A encruzilhada egípcia
Alexandre Reis Rodrigues
Finalmente, estão oficializados os resultados da primeira volta das eleições presidenciais de 23/24 de maio no Egito. É um facto, praticamente sem precedentes na história do mundo árabe: a realização de eleições sem se saber o seu possível desfecho! Parece extraordinário, mas é exatamente assim. Não fosse a “Primavera Árabe”, em vez do processo em curso, teria provavelmente havido a “eleição” do filho Gamal Mubarack para passar a ocupar a Presidência. Tudo mudou tanto que, agora, o que este tem à frente são acusações de corrupção que o levarão a julgamento. É um marco histórico para o povo egípcio em direção à liberdade de escolher o seu destino. Veremos se o será também para as Forças Armadas, embora noutro sentido. Se será desta vez que vão abandonar o poder, a que têm estado ininterruptamente ligadas desde o a fundação da moderna República, em 1952, com Nasser. Entre outros, este é um dos grandes desafios do processo.
O desfecho desta situação é, de momento, imprevisível. O que os ocidentais imaginaram inicialmente – uma democracia ao estilo ocidental – foi um erro crasso de avaliação. Se lá se chegar, algum dia, não será, certamente, no curto/médio prazo. Como lembrava o professor Pilippe Schmidt, numa mesa-redonda organizada pelo Instituto de Defesa Nacional, há dois dias, na insurreição que levou ao derrube de Mubarack nunca se gritou por democracia; a palavra de ordem era liberdade. São coisas bem diferentes, importa notar. Aliás, nas circunstâncias atuais, a ideia de democracia, no Médio Oriente, deixou de beneficiar da natureza apelativa que tinha há alguns anos atrás; simplesmente porque deixou de estar associada a prosperidade, ou seja, a uma economia a funcionar, que é o que a grande maioria dos egípcios aspira.
O Egito encontra-se apenas numa fase muito inicial de um processo de transição em que quase tudo continua em aberto, não obstante o Supremo Conselho das Forças Armadas e a Irmandade Muçulmana (os dois principais atores) tudo estejam a fazer para controlar em função dos seus propósitos políticos. O desfecho tanto pode ser uma espécie de regresso de uma “velha-guarda”, sob o controlo das Forças Armadas, embora disposta a fazer concessões aos islamitas, ou a instituição de um regime islâmico ou de inspiração islâmica. A primeira hipótese é representada por Ahmed Shafik que recolheu 23,66% dos votos; a segunda, é protagonizada por Mohamed Morsi com 24,77%. A maioria dos votantes, que não se revê nem num nem outro, vão ter agora que optar, provavelmente sob o critério do mal menor.
Shafik, general reformado da Força Aérea egípcia e o último primeiro-ministro de Mubarack, é para alguns a imagem de tudo contra o que os rebeldes da Praça Tahir protestaram e corresponde, na prática, uma primeira evidência de que a revolução falhou; para outros, será a resposta aos receios de mudar, à preferência pela continuidade. A sua passagem à segunda volta tem desencadeado violentos protestos, incluindo, para além das habituais manifestações na praça Tahir, o assalto e destruição do seu quartel-general de campanha. Segundo uma lei aprovada pela Câmara Baixa do Parlamento e ratificada pelo Conselho Supremo das Forças Armadas, que exclui do processo de candidaturas antigos colaboradores diretos de Mubarak, não deveria ter-lhe sido permitido concorrer. Foi, aliás, o que aconteceu, por essa ou outras razões, a dez dos 23 candidatos iniciais, incluindo Khairat el-Shater, o candidato original da Irmandade Muçulmana e, Suleiman, o antigo vice-presidente de Mubarack e chefe dos serviços secretos. Como conseguiu Shafik escapar a este crivo só parece poder ser explicado pelo controlo que as Forças Armadas continuam a deter sobre a situação. Segundo a AFP (notícia de 29 maio), ainda falta o Supremo Tribunal Constitucional anunciar o resultado do exame da constitucionalidade da lei que excluiu dez candidatos, o que está previsto para 11 de junho. Não é fácil imaginar o que sucederá se decidirem pela sua inconstitucionalidade, com a segunda volta marcada para cinco dias depois (16/17 junho).
Morsi foi a segunda escolha da Irmandade Muçulmana, depois do revés de verem rejeitado, como acima se referiu, o candidato original, mas os resultados alcançados pelo Partido da Justiça e Liberdade, que representa a Irmandade, não parecem ter sido afetados. Calcula-se que os egípcios optaram por manter a lealdade à organização, que ao longo do tempo, nunca deixou de ajudar os mais necessitados, designadamente na saúde e na instrução. Morsi, um milionário de 62 anos, que foi o número dois do Supremo Guia da Irmandande e o seu estratega principal (“deputy of the Supreme Guide’s Muslim Brotherwood, and chief strategist”), tem sido olhado como alguém bem posicionado para relançar a economia, um dos fatores mais decisivos de sucesso do processo de transição. É alguém para quem os EUA olham positivamente, mas esse aspeto, possivelmente, cada vez pesa menos.
O curioso deste processo é a inversão da decisão que a Irmandade tinha tomado ainda antes de lançado o processo eleitoral, quando optou por não apresentar nenhum candidato a presidente. Conhecida, ultimamente, por preferir uma postura cautelosa, a Irmandade procura não afastar os mais receosos de uma mudança radical de regime. Aparentemente, consideraram ter atingido o seu objetivo para o curto prazo, com a vantagem adquirida nas eleições legislativas, que lhes dá capacidade de assumir as responsabilidades pela formação de um novo Governo. Terão mudado de opinião sob o receio de as eleições presidenciais gerarem um presidente próximo do Conselho Supremo das Forças Armadas, que pudesse vir a cercear o espaço de manobra do Governo.
No entanto, ninguém consegue imaginar minimamente como será o futuro. A incógnita do que será a Constituição ainda se encontra por resolver e esta é uma questão-chave. O Parlamento continua a tentar um acordo que permita a constituição de uma comissão de 100 membros que se encarregue da redação do novo texto, num prazo de seis meses, mas sem qualquer sucesso até agora. É uma situação insólita porque os egípcios vão eleger um presidente, não sabendo os seus poderes. Aliás, nem sequer saberão, por essa altura, que tipo de regime, afinal, terá o Egito. O diferendo sobre o papel dos valores religiosos islâmicos como uma das fontes da legislação ou a sua fonte única continua em aberto. O que a Irmandade defendia inicialmente era o conceito “Islamic Source of Legislation” que permitiria levar a um Tribunal Constitucional todas as leis que levantassem objeções religiosas. Não é como se compreenderá um tema fácil para grande parte da população egípcia, muito menos para os militares que querem continuar a ser os guardiões de um regime secular. Um conflito interno é uma possibilidade que continua à vista.
Jornal Defesa