Pirataria na Somália: aspirinas, antibióticos e cirurgias
Nuno Sardinha Monteiro
Sintomas da doença
Tem-se assistido, nos últimos anos, a um recrudescer dos actos de pirataria, que podem ser definidos como abordagens ou tentativas de abordagem de um navio com o objectivo de cometer roubo ou outro crime e envolvendo a utilização efectiva de força ou a intenção de o fazer. Em 2008, contabilizaram-se, em todo o mundo, 293 actos de pirataria, dos quais 111 se verificaram no Corno de África (38% do total). Em 2009, o número global elevou-se para 406, com a incidência no Corno de África a aumentar para 53% do total, correspondentes a 217 ocorrências.
Estes valores mostram que existe um problema naquela região, tanto mais importante quanto ali passam cerca de 20 000 navios por ano. Isso significa que o regular fluxo de tráfego marítimo, que é um dos sustentáculos da economia globalizada em que vivemos, está sob ataque, por parte de organizações e de gangs somalis que fazem da pirataria o seu modo de vida.
Causas da doença
Antes de abordar as causas para a situação na Somália, importa referir que existe um complexo de problemas na região, que afecta não só esse país, mas também outros como o Iémen, o Djibuti ou a Etiópia. Todos eles apresentam elevadíssimas taxas de natalidade, mas as fracas condições naturais associadas à escassez de recursos dificultam enormemente a subsistência das respectivas populações. Esta mistura acaba por provocar autênticas tragédias humanitárias e por empurrar muitos jovens (e outros menos jovens) para a criminalidade: terrorismo, traficâncias, pirataria, etc.
Foi neste contexto geral que, nos anos mais recentes, a actividade dos piratas somalis cresceu acentuadamente, ajudada por um conjunto de causas, entre as quais se pode apontar uma causa endémica ou geral (na base de toda a anarquia que se vive na Somália) e três causas particulares (mais ligadas à questão da pirataria, em concreto).
A causa endémica é a desestruturação da Somália, que se transformou num Estado falhado a partir de 1991, com a queda do seu último Governo efectivo, chefiado pelo General Muhammad Siad Barre. O caos e a permissividade imperam em quase todo o território, não havendo qualquer autoridade capaz de restabelecer a lei e a ordem, o que propicia o aumento das actividades ilegais, quer em terra, quer no mar.
Quanto às causas particulares, a primeira remete directamente para o sentimento de impotência dos somalis face à depredação dos seus recursos de pesca por embarcações estrangeiras, que actuavam ilegal e impunemente nas águas sob soberania ou jurisdição da Somália.
A segunda causa particular tem a ver com a constatação da realização de despejos de resíduos tóxicos nas águas jurisdicionais somalis, que terão, alegadamente, provocado malformações na respectiva população.
Finalmente, a terceira causa particular que levou muitos somalis para a pirataria foi o tsunami de 26 de Dezembro de 2004, que se fez sentir com muita intensidade ao longo da costa deste país, matando milhares de pessoas e devastando vilas inteiras. Muitos pescadores, tendo perdido as embarcações e os utensílios que lhes asseguravam o sustento, viraram-se para a pirataria marítima, como alternativa de sobrevivência.
Cirurgia
As causas profundas para a pirataria no Corno de África tornam extremamente difícil encontrar uma solução para o problema, pois a perspectiva do lucro fácil, através de actividades piratas, tenderá a funcionar sempre como um chamariz para populações com dificuldades crónicas. A isso acresce o facto de a pirataria, naquela região, ser actualmente um negócio – e um negócio altamente rentável – controlado por organizações criminosas internacionais, que são quem mais lucra com os resgates pagos pelos navios e pelas tripulações sequestradas.
De qualquer maneira, a solução terá que passar por tentar assegurar condições de governabilidade e de alguma normalidade política e institucional na Somália, que permitam restaurar a autoridade do Estado e estabelecer uma economia viável. Isso requer uma acção de state building abrangente, que integre as várias dimensões essenciais à edificação de uma nação, começando inevitavelmente por uma intervenção militar em larga escala, mas incluindo a reconciliação política, o fomento da governação, a reconstrução económica e o fortalecimento das instituições e da sociedade civil.
Não será uma tarefa fácil, pois a falta de condições e de recursos naturais na Somália dificultarão qualquer tentativa de estabelecimento de uma economia estável e de promoção de formas de vida alternativas à pirataria. Além disso, não parece haver vontade nem capacidade para uma intervenção militar alargada na Somália, essencialmente por três motivos.
Em primeiro lugar, as organizações internacionais e os países capazes de o fazer estão exauridos, devido ao esforço que está a ser necessário desenvolver no Afeganistão e no Iraque, não parecendo existir capacidade sobrante para encetar mais uma intervenção.
Em segundo lugar, o prolongamento no tempo das guerras no Afeganistão e no Iraque também contribui para que os decisores políticos vejam com grande relutância uma intervenção na Somália, que, também ela, se poderia arrastar por tempo indeterminado.
Finalmente, ninguém quererá ver repetida a humilhação sofrida pelos norte-americanos em 1993 em Mogadíscio, na Somália, a qual foi perpetuada no filme Black Hawk Down (Cercados).
Ou seja, existe um problema na Somália, mas não existe disponibilidade para tentar atacar o problema pela raiz. Fazendo uma analogia com a medicina, temos um paciente com uma doença grave, com indicação cirúrgica, mas não há disponibilidade de salas de operações, de cirurgiões e de enfermeiros para efectuar a cirurgia. Assim, na impossibilidade de efectuar a cirurgia, torna-se necessário actuar com aspirinas e antibióticos, para mitigar o sofrimento do doente, para que a doença não alastre e para ajudar a que o corpo se regenere.
Aspirinas
A comunidade internacional percebeu, assim, que a única forma que dispunha para atenuar este problema no imediato seria o patrulhamento por navios de guerra, cuja actuação encontra suporte legal, essencialmente, na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e em várias Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Logo em Outubro de 2008, a NATO, em resposta a um pedido da ONU para protecção dos navios do “Programa Alimentar Mundial”, que asseguravam o fornecimento de alimentos à Somália, lançou a operação ALLIED PROVIDER, que permitiu assegurar a entrega de 30 000 toneladas de ajuda humanitária à Somália. A partir de Março de 2009, a NATO desencadeou a operação ALLIED PROTECTOR, com um mandato mais alargado, que visava também dissuadir, prevenir e reprimir actos de pirataria ao largo da costa da Somália, bem como proteger navios mercantes vulneráveis que navegavam na área.
Em Agosto de 2009, a operação ALLIED PROTECTOR deu lugar à operação OCEAN SHIELD (ainda em curso e com duração prevista até final de 2012), com uma abordagem de combate à pirataria mais alargada e holística: que, no jargão da NATO, se designa como comprehensive aproach.
Importa referir que – no quadro do comando da força-tarefa da Aliança Atlântica Standing NATO Maritime Group 1, exercido pelo nosso país entre Janeiro de 2009 e Janeiro de 2010 – o Contra-almirante Pereira da Cunha comandou a operação ALLIED PROTECTOR entre Março e Junho de 2009 (sendo a fragata “Corte-Real” o navio-almirante) e a operação OCEAN SHIELD entre Novembro de 2009 e Janeiro de 2010 (com a fragata “Álvares Cabral” como navio-almirante).
Também a UE encetou, no Corno de África, a operação ATALANTA, a primeira missão naval ao abrigo da Política Europeia de Segurança e Defesa. Esta operação foi lançada formalmente no dia 9 de Dezembro de 2008 e tem duração prevista até Dezembro de 2010, tendo contado com um oficial português no estado-maior embarcado até Abril deste ano.
Importa acrescentar que, além das forças da NATO e da UE, estão presentes na área navios da Arábia Saudita, da China, da Coreia do Sul, da Índia, do Irão, do Japão e da Rússia, bem como uma força-tarefa liderada pelos EUA.
Antibióticos
Como referido acima, a NATO alargou, em Agosto de 2009, o âmbito da sua missão de combate à pirataria somali, a qual passou a incluir o apoio aos Estados da região, a seu pedido, na edificação de capacidades que lhes permitam combater de forma autónoma a pirataria. Esta vertente da missão pretende complementar as operações anti-pirataria, no mar, que continuam a ser o foco da intervenção da NATO.
Em Janeiro deste ano, a UE também aprovou uma nova missão militar para a região, que consistirá na formação, no Uganda, de cerca de 2000 soldados somalis por uma centena de instrutores europeus, entre os quais está prevista a participação de uma equipa de 15 militares do Exército Português. A UE pretende com esta missão, a ser desenvolvida em cooperação com a União Africana, capacitar as forças de segurança somalis para o desempenho autónomo da sua missão.
Dessa forma, tanto a NATO como a UE adaptaram o conceito das operações que estavam a realizar no Corno de África, de forma a passarem a incluir o treino e a formação de forças de segurança locais, tarefas de inegável complementaridade às operações navais multinacionais de combate à pirataria.
Considerações finais
A edificação de capacidades de segurança na Somália mostra que a comunidade internacional, além de atenuar os sintomas (através das operações navais em curso), começa agora a atacar também as causas do problema. Ainda sem uma intervenção integrada e articulada de state building (por não haver vontade nem capacidade para o fazer), mas já com missões de capacity building, apontadas às causas do problema.
No entanto, esta realidade não pode nem deve apagar dois aspectos importantes relativos à presença de navios de guerra na área.
O primeiro é que se torna fundamental que as marinhas de guerra continuem na costa da Somália, como forma de conter o problema, evitando que ele alastre e interrompa os fluxos marítimos regulares, com inevitáveis consequências na economia mundial e na vida de cada um de nós.
O segundo é que, ao contrário do que muitas vezes se tem tentado fazer crer, os números mostram que a actuação das marinhas tem sido bastante eficaz. Conforme se referiu acima, em 2009 contabilizaram-se em todo o mundo 406 actos de pirataria. Desses, 217 foram perpetrados por piratas somalis, sendo que a sua área de actuação já extravasou do Corno de África e do Golfo de Áden, tendo-se alargado a praticamente todo o Oceano Índico, nomeadamente às costas do Quénia, da Tanzânia, das Seicheles e de Madagáscar. Todavia, os piratas somalis apenas conseguiram concretizar 48 das 217 tentativas de abordagem que efectuaram, o que significa que a sua taxa de sucesso foi de 22,1%. Já no resto do mundo, das 189 tentativas de abordagem concretizaram-se 154, o que corresponde a uma taxa de sucesso de 81,5%.
A maior limitação das operações navais de combate à pirataria tem sido o destino a dar aos suspeitos capturados, já que o crime de pirataria não está previsto no ordenamento jurídico-penal da maior parte dos países (incluindo de Portugal). Contudo, isso não influencia o dever dos comandantes dos navios de guerra de actuarem perante actos de pirataria, pois a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar a isso obriga. A referida limitação tem obrigado alguns países a extraditar ou a entregar os presumíveis piratas a um Estado que tenha legitimidade para julgar, tendo sido estabelecidos já vários acordos com esse propósito com países da região. Todavia, essa não parece vir a ser a melhor solução para este efeito. A solução que se afigura mais adequada, para julgar os suspeitos de pirataria, consiste na criação de um tribunal híbrido (semelhante ao criado no Cambodja), conforme tem sido proposto internacionalmente por Portugal. Esse tribunal funcionaria transitoriamente e seria integrado no sistema de justiça somali, sendo constituído por juízes, promotores e advogados de defesa somalis e estrangeiros, que aplicariam a lei interna somali, para o julgamento de actos de pirataria.
De qualquer maneira, apesar da limitação referida, é inegável que a presença das marinhas de guerra no Corno de África tem sido essencial para dissuadir, prevenir e reprimir esta actividade.
Importa, aliás, referir que mesmo que a comunidade internacional consiga envolver-se activamente no state building da nação somali, a pirataria no mar dificilmente acabará, pois a perspectiva de lucro fácil vai continuar a atrair boa parte da população. Nesse quadro, as operações navais em curso, continuarão a ser essenciais para assegurar a liberdade da navegação, numa região fundamental para a economia globalizada de hoje, onde passam 8% do comércio marítimo e 12% do petróleo mundiais. Além disso, essas operações navais, combinadas com a edificação de capacidades de segurança ao nível regional, constituem a única forma de, a curto e médio prazo, conter um problema que pode ter consequências extremamente graves para a economia mundial.
Jornal Defesa