para Moscovo, o essencial é preservar o relacionamento privilegiado que tem com a Síria, independentemente de quem assuma as responsabilidades pela governação do país. A Rússia precisa desse relacionamento, entre outras razões, pelo apoio logístico que aí tem garantido para a operação das suas forças navais no Mediterrâneo (portos de Tartus e Lataquia).
Nos EUA, como é habitual, há alguma variedade de opiniões mas o consenso parece privilegiar as opiniões de Zbigniew Brzezinski e Kissinger. Brzenziski recomenda que se tenha em atenção o contexto regional; isto é, se a Turquia, a Arábia Saudita e alguns outros países árabes se puserem de acordo sobre uma linha de aceção que possa resolver o problema, então os EUA devem avançar com todo o seu apoio. Mas também alerta que o processo não será como foi o da intervenção na Líbia, no qual, aliás, os EUA tiveram um papel acessório.
Kissinger mostra-se relutante com a possibilidade de uma intervenção, perguntando se os EUA têm alguma obrigação de apoiar qualquer levantamento popular contra um regime ditatorial, mesmo tratando-se de um importante para a manutenção do atual sistema internacional. Dá um exemplo: se a Arábia Saudita começar a enfrentar um movimento de contestação do regime, com levantamento popular, deverão os EUA deixar de a considerar aliada? Se o objetivo de uma intervenção é depor o responsável pelo regime, o que poderá garantir que o vácuo resultante não originará um problema ainda maior, com as diferentes fações a digladiarem-se pelo poder e os países vizinhos sem uma posição comum sobre o que fazer?
No caso da Líbia havia muitas dúvidas sobre a natureza da oposição e sobre as suas possibilidades concretas de se organizar devidamente para pôr o país no rumo certo. No caso da Síria, a situação é muito mais complexa. O que se sabe já ao certo é que inclui fações mais antiocidentais que o atual regime e que integra simpatizantes da al Qaeda ” vindos do Kuwait, Arábia Saudita, Paquistão e Argélia, o que pode ser uma indicação de que a al Qaeda entrou num apoio mais concreto à insurreição. É um grupo muito heterogéneo que tem de tudo: cristãos, curdos, muçulmanos, líderes religiosos e os seus seguidores, radicais de extrema-esquerda e reformistas liberais. Não se entendem sequer sobre a liderança do Conselho Nacional Sírio, cujo dirigente (Ghalioun, um secular que vive em Paris) apresentou recentemente a demissão, entre outros motivos, por pressão dos Comités de Coordenação Local que ameaçaram sair da coligação, sob a acusação de que a direção da coligação estava a ser mais autocrática do que Assad.
Os Comités queriam um cristão a liderar o Conselho, sob a ideia de que dessa forma seria mais fácil atrair outras minorias religiosas que, por mera questão de sobrevivência, se têm mantido alinhadas com os Alauitas. No entanto, quem acabou por ser eleito, com unanimidade, foi Abdulbaret Sieda, um académico curdo que vive na Suécia, tido como moderado e bem colocado para trazer os curdos para o processo, o que não aconteceu até agora. A preponderância da Irmandade Muçulmana, na composição do Conselho é outra realidade que levanta reservas internas e externas suscetíveis de condicionar os apoios (principalmente da Arábia Saudita); é provável, no entanto, que com a nova direção esta situação venha a ser corrigida. Em qualquer caso, como se pode esperar que, a curto prazo, a oposição possa ter a coesão mínima para se organizar numa frente comum?
Os mais chocados com a brutalidade do regime sírio pressionam uma intervenção, sob a alegação de que se trata de defender valores. Lembram o que o presidente Obama ainda recentemente voltou a dizer: «preventing mass atrocities and genocide is a core national-security interest and a core moral responsability of the United States». São os adeptos da tese que as intervenções devem tanto ter a vertente da defesa de interesses como a de defesa de valores e que chamam a atenção para a iniciativa da administração de criar na Casa Branca o “Atrocities Prevention Board”, o último sinal que os EUA quiseram passar, em termos de imagem para o mundo, sobre a importância que atribuem à defesa de valores. Têm, no entanto, que ter presente o que também disse o Presidente logo a seguir, ao reconhecer como são limitadas as atuais possibilidades de intervir: «but we cannot control every event», o que deixa o assunto nas mãos da diplomacia e, mais concretamente, da imposição de sanções.
Podemos estar perante o regresso dos EUA aos princípios da chamada “doutrina Powell”, abandonada durante a administração Bush e que exigia o uso da força máxima, uma vitória rápida, apoio claro da opinião pública americana e uma estratégia de saída. Ou seja, um conjunto de condições que, de tão difícil de reunir hoje, mais parece estar desenhado para pôr os EUA numa postura isolacionista.
Assad sabe que, pelo menos no curto prazo, está a salvo de uma intervenção militar externa mas o desgaste e desautorização interna que está a sofrer vão tornar-se fatais para a conservação futura do poder, se a oposição mantiver o mesmo nível de contestação, consolidando posições e expandido a área que controla (norte e centro). Aparentemente, é o que está a conseguir, fazendo aumentar as deserções e baixas nas Forças Armadas e de Segurança (243 baixas nos últimos dez dias), mas com enormes dificuldades. O seu “braço armado”, que dá pelo nome de “Exército Livre da Síria”, é uma estrutura fragmentada em mais de 100 grupos (há quem fale em 300) e que com os jihadistas, que se lhe têm juntado recentemente, dificilmente poderá ser gerida com a eficácia que a desproporção de meios exigiria. O impasse vai prolongar-se e continuará a custar muitas vidas. Ao fim de um ano e meio são cerca de nove mil (13000 segundo a oposição) mas a tendência é de mais violência porque, quanto mais o Exército sofrer reveses, mais escalará o conflito. Quantas vítimas mais custará esta situação?
Jornal Defesa