Apresento-vos uma longa mas
interessantíssima biografia sobre aquele que, muito provavelmente, foi um dos mais notáveis estadistas de sempre.
Que falta faz hoje um líder como Dom João II...
O Príncipe Perfeito
Maquiavel terá pensado em D. João quando escreveu o Príncipe. Foi Lope de Veja quem lhe chamou “Príncipe Perfeito”. Isabel a Católica chamava-lhe, com admiração e respeito, “o homem!”. Dom João II reinou 14 anos e mudou o destino de Portugal. Fundou o Estado Moderno e planeou a expansão ultramarina. Institucionalizou Portugal como potência mundial no final do século XV.
Dom João II sabia o que queria e sabia para onde ia. Queria garantir independência de Portugal; queria preservar a nossa posição em Africa; e queria chegar à Índia pelo Oriente. Muitas vezes tentou, algumas errou, mas nunca se afastou do objectivo que estava certo e foi atingido.
Embora fosse um homem guerreiro e tivesse vitórias militares, Dom João II foi acima de tudo um homem de Estado. Usou, por isso, mais a diplomacia do que a guerra. A progressão de Portugal ao longo de Africa e pelos mares, fez-se procurando a amizade e o comércio com os povos que encontrávamos, fosse qual fosse a sua cor. Ao mesmo tempo, Dom João garantiu que Portugal era soberano e respeitado, através de acordos e tratados arduamente negociados com as outras potências europeia da época. A paz no continente, a liberdade nos mares – foi a sua política.

Ele é, de facto, o Príncipe Perfeito, como lhe chamaram. Sem as suas medidas governativas, Portugal dificilmente teria sucesso na aventura dos Descobrimentos e conseguiria manter-se independente da vizinha Castela.
Com D. João II o dá os passos decisivos na conquista de todo o Atlântico Sul e do caminho marítimo para a Índia.
Ele é o monarca que, sem hesitações, centraliza o poder, pensa e projecta Portugal no futuro.
A sua visão ambiciosa, a tenacidade e a audácia diplomática permitiram que o Brasil hoje fale português e que o comércio via caminho marítimo para a Índia enriquecesse o país.
Os seus 14 anos de reinado mudaram o rumo de Portugal e deixaram uma herança valiosa, única na nossa história. E é devido ao seu sonho de um Portugal maior que milhões de pessoas falam português em todo o Mundo.
Dom João II nasceu em 1455. Quase não conheceu a Mãe. Mas a relação com o Pai – D. Afonso V – marcaria, para o bem e para o mal, a sua educação e preparação para reinar. Dom João II foi, em todos os momentos, um filho leal. Várias vezes teve de resolver os problemas que o seu Pai criou e deixou.

Portugal era um reino pequeno, pobre, profundamente rural e dominado por uma nobreza ainda feudal. D. Afonso V era o que chamaríamos um “mãos largas”. Para obter o apoio da nobreza às suas políticas, não a submeteu; ofereceu-lhe poder, mais poder, quase todo o poder. Quando D. Afonso V morreu, os ducados, em Portugal, tinham passado de 2 para 4; o número de condados subiu de 6 para 21; multiplicaram-se os títulos e a alienação das terras da coroa. Mau diplomata, D. Afonso V, envolveu o País em guerras curiosíssimas. Quando D. João II lhe sucedeu, afirmou, com sentido de humor, que só herdava as estradas do reino.
Mas D. João II estava atento ao que se passava na Europa. Começava a época da centralização do poder, na figura dos monarcas.
D. João II será o primeiro Rei português a chamar a si todo o poder.
Na segunda metade do século XV em que viveu, os turcos conquistaram Constantinopla. No que hoje é Itália, viviam-se os tempos dos Médicis e dos Sforza. Em Inglaterra, desencadeia-se a guerra das Duas Rosas, entre as Casas de York e Lancaster. Em França, reina Luís XI, um monarca que, passo a passo, centralizará o poder. O Papa continua a ser a grande autoridade do mundo católico.
D. João II preocupa-se: aqui ao lado, no reino de Castela, uma mulher forte será uma grande Rainha. Isabel unifica os tronos de Castela e Aragão. Estava em vésperas de nascer uma Espanha poderosa. O equilíbrio peninsular torna-se frágil, a segurança de Portugal fica ameaçada.

Enquanto jovem, D. João II seguiu a trajectória do pai nas conquistas do Norte de África.
D. João era fisicamente corajoso. Demonstrou-o quando tinha, apenas, 15 anos. D Afonso V preparava a conquista de Arzila; o filho pede–lhe para integrar o seu exército. O cronista Damião de Góis relata o seu estado de espírito: “depois de sua Alteza ter partido hei-de segui-lo e se não for como príncipe, será como aventureiro soldado”. O rei faz-lhe a vontade e é no desembarque em Arzila que D. João II se destaca como militar.
D.João faz parte do exercito de 30 mil homens com que o rei de Portugal toma Arzila. No final, o jovem príncipe mostrava o ferro torcido da sua espada, tantos e tais os golpes desferidos e recebidos. Ali foi armado cavaleiro, junto ao sangue derramado do Conde de Marialva: “Filho, Deus vos faça tam bom cavaleiro como este aqui jaz” disse-lhe o rei. D. João tinha 16 anos e começou ali a sua influência na política do reino.

Anos mais tarde, na célebre batalha de Toro, quando Afonso V fazia a guerra contra Castela, D. João voltaria a revelar bravura e inteligência como general.
O exército português tinha duas alas e o príncipe D. João comandava uma delas. Venceu os isabelinos e recolheu. Mas a ala chefiada por Afonso V foi destroçada. Nesta batalha que passou à história com resultado incerto, Portugal, por não vencer, perdeu. Mas afiançou-se a certeza de que D João II, se preciso fosse, saberia impor a lei da força.
Ele, no entanto, preferiu quase sempre a força da lei.
“Pela lei e pela grei” , seria a sua divisa.
A partir de 1474, Dom João II recebe do pai a responsabilidade pela politica ultramarina. D Afonso V entrega-lhe a liderança do comércio da Guiné e o governo dos domínios africanos. É este projecto – a expansão de Portugal pelo mar – que vai ocupar e definir o perfil de D.João II.
Pelo contrário, nos últimos anos do seu reinado, D Afonso V vira-se para a península, está obcecado com Castela e as circunstâncias permitem-lhe alimentar um sonho: a unificação das coroas portuguesa e castelhana.
Na verdade, em Dezembro desse ano - 1474 - morre o rei de Castela, Henrique IV. Abre-se uma querela sobre a sua descendência; na verdade, é uma verdadeira disputa pelo trono.

O rei entrega, então a regência de Portugal a Dom João. “Eu, se fosse senhor do mundo, confiaria de vós sem receio”, diz o pai ao príncipe. Este responde com lealdade:”obrigado sou a vos manter estes reinos e vo-los entregar pacificamente, cada vez que a eles tornardes, e se eu o contrário fizer, rogo a todos que me desobedeçam”.
A regência de Dom João é um contrato de limites mútuos. Por um lado, D. Afonso impede Dom João de retirar privilégios à nobreza – de quem depende cada vez mais. Por outro, Dom João obtêm do pai um compromisso secreto – não poderá fazer dádivas superiores a 10 mil reais sem seu consentimento.
No fundo, pai e filho conheciam-se bem. D Afonso sabia que o filho acreditava numa coroa sem capitulações. Dom João sabia que o pai era dado a prodigalidades.
Enquanto regente, Dom João definiu prioridades: equilibrar como podia uma Fazenda corroída pelas despesas da guerra e pela ausência de receitas nas terras da nobreza; administrar a justiça, mostrando simpatia pelas queixas populares em relação aos abusos de poder senhorial; garantir que as manobras de diversão dos castelhanos em território português não eram bem sucedidas; e pôr ordem no comércio da Guiné, ameaçado por navios castelhanos que, a mando ou com o consentimento de Isabel, disputavam as riquezas portuguesas.
A guerra da sucessão culmina com a Batalha de Toro na qual D. João II também luta para ajudar o pai. Mais uma vez destaca-se como guerreiro.
O grande confronto, de 2 de Março de 1476, acabou por ser considerado ganho por ambos os lados, mas, na verdade, saldou-se por uma derrota política para Portugal.

Em dois momentos da regência, D João II revela saber como exercer a autoridade e usar a astúcia.
Prova de autoridade: em face dos navios espanhóis que pilhavam e atacavam o ouro da Guiné, D João dá ordens para aprisionar os respectivos capitães e proteger a soberania portuguesa. Isabel é forçada a recuar.
Prova de astúcia é o episódio da ameaça de invasão de Évora. Conta Garcia de Resende que a cidade esteve cercada por 2 mil castelhanos. Dom João não tinha exército para a batalha – os meios estavam em Castela, com o pai. Ordena então que 300 cavaleiros, todos os que tinha, galopassem de um lado para o outro, perto do acampamento do inimigo, de modo a parecerem dez vezes mais. O plano resulta. Os castelhanos recuam e Évora fica a salvo.
Este aspecto é importante. Um século mais tarde, o Cardeal Mazarino escreveria uma impressiva definição da política da época como sendo a “arte de simular e dissimular”. Dom João, sobretudo perante potências estrangeiras, sempre simulou grandeza, mesmo nos momentos difíceis; e dissimulou as fraquezas, como se viu no cerco de Évora.
Também se diz, com acerto, que D. João II foi o primeiro monarca a usar, sistemática e planeadamente o que hoje chamaríamos serviços de informação. E na verdade, quer perante os outros Estados, quer em face das conjuras contra o trono, Dom João II consegui, quase sempre, saber o que o seu inimigo faria, sem o que o seu inimigo soubesse que ele sabia.
Voltemos às desventuras do rei em Castela. A guerra não estava a correr bem e Afonso V, num movimento mal medido, vai a França, na esperança de obter o apoio de Luís XI às suas pretensões.
O rei de França, como se diz agora, “chuta para canto”. Recebe Afonso V com grandeza, mas condiciona um apoio que não quer dar. Destroçado, Afonso V segue, quase só, para Jerusalém e pensa na vida religiosa. Escreve a Dom João, abdicando da coroa e intimando-o a proclamar-se rei. Conta Garcia de Resende: “ E em cumprimento do mandato del rey, o Príncipe foy alçado por el rey com toda a solenidade em Santarém”.
Estávamos em 1477. Mas D João só seria rei por 4 dias.
De facto, D.Afonso V é travado na sua peregrinação ao Médio Oriente. Resolve voltar. Dom João devolve-lhe a coroa, mas não aceita partilhar o poder, como o pai desejava.
Enquanto D. Afonso V fez a guerra com Castela e não a ganhou, Dom João tinha outra visão: contratualizar uma paz com os reis católicos que garantisse a independência de Portugal e os seus direitos além mar. Essa visão ganhará forma com o Tratado de Alcáçovas.

Assinado a 4 de Setembro de 1479, D. João II conseguiu reverter uma situação delicada para Portugal num acordo estrategicamente positivo para os nossos interesses.
O príncipe tinha um objectivo – retirar os castelhanos da costa africana, reservando para Portugal o comércio de ouro na Guiné. Enquanto negociador, apercebeu-se que os Reis Católicos eram – ainda – vulneráveis. E sabia que D. Joana, a Beltraneja, ainda era um trunfo, e jogou-o.
O que obtêm D. João?
Muito: garante para os portugueses a zona de Marrocos, todo o comércio da rota da Guiné e – o que não é despiciendo - o mar desconhecido em direcção ao sul. Os próximos 20 anos dos descobrimentos portugueses beneficiarão muito desta liberdade incondicional.
E o que oferece D. João?
Alguma coisa – as Canárias. Mas nada que verdadeiramente nos fizesse falta.
Oferece, sobretudo um direito teórico: a renuncia à pretensão da coroa castelhana. Portugal reconhece Isabel como rainha legítima e promete em casamento a um dos seus filhos a infeliz D. Joana; em alternativa, a Beltraneja, conhecida em Portugal como Excelente Senhora, pode professar a vida religiosa, o que de facto sucederá.
tratado incluía, ainda, outra cláusula matrimonial. Dom João já tinha um filho – também ele chamado Afonso. Ficou assente que casaria com a filha de Isabel a Católica, também ela chamada Isabel. Seriam educados juntos, aqui bem perto, em Moura.
Assim se desenha o plano de Dom João: a independência de - e a grandeza – de Portugal estão ligadas à expansão marítima; a paz com Castela fica estabelecida e, se um dia as coroas se unirem, será sob a égide de um varão português.

D. João II consegue a proeza de garantir para os portugueses a zona de Marrocos, todo o comércio da rota da Guiné e o mar desconhecido mais a Sul. Em troca, oferece as Canárias aos nossos vizinhos.
Alcançada a divisão do Atlântico por uma linha horizontal ao nível das Canárias, o Príncipe Perfeito tinha todas as condições para iniciar a sua verdadeira ambição – fazer todas as viagens, todas as navegações, todas as expedições, todas as descobertas que nos levassem à Índia.
Faltava, apenas, uma condição: ser “o senhor dos senhores, e não servo dos servidores” no reino de Portugal. Numa palavra, ser respeitado como rei e exercer o poder sem hipotecas. Para uns D. João II viria a ser uma espécie de César. Para outros, foi um monarca paternalista. Em qualquer caso, a sua forma de ser rei fundou o estado moderno em Portugal.
Quando D. Afonso V morre, em 1481, e o Príncipe Perfeito é definitivamente aclamado rei, já reúne uma larga experiência política. Por isso, não é de estranhar a sua determinação e perspicácia de actuação nas primeiras cortes de Évora convocadas logo para esse ano.
Foi em Évora, a sua cidade preferida, que D. João II iniciou o controverso processo de reforço do poder real.
O soberano estava na ofensiva. Já exigira da nobreza portuguesa um verdadeiro juramento de obediência. Mal habituados por Afonso V, senhores feudais de uma parte do país, alguns nobres das Casas mais importantes, ouviram o discurso de abertura do Dr. Vasco Fernandes de Lucena. Nesse discurso, combinado com o rei, ficava claro o que era jurar a obediência ao soberano: não atentar contra a sua vida; não revelar segredos do rei; respeitar a Fazenda do Estado; obedecer à justiça real; não dificultar ao monarca o que com ele se pudesse resolver a bem.
O juramento devia ser repetido – ao grito de “real, real , real, pelo muito alto muito excelente e muito poderoso senhor el rei Dom João” – pelos alcaides dos castelos e procuradores das cidades e das vilas, em todo o país.
Nas cortes, a homenagem seria prestada com o nobre ajoelhado e o rei sentado. O presságio de um sério conflito entre o rei e a aristocracia, ficou marcado pela atitude do Duque de Bragança. Ele era o chefe da primeira casa ducal do país. Achava que só a ele deviam obediência os súbditos de mais de 50 castelos, vilas e lugares. Foi o primeiro a vergar-se à autoridade de D. João II mas fê-lo sobre protesto – “coagido” , terá dito.

D. João II é o primeiro rei português a concentrar o poder nas suas mãos. À semelhança do que acontecia no resto da Europa, o monarca entende que, para concretizar a sua política, fazer o reino progredir e tornar-se um estado poderoso, precisa de retirar os excessivos poderes à nobreza. Pretende governar para o povo. Numa posição paternalista de senhor único dos destinos do reino, assume-se como grande defensor e responsável único. A sua atitude — o reino tinha um único senhor que protegia a sua gente — era espelhada no símbolo que escolheu: um pelicano que, ao ferir o peito, garante o sustento dos seus filhos.
Após as cortes de Évora, o conflito entre o monarca e a nobreza cresce num clima de conspiração e alianças com o vizinho reino castelhano. O final da crise interna vai saldar-se numa profunda derrota para as grandes casas senhoriais.
D. João deu sempre uma oportunidade aos que contra ele conspiravam. Avisou-os. Esperou que rectificassem. E só agiu – por vezes, violentamente - quando nada mais havia a fazer e tinha as cartas na mão.
Ficou célebre a sua recomendação de paciência no Governo do Estado:
"Há tempos de usar o olhar da coruja e tempos de voar como o falcão."D. João II revela uma determinação implacável em aniquilar os inimigos. D. Fernando é julgado, acusado de traição e condenado à morte. Será decapitado em público, aqui na Praça do Giraldo. Os bens da casa de Bragança são confiscados.
São tempos sombrios que se vivem no reino português. Avisado de uma outra conjura para assassiná-lo, D. João II age rapidamente. Um dos implicados é o irmão da sua mulher, D. Diogo, duque de Viseu a quem o rei já tinha aconselhado a desistir das tramas de conspiração.
Mais uma vez, o rei convida o conjurado a desistir da trama. Mas D. Diogo não lhe deu ouvidos. Três vezes pressente D. João II que, no próprio paço ou em passeios de barco e a cavalo, o tentam liquidar. Escapa por pouco; e só escapa porque informadores, o informaram.
A 20 de Agosto de 1484, D. Diogo tinha 200 lanças à espera do rei para o eliminar. D. João II iludiu-o. No dia seguinte, chama-o à sua presença. Trata pessoalmente do assunto. Pergunta a D. Diogo:
-'Duque, que fariéis vós a quem vos quisera matar?"-"Matá-lo-ia", respondeu D. Diogo
-"Pois o que vós em mim ordenáveis; em vós se cumpre", terá respondido o rei que o apunhalou.
Estamos no século XV. O valor da vida é diferente. E em certo sentido, D. João matou para não morrer.

Apesar de implacável nestas situações, os cronistas da época descrevem D. João II como um homem prudente e formal, mas emotivo, bem disposto e perspicaz. Adorava xadrez ê gostava de festas. Quando era visitado por estrangeiros, não poupava em dignidades nem honrarias. Tinha um apuradissimo sentido da imagem de Portugal no exterior.
partir do momento que ficou claro quem detinha o poder, o caminho estava livre para D. João ll executar os seus planos de Governo.
O Príncipe Perfeito vai, então, solidificar alianças e lançar-se na aventura ultramarina. É a época áurea do seu reinado.
A primeira ideia de D. João II é estabelecer uma feitoria no Golfo do Guiné, protegida por uma fortaleza. Objectivo: criar um entreposto comercial em Africa, proteger o ouro, apoiar os navegadores.
O que hoje nos parece normal, no Sec. XV era inédito. Partem de Portugal nada menos do que 12 navios. Alguns vão carregados de pedras, madeiras, talhas, ferramentas e outros materiais de construção. De raiz será levantado um forte; de raiz será construída uma Igreja.
Tudo isto é feito em paz. O emissário de Dom João negoceia com Caramanasa, o soba de S. Jorge de Mina. Cerca de 60 portugueses ficam residentes. O comércio frutifica, Portugal afirma-se.
Dom João II inicia, assim, a colonização da Africa descoberta.

Era o ponto de partida. Mas Dom João procurava um porto de chegada: a Índia.
Para executar este plano, Dom João II rodeou-se dos melhores cientistas e de navegadores de excepcionais. Investiu na rota marítima e enviou expedições por terra.
Se um estadista se define pelos colaboradores que escolhe, a lista dos homens excepcionais que trabalharam com o Príncipe Perfeito é eloquente – Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, Pêro da Covilhã, ou o astrónomo judeu Abraão Zacuto, expulso de Espanha e recebido na corte portuguesa.
Ao mesmo tempo que procurava contornar Africa, Dom João envia missões por terra à procura do mítico reino cristão do Prestes João.
Os primeiros expedicionários não passam da Terra Santa, porque não dominavam o árabe. Mas a expedição de Pêro da Covilhã e Afonso Paiva é proveitosa: falam várias línguas, disfarçam-se de mercadores e são verdadeiros espiões.
Em finais de 1488, Dom João II recebe o melhor prémio do seu esforço, a melhor notícia do seu reinado.
Bartolomeu Dias, outro escudeiro da Casa Real, vai à frente de três caravelas e ultrapassa o mundo já descoberto por Diogo Cão. Atinge 34 graus a sul do equador – e estamos na actual Africa do Sul. Vencendo tempestades perigosas e fazendo uso de uma determinação tenaz, Bartolomeu Dias, finalmente, encontrou o Cabo das Tormentas. É o extremo meridional de Africa.
Dom João II dá-lhe um nome sugestivo: Cabo da Boa Esperança. É a viragem decisiva na conquista do Atlântico Sul. Os portugueses abrem caminho marítimo para a Índia – como o rei sempre sonhara:
“Aqui ao leme sou mais do que eu: / Sou um povo que quer o mar que é teu; / E mais que o mostrengo que a me alma teme / e roda nas trevas do fim do mundo / Manda a vontade, que me ata ao leme, / De El-Rei D. João Segundo!”(Mensagem, Fernando Pessoa)
A vontade titânica de Dom João II é recompensada. Bem rodeado e bem aconselhado, o Príncipe Perfeito define, executa e mantém um plano que é um sucesso. Os navegadores portugueses provaram que o oceano era navegável; que o mundo equatorial era habitado; que era possível navegar longe da costa e orientar-se pelo sol e pelas estrelas; que África era contornável; que havia forma de chegar à Índia pelo mar; que a terra era arredondada e circun-navegável; e ainda viriam a provar mais a Ocidente, que a América era contínua; e que havia, no sul do continente americano, uma costa navegável, tal como a africana.
O mar, no século XV, era como o espaço, no século XX. Sob a direcção do Príncipe Perfeito, Portugal foi pioneiro, foi moderno e foi global.
No início, D. João II afastara a concorrência de Castela na aventura africana. Agora, precisa de legitimar, internacionalmente, os Descobrimentos, garantindo um império comercial. Talvez por isso, resistiu ao ímpeto de enviar imediatamente navios para a Índia. Na forja estava um novo tratado para estipular o que era o mar português.
Isso aconteceria em 1494, com o Tratado de Tordesilhas.
O catalisador desta negociação foi Cristóvão Colombo.
O Príncipe Perfeito não patrocinou os seus projectos. Colombo prometia chegar à Índia pelo Ocidente. Naquele tempo, D. João já sabia que os cálculos de Colombo não podiam estar certos.
D. João achou – e tinha razão – que Diogo Cão estava mais perto da verdade e da Índia. O caminho para lá chegar teria de se fazer contornando Africa.
O estilo exuberante de Colombo, exigindo consideráveis rendas e títulos do que descobrisse, deixara D. João II, mais formal, desconfiado.
Depois de muitas tentativas, Colombo convenceu Isabel Católica a apoiá-lo. No regresso da viagem em que descobriu Guanahani, Cuba e Haiti, Colombo passa por Lisboa, convencido de que descobrira a Índia.
Dom João II pressente o perigo de uma situação nova, em que os castelhanos, apesar de errados no destino, eram afortunados pela descoberta de terras a Ocidente, terras de que a Corte Portuguesa tinha rumores.

Toma, então, uma decisão: reclamar para Portugal, com base no Tratado de Alcáçovas, as terras que Colombo achara. Com uma mão, despacha uma embaixada para Castela; com a outra, prepara uma frota para tomar posse dessas conquistas americanas.
O movimento do Príncipe Perfeito, nesta situação adversa, surte efeito.
Começam as negociações com Castela, que mobilizarão os melhores talentos diplomáticos do reino.
Isabel a Católica tem um forte aliado no Papa espanhol, Alexandre VI.
A primeira proposta chega sob a forma de uma bula papal: impunha uma linha divisória no Atlântico, cerca de 100 léguas a Ocidente de Cabo Verde.
Dom João II não aceita. Tanta resistência opõe que Castela aceita a contra-proposta do Príncipe Perfeito: a linha que divide - digamos assim – o “mundo português” do “mundo castelhano” é afastada para mais 270 léguas para Ocidente, um ganho imenso que permitirá a Portugal reclamar, anos depois, o Brasil.
Tordesilhas consuma a habilidade diplomática de D. João II. Um pequeno país, com pouco mais de um milhão de habitantes, apossava-se de “meio mundo”, seguro das descobertas que já fizera em Africa e no Oriente.
Porque terá Dom João II exigido as 370 léguas? Nessa época de politica sigilosa, podem ter existido viagens secretas, com resultados que não conhecemos. Há indícios de que o Príncipe Perfeito conhecia a possibilidade de um território a Ocidente.

A politica tem consequências. Tordesilhas é a consequência fabulosa de uma politica ultramarina em que Portugal se abriu do mundo, teve sentido de risco, foi vanguarda científica e concentrou energias, não em guerras inúteis, mas em conquistas importantíssimas.
Dom João II era um estadista realizado, e levou Portugal a uma posição internacional que nunca mais se repetiria. A nível interno, viviam-se tempos de paz e a independência estava garantida.
No entanto, Dom João II não era um monarca feliz.
Em 1490, cumprira o seu plano: casar o Infante D. Afonso, herdeiro da coroa, com D. Isabel, filha dos reis católicos.
Esse casamento representava, para o Príncipe Perfeito, uma chave dupla. Por um lado, impunha uma certa paz entre os dois reinos peninsulares, cada um ficando livre para os seus desígnios: Portugal para a politica da expansão, Espanha para concluir a sua unificação como Estado. Por outro lado, D. João sabia que, se um dia as circunstâncias o permitissem, qualquer união ibérica seria feita sob o trono português.
O casamento de Afonso e Isabel representa uma outra faceta de Dom João II. Ele percebeu, sempre, que o respeito devido a um Estado é o respeito que esse Estado impõe. Levava este princípio muito a sério e aplicava-o no protocolo.
Se os casamentos reais eram verdadeiros tratados internacionais, então o casamento de um infante português com uma infanta espanhola teria, necessariamente, de ser inesquecível ; havia de por os espanhóis em sentido, no melhor sentido da palavra – a grandeza, a dignidade, aquilo a que os franceses chamam ‘panáche’.
Contam os cronistas que o cerimonial foi o maior jamais visto em Portugal.
Mas esta felicidade dura pouco tempo.
No Verão seguinte, D. Afonso, numa certa tarde, vai passear a cavalo. Acontece um incidente inesperado. O seu galope é interrompido por uma violenta queda. D. Afonso fica inconsciente e morrerá 24 horas depois.
Os anos dourados de Dom João II estavam no fim. O Rei fica atormentado pela sucessão da coroa; a tranquilidade com Castela está em risco; renasce a oposição na Corte. E desta vez, os adversários são muitos. Chegam à própria Rainha.
Na verdade, a morte de D. Afonso coloca um problema. O Príncipe Perfeito tinha um filho ilegítimo – D. Jorge. Durante a próxima década, esse filho tinha sido tolerado. A queda do herdeiro levará Dom João a tentar legitimá-lo para a sucessão : opõe-se a Santa Sé, opõe-se Castela, opõe-se uma parte da nobreza que espreita a desforra e opõe-se, compreensivelmente, a Rainha D. Leonor.
Motivo: na ordem necessária, se D. Jorge era o herdeiro, deixaria de o ser D. Manuel, irmão de D. Leonor.

Como frequentemente acontece com os grandes homens, D. João morre relativamente só em Alvor, no Algarve.
Dos seus últimos gestos, um é marcante: a nomeação de Vasco da Gama para ser o capitão da frota que deveria ir à Índia. O Príncipe Perfeito já não verá os resultados da sua obra.
Marcado pela doença, D. João tem consciência do fim. Alguns relatos afirmam que a sua última palavra foi “Jesus”.
Morria um rei irrepetível.
Contei-vos a história de D. João II. Falta dizer-vos porque é que D. Joao II foi o Grande Português
D. Joao II não fundou a nacionalidade. Mas foi com ele que Portugal se fez universal.
D. Joao II não era navegador. Era um homem de Estado: promoveu as navegações, planeou os Descobrimentos e conseguiu, para Portugal, o maior prestígio internacional de sempre.
D. Joao II não viu os resultados da sua obra. Por exemplo, não viu a Índia. Mas foi ele quem, contra ventos e marés, planeando, arriscando e recrutando os melhores, perseguiu o objectivo da Índia e abriu caminho para lá chegar.
D. Joao II não era poeta. Era apenas culto – e foi a sua visão que deu a Portugal a grandeza que os poetas celebraram.
Façam comigo um exercício. Comparem o Portugal do século XV com o Portugal do século XX. Com D. Joao II, Portugal foi central no mundo; no final do século XX, Portugal estava na cauda da Europa. Com D. João II Portugal foi moderno; no século XX, a situação de Portugal só pode definir-se numa palavra : atraso. É a diferença entre o esplendor e a tristeza.
D. Joao II foi a metáfora de um Portugal arrojado, vanguardista, culto, cientifico, grande, épico, universal – um Portugal que não voltou a repetir-se. O Príncipe Perfeito tinha defeitos – eram os da época. Mas as suas qualidades são intemporais – foi um estadista muito à frente, foi um Português à frente do seu tempo, teve a visão e a força que levaram Portugal, atrás de si.
Paulo Portas, Os Grandes Portugueses