Europa – A Geopolítica da Desunião
José Freire Nogueira
Pareceu a muitos observadores desprevenidos, incluindo altos responsáveis políticos, que, aquando do alargamento da União Europeia a Leste tornado possível pela implosão do bloco soviético, tal representava o reencontro da Geopolítica com a História da Europa. Volvidos quase vinte anos, o que vemos é uma realidade multifacetada, em boa parte egoísta e nacionalista, ancorada em antigas raízes e que, pelo contrário, parece apostada em voltar a demonstrar que, no continente europeu, o encontro da Geopolítica com a História não tem, habitualmente, um final feliz.
De facto, hoje, o futuro da União Europeia parece bem mais sombrio do que então. Basta ler os jornais ou ouvir as notícias para compreender que a crise financeira fez ressurgir velhos egoísmos e a fé de muitos europeus no futuro da União está abalada, mais do que depois do “duche frio” que constituiu, ainda há bem pouco, a rejeição por franceses e holandeses, de um passo importante da construção europeia. Também hoje vemos franjas importantes da população de algumas nações do Norte e também do Sul duvidarem das vantagens da permanência numa união que lhes trás, a uns tantos custos, e a outros tantos sacrifícios. No entanto, não há grandes razões para espanto.
Efectivamente, as sociedades são um produto complexo. Se, por um lado, os nexos de causalidade são difíceis de estabelecer e por outro, a larga margem de indeterminação que caracteriza todas as acções humanas as podem conduzir em várias direcções, parece indiscutível que existe um conjunto de circunstâncias que, actuando à escala do tempo longo, as modelam com determinados traços que, sem lhes determinarem o rumo, as tornam mais ou menos propensas a determinados comportamentos. São as forças profundas segundo a feliz definição de Pierre Renouvin.
Entre elas aqui se incluem, além de algumas – e nem todas – das já consideradas por Renouvin, outras, que embora não consideradas pelo historiador, parecem ao autor como essenciais como enquadrantes da análise: São elas a História (com os seus mitos, as suas solidariedades, a sua auto-imagem, bem como as suas hostilidades), o “Temperamento” (os hábitos culturais, o grau de rigidez da sociedade, a atitude perante o poder e a adversidade), a Língua (verdadeiro genoma oral que, como alguns sustentam, contribui para estruturar o pensamento), a Religião (com os seus códigos de conduta, favorecendo certos comportamentos e valores, enquanto desfavorece outros), as formas sociais infranacionais como o Clã, a Tribo e a Etnia (para as quais as sociedades, mesmo as supostamente mais avançadas, regridem por vezes em períodos de crise), às quais parece vantajoso juntar, além dos dados pertinentes da Geografia Humana e dos aspectos fundamentais da conjuntura o cenário quase imutável onde se desenrola a vida das sociedades, ou seja, a Geografia Física, bases do método de análise geopolítico.
A Europa é um excelente caso de estudo
Habitada há milhares de anos por povos relativamente estáveis cuja história é razoavelmente bem conhecida, é por demais evidente que a sua geografia política radica em factores que a diferenciam de outras regiões do mundo mas igualmente se traduzem em profundas diferenças internas. A História da Europa é, com efeito, extremamente turbulenta e feita de regionalismos que resistem consistentemente aos sonhos imperiais que, com alguma regularidade, ressurgem no seu palco. Com excepção do império romano (que apenas dominou a bacia mediterrânica e a parte temperada da Europa do Ocidente) ou dos Habsburgos que exerceram um domínio relativamente fraco sobre a Europa Central, nenhum deles permaneceu para além do efémero. Carlos Magno, Carlos V, a França dos séculos XVII e XVIII, Napoleão, Adolf Hitler, todos eles à cabeça de impérios continentais, esbarraram na sede de autonomia nacional ou mesmo local que parece caracterizar os europeus e que encontra uma explicação, entre tantas outras, na tese do francês Castex do “perturbador continental”, em que se previa a derrota das pulsões hegemónicas continentais.
Não é, de facto, em vão que o feudalismo pôde persistir na Europa durante quase mil anos, ou que a Alemanha tenha estado dividida em mais de trezentas unidades políticas até à unificação do século XIX, e que a Itália apenas se tenha unido e consolidado em período igualmente recente, ou que, mesmo hoje, a Europa seja o continente que contém o segundo maior número de Estados, apesar das suas reduzidas dimensões. Não é também em vão que o moderno Estado-Nação tenha sido inventado pelos europeus, invenção posteriormente exportada para o resto do mundo, já que a desunião e o cantonalismo parecem ser a matriz histórica dos europeus e a guerra, uma das suas instituições mais perenes. Ódios e egoísmos nacionais (ou mesmo locais) ressurgem quando pareciam apaziguados. Uma força profunda que é perigoso ignorar.
Porque os europeus são profundamente diferentes uns dos outros. A sua matriz cultural gerou-se num longo processo que lhes acentuou as diferenças. No Sul, a benignidade da Natureza possibilitou o florescimento precoce da civilização. Numa manifestação clara da teoria do “desafio e da resposta” enunciada por Toynbee, o europeu do Sul não teve que enfrentar os animais ferozes ou as agruras da Natureza, pelo que a pressão para actuar em grupo foi muito inferior àquela que actuou sobre o europeu do Norte, onde a sobrevivência individual dependia da força do grupo. Ainda hoje, o individualismo egoísta e a desorganização são marcas do meridional, enquanto a Norte impera a disciplina e a organização. O professor português Políbio de Almeida (1932-2008) ao tentar definir o comportamento dos três grandes grupos étnicos europeus (eslavos, germanos e latinos) salientava que o amorfismo próprio do germano isolado termina quando ele se agrupa e assim, a associação que é para o germano fonte de realização é para o latino, pelo contrário, motivo de desconfiança. O individualismo deste último confunde-se com um certo orgulho, vaidade e desejo de brilhar mesmo com prejuízo do grupo ao qual possa pertencer. Fazendo apelo à geografia do sul da Europa como factor estruturante, Políbio de Almeida declarou mesmo que a sociabilidade do latino se limita aos pequenos grupos e é avessa ao planeamento centralizado.
Os trabalhos do psicólogo social holandês Hofstede revelam características semelhantes, embora o façam segundo um ângulo diferente. A “distância ao poder” (que, para ele, entre outras coisas, significava o grau de rigidez da sociedade em que a influência do estatuto à nascença determina a posição social) seria, segundo ele, maior nas sociedades em que predominou a tradição romana e menor naquelas em que se manteve o igualitarismo germânico.
O que se terá passado em Inglaterra parece uma clara demonstração dos argumentos psicólogo social. Aí, as legiões chamadas pelo imperador Honório no ano 402 para defender Roma acabaram por nunca regressar. A retirada, que se julgava temporária, foi afinal, definitiva – deixando os Bretões impotentes perante as incursões dos Saxões e dos Anglos que, a partir da queda de Roma transformaram as suas incursões em migração. A sociedade dos bretões desapareceu em pouco tempo, pois ao contrário de outros pontos do antigo império, na Bretanha não terá havido assimilação entre os romano-bretões e os novos senhores germânicos. Os vestígios da ordem romana foram banidos, sendo substituída por uma sociedade germânica, mais primitiva mas mais igualitária. Hofstede salienta que, entre os Germanos o poder do chefe era subordinado à assembleia dos homens livres. Para o psicólogo social, um indicador histórico de pequena distância ao poder. Muito mais tarde, em 1215, o rei João, em conflito com os seus barões, outorgou a Magna Carta. Como salienta Hofstede, este documento, considerado o fundador das liberdades inglesas, representa a vitória dos direitos dos homens livres no seguimento da velha tradição dos povos germânicos. A pequena distância ao poder mergulharia assim profundamente na História de Inglaterra.
Da tradição romana derivaria também a elevada necessidade de “controlo da incerteza” (necessidade de tudo prever e codificar) comum a todos os povos latinos que existe em muito menor grau nos povos do Norte, onde além disso, são diferentes dois outros factores igualmente postos em evidência por Hofstede: “individualismo” forte no Norte (frontalidade nas relações e a aceitação de que existem ganhadores e perdedores) bem como elevada “masculinidade” (com a glorificação da competição e do sucesso, exigindo também a punição severa dos prevaricadores) que se opõe à “feminilidade” (onde se evita o confronto e a humilhação) característica das sociedades do Sul.
A língua é outra marca distintiva. Embora derivadas do grande grupo indo-europeu, as línguas europeias acabaram por divergir mais ou menos profundamente (processo aprofundado pelas grandes migrações do primeiro milénio) de tal forma que o seu linguajar cedo se tornou ininteligível mesmo para os seus vizinhos mais próximos, desenvolvendo-se assim um “cantonalismo linguístico” que reforçou as identidades locais que, nalguns casos se vieram mais tarde a agregar em nações, por vezes através da imposição duma língua comum. Daí a necessidade crescente de uma “língua franca” para comunicação inter grupal que, regra geral, apenas esteve ao alcance das elites, mantendo-se a língua própria para a comunicação intra grupal. Tal foi o papel do Latim, do Francês e é, hoje, claramente, o de um Inglês que, pela primeira vez está ao alcance duma larga massa de indivíduos. Sintomaticamente, trata-se duma língua europeia mas, em que tudo se passa como se ela fosse de origem extra europeia, já que as razões da sua adopção se relacionam com o enorme poder dos Estados Unidos de onde irradiam os modelos culturais, as modas, os critérios de gestão e o poder militar. Note-se que a mesma língua, quando usada pelos britânicos num período em que tinham poder semelhante ao dos norte-americanos de hoje (descontem-se a ausência das facilidades de comunicação existentes hoje em dia) nunca teve um papel relevante como internacional veículo de comunicação extra muros.
A religião, por seu lado, se forjou identidades, foi também motivo para as maiores fracturas
A matriz religiosa da Europa é, sem dúvida, judaico-cristã. O cristianismo, depois de penetrar na sociedade romana, demorou apenas três séculos a difundir-se pelo mundo mediterrânico e pelas zonas à beira das terras da oliveira e da vinha. Com efeito, o rito católico está profundamente ligado ao pão (trigo), ao vinho (videiras) e ao azeite (oliveiras), que o mesmo é dizer, a uma zona geográfica específica. A sua expansão para Norte obrigou mesmo à extensão das vinhas até à Bélgica e à Inglaterra, em contradição com as exigências naturais da sua vegetação, para satisfazer as necessidades da celebração da missa. Mas, como nota o geógrafo francês, Albert Demangeon, à medida que os transportes se tornaram menos onerosos, a cultura da vinha não tardou a recuar em direcção aos locais mais de acordo com as suas necessidades de vegetação e maturidade: O ensolarado Sul.
Muitos anos mais tarde, com o fim da Idade Média, a cristandade que obedecia ao papa de Roma enfrentou profundas tensões que acabaram por se materializar numa rotura que seguiu, aproximadamente, os antigos limites setentrionais do império romano, uma muito antiga e forte linha de divisão cultural. A Norte dessa linha, regra geral, a Reforma implantou o protestantismo e uma forma diferente de ver o Mundo, sem obediência ao papado romano. Foi aí, com ritos muito mais simplificados e austeros, não ligados à geografia mediterrânica, numa Europa mais rígida, mais fria – como não pensar na geografia? – que se desenvolveu um tipo de sociedade que acabou por ter um papel preponderante no Mundo. Max Weber, com razão ou sem ela, quis mesmo ver nessa separação a razão do nascimento do espírito capitalista. Segundo Weber, o protestantismo, ao santificar o trabalho e a vida diária em detrimento da espera pela recompensa depois da morte, terá, juntamente com o avanço científico, contribuído para a “descriminalização” do lucro e a sacralização do trabalho, opinião que completa com a observação de que quase todos os grandes homens de negócios da Alemanha do seu tempo eram protestantes, particularmente calvinistas.
No Sudeste da Europa, uma terceira divisão, ela também fruto de antiquíssimas fronteiras culturais resultante do Cisma do Oriente que, na sequência de insanáveis conflitos entre o imperador do Oriente e o Papa – que reflectiam o choque do mundo greco-bizantino com o mundo latino-germânico – deu-se o Cisma do Oriente que separou desde 1054 e até hoje, as duas igrejas, ficando a igreja ortodoxa subordinada ao Patriarca de Constantinopla. Quando a própria Constantinopla caiu sob domínio turco (1453) a cabeça da ortodoxia transferiu-se para Kiev e depois para Moscovo. Afinal, pelo menos, três, ou talvez mesmo quatro, “Europas”.
O papel das formas infranacionais de organização, mesmo das mais elementares, não é menor. O clã, baseado em laços de parentesco, é um agrupamento humano estruturado e básico que é simultaneamente, o mais antigo e o primeiro – quando territorializado – a assumir um significado protogeopolítico. Nesse caso, é ao nível do clã que se gera o primeiro relacionamento social entre o Homem e o seu território, por outras palavras, é ao nível do clã que nasce o embrião da geopolítica. Sucessivamente agrupado em tribos e em etnias, o clã ainda hoje se mantém nalgumas sociedades humanas, como é o caso de algumas zonas de África, ou num exemplo bem conhecido no Mundo Ocidental, nos célebres clãs escoceses que revelam, ainda hoje, um surpreendente grau de coesão. A tribo, sendo menos coesa que o clã, já que resulta da junção de vários clãs, contém o embrião da unidade política e como tal é considerada a justo título. Efectivamente, as primeiras manifestações políticas tal como hoje as entendemos – um povo, uma chefia, um território – coincidem com organizações tribais. As tribos acabaram por se federar em nações. Mas foi um processo muito longo e a coincidência das fronteiras nacionais com as fronteiras dos Estados é um fenómeno relativamente recente. Direitos hereditários, históricos ou de conquista, sobrepuseram-se demoradamente ao “direito dos povos disporem de si próprios”, sendo apenas na esteira das modificações sociais e políticas espoletadas pela revolução francesa que se iniciou a chamada “primavera dos povos”. Tido como causa primária de guerra (bem expressa em vários dos célebres 14 pontos do presidente Wilson) a não coincidência do Estado com a Nação foi fortemente restringida após a Primeira Guerra Mundial, quando o mapa político da Europa (e de outras partes do Mundo) foi redesenhado em conferências internacionais. Mas, no Mundo contemporâneo, muitos Estados não são constituídos por uma só nação e muito menos por uma só etnia. Fora da Europa, é certo, alguns Estados – verdadeiras construções artificiais – são mesmo constituídos, directamente, por tribos cuja ligação é apenas a de um conglomerado.
Com efeito, quando artificialmente agrupadas em Estados, muitas etnias não resistem às tensões sociais, demográficas, políticas e religiosas que se vão desenvolvendo, por vezes independentemente da vontade dos homens. A História – incluindo a contemporânea – está recheada de conflitos inter-étnicos. Mas a profunda resistência das formas primitivas da organização humana, é bem melhor demonstrada nos locais onde o Estado se revela demasiado frágil para cumprir as suas funções básicas – os Estados falhados – e onde a sociedade regride às suas identidades mais primitivas, sejam elas a etnia, a tribo, ou mesmo o clã. O estilhaçar da antiga Jugoslávia, ou mais recentemente, os acontecimentos na Líbia, constituem uma demonstração desanimadora para todos os que acreditavam na marcha inexorável do progresso.
Finalmente, a geografia física e dentro dela, em primeiro lugar, os factores climáticos. O historiador David Landes discorreu longamente sobre o tema. Segundo ele, a Europa, particularmente a sua parte ocidental, goza de condições privilegiadas: os Invernos são suficientemente frios para impedir a propagação das doenças e suficientemente suaves para um bom equilíbrio entre o Homem e o meio. A pluviosidade distribui-se ao longo do ano, criando condições de fertilidade que dificilmente se encontram em outro lugar. Teria sido mesmo este fornecimento uniforme e moderadamente abundante de água que, conjugado com baixos índices de evaporação, livraram os europeus da tirania prevalecente, designadamente, nas “civilizações fluviais”, onde as indispensáveis obras de irrigação geraram poderes centrais e autoritários que a Europa não conheceu.
Estas condições excepcionais favoreceram os europeus com colheitas boas e relativamente uniformes, conjugados com grandes rebanhos e densas florestas. Desta conjugação quase única, nasceram civilizações sedentárias que criavam gado que se veio a revelar maior e mais forte do que no resto do Mundo, além de produzir fertilizante natural mais saudável do que aquele, à base de fezes humanas, que era utilizado na Ásia. O poderoso cavalo europeu foi, assim, capaz de arcar com o pesado cavaleiro medieval, irresistível numa carga e durante muitos anos imbatível num combate convencional. Foi também a força do animal europeu que permitiu mais eficazes trabalhos pesados e o transporte de bens, tal como, mais tarde mas de enormes consequências, o reboque de artilharia para o campo de batalha.
Em consequência, os europeus tiveram acesso a uma dieta mais rica, crescendo cada vez mais fortes e relativamente livres dos vermes que atormentavam a China e a Índia. Mais fortes, portanto, não só os animais mas também os homens. O domínio europeu que mais tarde se estendeu pelo mundo, deveu-se, em grande parte, às desigualdades da natureza.
Mas esta pujança resulta também de outros impulsos. Paul Kennedy, o prestigiado autor da “Ascensão e Queda das Grandes Potências” salienta que, no princípio do século XVI nada faria supor que os pequenos Estados da Europa Ocidental se viessem a impor aos grandes centros de poder de então: a China Ming, o império Otomano, o império Mongol, a Moscóvia e o Japão. Teria sido a ausência de uma autoridade central única – para Kennedy um feliz resultado da queda do império romano e da das características geográficas recortadas e compartimentadas da Europa, onde não existem grandes planícies a dominar ou bacias hidrográficas gigantes rodeadas de zonas férteis capazes de impor um pensamento uniforme – que teria sido responsável pelo enorme grau de liberdade e pelos relativamente poucos entraves à mudança que teriam produzido a espiral de progresso científico e técnico que conduziu à supremacia do Ocidente.
Com tais ferramentas, não é de espantar que, durante um período bastante alargado a Europa tenha dominado o Mundo. No entanto, a pujança dos europeus virou-se contra eles próprios e serviu também para acicatar as suas rivalidades. Como mesmo um superficial olhar sobre a História demonstra, os povos da Europa parecem nunca ter aspirado a amplas uniões.
Tendo já sido discutidos os aspectos não geográficos e climáticos (embora fortemente influenciados pela geografia física) que parecem estar na base de tal situação, chegou a vez de olhar para a geografia física, cuja perenidade não deixa de se manifestar um pouco por todo o lado na Europa – como, aliás, no resto do mundo – onde continua a actuar como força profunda. Não será demais notar que junto da Europa se encontram ilhas de grandes dimensões cuja massa crítica foi suficiente para gerar nações insulares, com o seu típico sentimento de excepção e de isolamento. Particularmente, a Grã-Bretanha que foi sede de poder marítimo, materializando a superioridade europeia enquanto se mantinha à ilharga do continente.
Na Europa existem, igualmente, uma série de grandes penínsulas e é sabido que estas têm tendência a autonomizar-se do continenteou mesmo a unir-se politicamente. De facto, todas as grandes penínsulas da Europa albergam, desde longa data, um ou mais Estados independentes, este último caso justificado por barreiras geográficas (caso da Escandinávia) ou culturais (caso da península Ibérica). Abertas ao Atlântico ou ao Mediterrâneo, todas elas foram sede de poderes marítimos, com a mentalidade típica destes poderes que, já há cerca de 2 500 anos, tinha chamado a atenção do historiador grego Tucídides e que se diferencia fortemente da mentalidade continental que prevalece na Europa nuclear.
Igualmente, a orografia da Europa é caracterizada pela profusão de cadeias montanhosas que, ou compartimentam o espaço (entre tantos outros, o caso dos Pirinéus), ou constituem zonas de estabelecimento de povos montanheses (caso da Suíça). Em qualquer dos casos, constituíram durante milénios barreiras físicas à fácil circulação, facilitando também a defesa e inviabilizando assim os grandes impérios. São também originadoras de verdadeiros “cantões culturais”, já que a cultura montanhesa tende a diferir daquela que, normalmente, predomina na planície. Foi, entre outras razões, esta orografia que permitiu que pequenas – por vezes pequeníssimas! – unidades políticas subsistissem até hoje. São marcas que o progresso acabará talvez por esbater, mas que é ilusão ignorar.
As bacias fluviais da Europa têm também o seu papel, bem demonstrado pelos geógrafos alemães da primeira metade do século XX. Não existindo um grande rio estruturante como o Nilo, o Eufrates, ou o rio Amarelo, os poderes e a riqueza da Europa concentraram-se ao longo de vários grandes rios navegáveis que possibilitaram a circulação de bens a baixo preço. O Danúbio tem Viena, o Pó tem Milão, o Reno tem Amesterdão e Frankfurt e o Tamisa tem Londres.
Mais uma vez, a geografia separa o Norte e o Sul da Europa que, com excepção do vale do Pó, não possui nenhum grande rio utilizável pelo comércio. Como possível consequência, os povos do Sul, quando desenvolveram o seu próprio comércio fizeram-no à distância e por via marítima, desfavorecidos pela natureza que lhes não deu a possibilidade de ligar os seus portos com o interior que, de outro modo, se poderia ter desenvolvido. Deste modo, o Norte da Europa tornou-se mais urbano, industrial e tecnocrático, enquanto o Sul tende a ser mais rural, agrícola e menos desenvolvido industrialmente. Num mundo que privilegia os valores do Norte, o anteriormente civilizado e refinado Sul fica, por agora, a constituir uma espécie de periferia.
Existem assim várias “Europas” e, dentro delas, uma variada gama de Estados que, tendo resistido às vicissitudes da História, mantêm ciosamente as suas prerrogativas de Estados-Nação. Não faltaram as ambições de impor a unidade pela força. Mas mesmo quando o seu poder militar era esmagador, todas esbarraram na rebeldia daqueles que teimavam em ser autónomos.
As últimas duas grandes tentativas de cariz militar vieram da Alemanha e o seu poder era tão forte que foram necessárias intervenções extra-europeias para repor a ordem anterior – ou pelo menos, algo que se lhe assemelhava. Também a mais recente tentativa, desta vez não militar, teve na Alemanha um dos principais impulsionadores. Um pouco de recuo analítico parece útil para a sua melhor compreensão.
Os alemães, tendo padecido em grande escala do “cantonalismo do tipo europeu” até 1870, começaram os passos para a sua própria unidade por uma união aduaneira que, potenciando factores geográficos e culturais comuns, não tardou a produzir os resultados desejados. Foi talvez um sucesso excessivo, na medida em que, a breve trecho, a Alemanha se tornou na principal potência europeia (a população cresceu 65 por cento entre 1871 e 1914 e nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha produzia duas vezes mais aço do que a Grã-Bretanha …) não tardando a revelar ambições hegemónicas.
Foi um sonho que correu mal e a Alemanha vencida foi obrigada a assinar o humilhante tratado de Versalhes em 1919, uma chaga para o orgulho nacional alemão. O objectivo de guerra, definido em Setembro de 1914 pelo chanceler Bethmann-Hollweg de formar uma união aduaneira que fosse da França à Polónia e que afastasse do continente europeu a Grã-Bretanha e a Rússia, e teorizado por Friedrich Nauman (1860-1919) em 1915 com o seu livro Mitteleuropa, falhara totalmente.
Quando em 1926 a Alemanha foi admitida na Sociedade das Nações, o seu governo pacifista, que lutava com profundas dificuldades internas e com os demónios do revanchismo, não tardou (1929), pela voz de Gustav Stresemann a propor a criação dos Estados Unidos da Europa.
Mas, nesse mesmo ano, o crash da Bolsa de Nova Iorque, ao mergulhar o Mundo em enorme crise, calou também as vozes do bom senso e libertou os demónios do nacionalismo e do racismo. Dez anos depois, o Mundo assistia ao desencadear da maior hecatombe da História. Dela resultou, não só nova derrota da Alemanha (de novo foi necessário o Mundo para a vencer), como a ruína da Europa e o seu ocaso na cena mundial.
Ainda durante a guerra, os juristas alemães construíram o que pensavam ser um novo modelo de relacionamento entre os Estados. Nele, algumas das mais perenes e negativas matrizes do pensamento germânico marcavam presença. Elaborado pelo jurista Carl Schmitt (1888-1985) que dirigiu o Instituto de Guerra para a Política e Direito Internacional, o projecto de Tratado entre a Alemanha, Itália e o Japão sobre a configuração dos Grandes Espaços na Europa e na Grande Ásia Oriental, desenhava um Mundo extraordinariamente diferente daquele que veio a ser criado pela Declaração de São Francisco e pelos princípios de Bretton Woods.
Os Grandes Espaços seriam articulados em Comunidades de Estados, sob a orientação dum Estado Director que se reservava o direito de impor, no seu interior, as suas próprias concepções políticas. Nasceria assim uma entidade menos unitária que o Estado mas mais coesa. Abaixo do Estado Director de cada Comunidade de Estados encontrar-se-iam Estados independentes, mas de soberania limitada. Em teoria, a adesão destes Estados – para a qual seriam convidados todos os Estados geograficamente localizados no interior do Grande Espaço – seria voluntária e regida por um tratado bilateral entre o Estado Director e cada um dos Estados aderentes (artigo 3º). As relações com os Estados não aderentes seriam reguladas pelo Direito Internacional.
Numa antevisão interessante, o Tratado referia a existência e reconhecimento do Direito Internacional, do Direito Interno dos Estados e criava dentro de cada Comunidade de Estados uma nova figura: o Direito Comunitário. É claro que o aproveitamento desta figura pelos inimigos da ideia de Comunidade Europeia, escamoteia, justamente, a enorme diferença entre as duas concepções: a adesão à CEE ou à UE resultou dum acto volitivo e não de uma imposição pela força, como muito bem salientou Mario Losano.
Apesar de todos os receios que um possível ressurgimento da Alemanha causava aos seus antigos adversários, ou talvez por causa disso, quando surgiu a nova autonomia política alemã – a República Federal da Alemanha (RFA) – os fundadores do Benelux, juntamente com a França, a própria RFA e a Itália resolveram, em 1952, pôr em conjunto os meios industriais que, tradicionalmente, sustentavam os aparelhos militares, criando a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), dando origem à primeira das comunidades europeias.
No mesmo ano, os mesmos países tentaram ir mais longe e integrar os próprios aparelhos militares. Foi assinado o Tratado de Paris que criava a segunda comunidade europeia – a Comunidade Europeia de Defesa (CED) – que acabou por abortar ao ser rejeitada pelo parlamento francês. Com isso, a importância da NATO saiu reforçada e, garantido o “escudo” norte-americano, a Europa pôde dedicar-se ao desenvolvimento económico.
Em 1958, pelo Tratado de Roma, os 6 países da CECA assinavam o tratado da Comunidade Económica Europeia (CEE) que, tendencialmente, criaria um espaço económico comum. No mesmo ano, outro meio de fazer a guerra, o átomo, era colocado em comum pelo tratado EURATOM, passando, assim, a existir, 3 comunidades europeias. Desde aí a CEE não deixou de se alargar e aprofundar.
Tratou-se de uma construção sem paralelos históricos e cujos êxitos são inegáveis e sem precedentes no continente europeu e cujos pressupostos se mantiveram até ao terramoto político de 1989. Nunca tanta prosperidade e cooperação entre europeus ocidentais foram possíveis durante tanto tempo. O conflito inter-estadual parecia definitivamente afastado, para não falar da guerra.
Mas em 1989, o Mundo mudou. Como é habitual, na altura apenas se falou dos “dividendos da paz” e dos radiosos amanhãs. O espectacular recuo da URSS cobriu a profunda alteração que se deu na Europa. De facto, suscitando, embora, antigos receios em França, no Reino Unido e na Rússia, receios que tinham motivado no século XX, a “Triple Entente” em 1907, a cooperação franco-russa dos anos 30 e a partição e ocupação da Alemanha após 1945 (Mitterrand chegou mesmo a acalentar o sonho de cooperar com Gorbachev para impedir a reunificação alemã, sob o olhar complacente da Sr.ª Tatcher), a Alemanha reunificou-se, na esteira da queda do muro de Berlim.
Com um quadro internacional profundamente alterado, o projecto europeu que começara por um grande “Zollverein” (designação da união aduaneira iniciada em 1834 na Alemanha sob a égide da Prússia e que acabou por facilitar a criação do II Reich) embora com a finalidade de “pacificar” a Alemanha e tornar a guerra impensável, foi mesmo transformado em União Europeia em Maastricht em 1992.
A impotência europeia perante a crise da Jugoslávia – a cacofonia começara logo com o reconhecimento unilateral pela nova Alemanha reunificada da Eslovénia e da Croácia – empurrou os propugnadores da ideia europeia e do ressurgimento do velho continente como um actor mundial, para novos saltos em frente. Os progressos teóricos obtidos em Amesterdão, Helsínquia, Nice e, finalmente, em Lisboa, possibilitaram a criação duma fachada de direcção política, duma caricatura de política externa comum, bem como duma espécie de estrutura militar destinada a tarefas menores – as missões de Petersberg.
Se comparados com o grande êxito da CEE, as ambições de aprofundamento da União não têm produzido resultados brilhantes. Ao incorporar uma gama muito vasta de Países – com tradições, culturas, interesses, fidelidades e hostilidades por vezes bem diversas – e ao tentar alargar a sua acção para além da cooperação económica, a UE, e perdoe-se a simplificação aqui efectuada para efeitos analíticos, enfrenta dois dilemas básicos: ou executa a política acordada entre os seus membros mais poderosos, ou – devido à grande divergência de alguns interesses nacionais e regionais – restringe-se, por via de regra, ao consensual, ou seja, ao menor denominador comum.
Também o método, seguido até aqui na construção europeia – decisão de “cima para baixo”, excluindo as supostamente pouco esclarecidas massas – parece ter atingido os seus limites, já que elas exigem crescentemente ser ouvidas, mas quando consultadas inviabilizam frequentemente o aprofundamento da construção europeia, por vezes, reconheça-se, apenas para “punirem” os seus governos nacionais. O que não facilita as coisas, favorecendo, antes pelo contrário, a renacionalização das políticas e o renascer dos egoísmos nacionais. Só grandes eventos unificadores parecem ser capazes de ressuscitar a fé dos europeus, mas a realidade e a imaginação dos Homens teimam em não os produzir.
Pelo contrário, a recente crise financeira veio pôr a nu uma série de fragilidades estruturais e trouxe à superfície as várias “Europas” que subjazem às construções teóricas. Simplificando muito para efeitos de análise (a realidade é demasiado complexa e multifacetada para poder ser abordada num texto desta dimensão), basicamente, uma Europa do Norte, fria, protestante e economicamente florescente que, tendo tirado enormes vantagens da moeda única, vem recusando a solidariedade àqueles que percepciona como os anárquicos países do Sul os quais, com a cegueira característica dos que não valorizam a previsão e o planeamento, viveram a ilusão de ser nórdicos sem o ser e abdicaram dos seus mais elementares aparelhos produtivos, adoptando também modos de vida que não são os seus, ao mesmo tempo que delapidavam uma riqueza que não possuíam.
Uma terceira “Europa”, ainda mais continental e encravada, ainda e sempre temerosa da Rússia (o peso da História e da posição geográfica) posiciona-se a Leste e tende a subordinar-se aos interesses alemães, enquanto olha com preocupação para as crescentes relações entre a Alemanha e a Rússia que ressuscitam velhos espectros históricos, parecendo acreditar bem mais na eventual protecção norte-americana do que na solidariedade europeia e nos seus incipientes mecanismos de defesa.
Receios que se não circunscrevem à Europa de Leste. Efectivamente, o que se passa a nível planetário parece justificar todos os receios. Aí, também as dificuldades parecem favorecer velhos egoísmos e o regresso das políticas de poder que são delas um inevitável corolário. Halford Mackinder teorizava em 1904, num texto clássico do pensamento geopolítico, que uma aliança entre a Alemanha e a Rússia criaria tal conjugação de poder que as potências marítimas se veriam excluídas da Eurásia. Contra esse pesadelo o Reino Unido e os EUA se bateram na I Guerra Mundial e é legitimo supor que foi para de novo o impedir que os Estados Unidos intervieram na Europa a partir de 1942. A NATO, geopoliticamente justificada por Mackinder em 1943, voltou a servir a mesma finalidade. Hoje, com uma escola geopolítica russa que visa a reconstituição imperial e o renascimento dos panismos, os europeus têm evidentes razões para se preocupar de novo, em especial quando os EUA se parecem desinteressar das questões europeias. Por quanto tempo?
Neste cenário, a Europa distrai-se com as questões financeiras e não lhe sobra nem energia nem visão para cuidar da sua amachucada união. O alargamento deixou de fazer parte da retórica e suspeita-se que existe a percepção de ele que traria mais problemas que benefícios, já que poderia importar para o seio da União fracturas e rivalidades que poderiam tornar os problemas actuais em algo ainda mais espinhoso de resolver. Assim, as velhas divisões tornam-se, de novo, muito claras e radicam, pelo menos em parte, em factores culturais e geográficos que acima se procuraram explicitar. Mesmo que se trate apenas de percepções e não de realidades concretas, a diferença não é grande. Há esperança para a Europa ou os velhos fantasmas vão regressar?
O que se passa na Hungria (lembremos, igualmente, a cisão da Checoslováquia), na Finlândia, na Dinamarca (que revogou unilateralmente o Acordo de Schengen) ou, de forma diferente, na Bélgica dá grandes motivos para circunspecção. Não só pela mão de partidos nacionalistas, a etnia e a História regressam em força, mesmo na Alemanha, onde já se proclamou a falência do multiculturalismo e se promulgaram leis de cidadania alemã que lembram períodos mais sombrios da História recente. Não convirá esquecer que, em 1944, quando nem a propaganda podia escamotear o calamitoso decurso da guerra para a Alemanha, um artigo intitulado “O fim da Europa?” publicado na revista do MNE alemão Berlin Rom Tokio sublinhava que qualquer que fosse a reorganização da Europa depois do conflito, a Alemanha continuaria a ser um Estado Director ou Estado Guia, sob pena do desmembramento da Europa. Será a isso que estamos a assistir?
Ambos os Helmuth (Kohl e Schmidt), que governaram a Alemanha durante 24 anos, temiam esse futuro. Convencidos de que os dirigentes que se lhes seguiriam (não só na Alemanha) se não lembrariam da guerra e voltariam aos nacionalismos do século XIX, recomendavam que se acelerasse a construção europeia como panaceia contra novo desastre. Schmidt ia mesmo mais longe: para ele, a Alemanha nunca deveria ter armas nucleares, nem pertencer ao Conselho de Segurança da ONU, pois demonstrara do que era capaz quando “deixada à solta”.
Nem foi preciso tanto tempo. O egoísmo não tardou a vir à superfície. Logo em 1991, durante a primeira Guerra do Iraque, o próprio Kohl recusou considerar um ataque com mísseis sobre a Turquia como um ataque à NATO, recusando a solidariedade que faz a força de uma aliança. Pouco mais tarde, como já referido, a Alemanha, sem qualquer concertação com os seus parceiros, reconheceu unilateralmente a independência da Croácia e da Eslovénia e foi-se convertendo a uma lógica de favorecimento dos seus próprios interesses económicos, situação particularmente clara nos Balcãs. A franqueza tem, no entanto, limites e em Maio de 2010, o presidente Kholer foi obrigado a resignar após ter declarado, no Afeganistão, que a intervenção das forças armadas alemãs tinha por objectivo proteger os interesses económicos alemães.
De facto, é muito difícil contrariar as forças profundas que poderão apenas ser paciente e persistentemente contornadas. Esta tem sido uma lição desanimadoramente difícil de entender pelos que, ignorando-as, tal como as crianças na praia, constroem castelos de areia convencidos de que estes poderão resistir à força da maré.
Num continente que inventou o Estado-Nação, que continua retalhado em múltiplas soberanias, onde o egoísmo dos cidadãos é expresso democraticamente e tem força de lei, as uniões voluntaristas de topo têm dificuldade em vingar, embora, naturalmente, nada seja impossível. O processo de construção europeia – qualquer que venha a ser o figurino em que venha, eventualmente, a estabilizar – além dum sonho mobilizador que ultrapasse as meras questões económicas (nunca está, evidentemente, excluída uma nova agregação negativa pelo medo de terceiros), precisa de tempo e só pode ser conseguido à escala de várias gerações, exigindo também que as finalidades básicas do Estado – a Segurança e o Bem-Estar – possam ser exercidas num clima de acalmia, de pacífica convivência e de prosperidade interna.
É evidente que o futuro da Europa tem, no campo puramente teórico, várias soluções. Sem pretender fazer aqui uma análise exaustiva de todas as possíveis variantes, abordar-se-ão apenas três possibilidades: A primeira, apenas impensável há alguns anos, é do fim da União. Quer ela revista a forma do regresso puro às políticas nacionalistas do século XIX, quer apenas se trate de restringir a União a um clube dos mais ricos, dele excluindo as periferias, a tendência para o regresso, desta vez às claras, do(s) Estado(s)-Director(es) seria uma inevitabilidade. Sem dúvida que os agrupamentos geopolíticos “naturais” seriam favorecidos por esta solução. Resta saber o destino dos elos mais frágeis: Reduzidos a uma espécie de Estados de soberania limitada ao pior estilo da visão de Carl Schimtt, poderiam tentar congregar-se entre si em conjuntos geopolíticos naturais, embora tal futuro dificilmente seja realizável devido às grandes diferenças que continuariam a existir entre eles. A pobreza é má conselheira…Dentro do cenário anterior existe ainda a possibilidade da procura de solidariedades externas, possibilidade que se crê mais realista para Estados com ligações históricas extra-europeias. O Reino Unido (que não faz parte da moeda única) é um claro modelo dessa possibilidade, com a sua ligação especial aos EUA e o seu tradicional afastamento das políticas continentais, cujas hegemonias quase sempre combateu. Um forte declínio europeu pode levar alguns Estados da actual União a trilhar de novo os caminhos do passado.
Outra possibilidade é, obviamente, o aprofundamento da União segundo o modelo federal, ultrapassando o modelo inter-governamental que tem revelado uma forte tendência para o Estado ou grupo de Estados Directores, como afinal, almejavam os “pais fundadores”. Essa solução talvez permitisse ir para além do Estado Pós-Moderno que, afinal na prática, perpetua a noção de que sendo os Estados iguais, uns são-no mais do que outros. Ela poderia também responder à fraca solidariedade que as várias “Europas” têm vindo a demonstrar umas com as outras e exigiria, pelo menos, uma governação económica da União.
Existe, no entanto, outra alternativa, esta fortemente provocadora, mas talvez, igualmente, promissora: Insistiu-se anteriormente na força das formas infranacionais de organização social. Não sem razão, já que elas subjazem em todas as sociedades e com Estados que são consabidamente grandes demais para as pequenas coisas e pequenos demais para as grandes, os localismos tendem, embora noutro plano, a ganhar força. Talvez por isso mesmo seja necessário ultrapassar o Estado-Nação, mesmo o pós-moderno, e voltar a alguma forma (as recorrências na História nunca revestem a mesma forma) de tribo e aos localismos, os quais, duma forma, aliás, confusa e tacteante vão emergindo sem uma lógica geopolítica que lhes dê, por enquanto, coerência. Se aliarmos a isto a inegável alteração interna que as políticas europeias provocaram no interior dos Estados, aos hábitos de livre-circulação, à clara disputa do monopólio do poder dos Estados por grupos transnacionais, sejam eles grupos financeiros, movimentos sociais ou de opinião, teremos talvez o cadinho fértil que propicia a mudança.
Será que o continente que inventou o Estado-Nação poderá igualmente decretar o seu óbito? Será que a cooperação é possível pelo consenso dos valores e da cultura, como uma obra recente pretende, embora com enormes lacunas, ter sido, afinal, o modelo prevalecente na Grécia Antiga? Será que a paz é possível pelo simples consenso, pela “interdependência complexa” (uma liberdade tomada aqui com as ideias de Nye e Keohane) e sem uma forte hegemonia tutelar? Ou será que, afinal, e dando razão aos chamados pensadores da escola “realista”, as forças profundas condicionam de tal forma a natureza humana que estaremos condenados a repetir-nos?
Importa agora reflectir, ainda que brevemente, sobre o papel de Portugal neste tabuleiro de interesses cruzados. Portugal é um dos mais antigos países europeus e certamente, o que de entre eles possui as fronteiras mais antigas. Nunca tendo sofrido tentativas secessionistas – mesmo quando teve mais que um poder político eles lutavam pelo mesmo poder central – pode bem dizer-se que possui um grau invejável de coesão nacional, qualidade tanto mais notável quanto não radica em nenhuma diferenciação geográfica marcante (se exceptuarmos a sua posição), mas fundamentalmente em factores linguísticos e culturais. Mas a posição merece um pouco mais de reflexão. Efectivamente, é a posição de Portugal que possibilitou (é óbvio que não determinou) a vocação marítima, é da posição que resulta um clima mais benigno do que na generalidade do mini-continente Ibérico e é da posição que resulta que o país se tenha constituído muito cedo como uma plataforma de apoio aos poderes marítimos que desde então, de uma forma mais ou menos directa o tutelaram. Como país do sul, temperado embora pela forte influência da sua fachada atlântica Portugal ostenta a maioria de todos os defeitos e qualidades dos povos do Sul, nomeadamente o “Policronismo” (ligado ao tradicional “desenrascanço”). Classificado por Hofstede entre os países em que reina a maior “Distância ao Poder”, “Feminilidade”, “Colectivismo” bem como grande necessidade de desenvolver mecanismos de “Controlo da Incerteza” que segundo o psicólogo social radicariam na herança romana foi, em determinado período da sua História, capaz de prosseguir com notável constância e determinação uma expansão que ainda hoje espanta e igualmente, capaz de lançar pontes interculturais e interétnicas que manteve até aos dias de hoje.
Persistentemente pobre em recursos naturais, viveu durante séculos da exploração dos recursos dos seus territórios extra-europeus e quando tal possibilidade terminou, não tardou a virar-se para a Europa, ao arrepio de uma tradição pluricentenária. Como recém-convertido, prosseguiu com zelo os objectivos das políticas comuns tendo, nomeadamente, ido mais longe que a maioria dos Estados europeus no desmantelamento do seu sector primário, o que o coloca numa situação particularmente vulnerável perante a crise por que passa a União.
Historicamente ligado ao mar, o país viu-se dirigido durante as últimas décadas principalmente por antigos emigrados, cegos pela miragem europeia para quem o mar representava o saudosismo do Império e assim, uma outrora relativamente numerosa marinha mercante e pesqueira a que estava associada uma indústria de construção e reparação navais desapareceu, talvez por muito tempo.
Recentemente, o país parece ter redescoberto o mar. Dotado de uma ZEE de enormes dimensões que desperdiçou e cujos direitos estão em parte em mãos comunitárias (art.º 3º do Título I – Domínios e competências da União, Tratado de Lisboa), Portugal pugna pela extensão da sua plataforma continental que, alimentando alguma megalomania, multiplicaria o país por quarenta! Mas, por enquanto, a exploração de tão vastos recursos é meramente retórica. De facto, multiplicam-se as declarações políticas, os congressos e os artigos de opinião, mas faltam as acções concretas.
De um modo geral mal administrado e vivendo de empréstimos (uma tradição do século XIX que entrou forte pelo século XX até ao Estado Novo, tendo sido retomada pela III República…) o país não pode, de facto, sonhar com políticas independentes, muito menos num domínio em que os apetites dos “Grandes” da Europa não deixará de se manifestar. O grande Oceano, onde jazem riquezas incalculáveis, parece, assim, destinado a constituir uma moeda de troca com outros apoios essenciais, venham eles de onde vierem.
De facto, Portugal parece não se sair muito bem de nenhum dos cenários de evolução traçados. O fim da União não será certamente o fim de Portugal, mas a renacionalização de algumas políticas levará, muito provavelmente, à associação. Se um cenário tão catastrófico levar ao estilhaçar do Estado espanhol, um federalismo Ibérico poderá, eventualmente, subsistir e com ele, um Estado que, pelo menos em nome, será Portugal. Mas esse Estado terá, talvez intactas, as suas ligações extra-europeias, duma forma que nenhuma putativa nação hispânica pode igualar. Poderemos dar a volta à História?
Talvez a melhor solução para Portugal seja o aprofundamento da União Europeia pela via federal. Já se exprimiram as fortes reservas que este cenário merece do ponto de vista da propensão geopolítica, mas ele não é, naturalmente impossível. Uma espécie de “Arkansas” europeu (mas trazendo consigo um enorme espaço marítimo e afinidades transcontinentais e garantidas as representações das minorias subjacentes a um modelo federal) é obviamente melhor que um Estado exíguo, ao qual poderemos estar condenados com o fim do projecto europeu.
Na terceira hipótese, Portugal parece sair-se comparativamente melhor. Pelas suas pequenas dimensões e coesão, o país seria uma região natural com suficiente massa crítica numa Europa das Regiões, maior talvez do que aquela que hoje possui a Bélgica na Europa das Nações.
Finalmente, e saltando para o reino da utopia, não podendo contrariar a geografia física, o país poderá, apesar de tudo, estabelecer-se como parcela europeia duma entidade pluricontinental, como aliás aconselhava o hábil Talleyrand ao conde Palmela, durante a Conferência de Viena em 1815, a propósito do futuro estatuto do Brasil. A História está longe de ter terminado…
Ficam aqui mais interrogações que respostas, mas encontrá-las, com realismo, recusando o determinismo e pensando “out of the box”, é a responsabilidade das elites europeias de hoje, nela incluindo, evidentemente, as portuguesas. O falhanço pode custar-nos, a todos, muitíssimo mais caro que aquilo que podemos pagar.
Jornal Defesa