A pirataria no Golfo da Guiné ameaça a soberania de São Tomé e Príncipe
Como nos séculos passados, criminosos agem em alto-mar. A diferença é que agora estão à procura de embarcações com pescado, galões de combustível ou barris de petróleo.
Alguns dias de trabalho em alto mar haviam se passado. A tripulação do Dona Simoa se preparava para deixar Porto Gentil, na costa do Gabão, e voltar para São Tomé Príncipe. Daniel Veloso, que há mais de 10 anos é pescador, estava entre os 12 tripulantes que foram surpreendidos por um grupo de criminosos que chegou em outra embarcação. "Era um barco tipo bote, com poucas coisas, mas com uma tripulação de 22 pessoas. Ao princípio nós achámos que precisavam de ajuda, mas quando encostámos no barco, fomos atacados. A maioria dos que lá estavam apontou-nos metralhadoras ou facas. O nosso comandante foi logo dominado", relata Daniel, que, mesmo depois de quase passado um ano, ainda se lembra, assustado, da acção dos piratas.
Após o ataque, Daniel conta que todos ficaram sob a mira dos piratas. Enquanto uns vigiavam a tripulação do Dona Simoa, outros davam conta de carregar a embarcação clandestina com todo o pescado e combustível que encontraram no barco de suas vítimas. "Eles conseguiram levar 400 quilos de peixe que havíamos capturado para vender em São Tomé, e mais 4 galões com cerca de 200 litros de combustível. Depois de roubarem tudo, foram embora. Não conseguimos mais voltar para São Tomé, pois já não havia combustível para a viagem. Denunciámos o ocorrido a Polícia do Gabão, mas nada aconteceu".
Relatos parecidos ao de Daniel Veloso são contados por outros homens que precisam ir até alto-mar para trabalhar na pesca. Nos últimos anos, o Golfo da Guiné foi surpreendido com o aumento de assaltos e roubos, ações conhecidas como pirataria marítima. Segundo o relatório internacional produzido pela seguradora Allianz Global, foram registrados no ano passado, naquela região, 48 incidentes de pirataria. De acordo com o relatório da Allianz, os ataques em 2013 representam 18% das ações piratas em todo o mundo.
Os piratas da Guiné
De acordo com o coronel Marçal Lima, o diretor de Defesa Nacional pelo Ministério da Defesa de São Tomé e Príncipe, os ataques de piratas já são conhecidos em África. Há seis anos, segundo conta, raptos e sequestros eram comuns no Golfo de Adem, na região chamada corno de África, que compreende a área entre a Somália, o Yemen e a Etiópia. Após os raptos, os piratas exigiam quantias exorbitantes para liberar os reféns, que geralmente eram estrangeiros oriundos da Europa ou da América do Norte. "Tudo isto perturbava ali a circulação marítima, pois, além de aprisionar as pessoas, os piratas também buscavam prejudicar o comércio entre a Ásia, África, Europa e médio oriente", explica o coronel.
No Golfo da Guiné, cuja costa pertence a nove países, incluindo São Tomé e Príncipe, "o modos operandi diferencia-se em relação às acções piratas de Adem. Na região de São Tomé e Príncipe, o objectivo não é o sequestro de pessoas, mas o roubo de petróleo, combustível, navios e pescado".
Apesar de os crimes piratas serem cometidos no mar, para o coronel Marçal, a pirataria começa na terra firme. "A situação de conflito nos países entorno do Golfo da Guiné e muitas outras condições favorecem os ataques que acontecem no mar", afirma Marçal, referindo-se aos conflitos étnicos, religiosos, e às desigualdades económicas e sociais vividas pela população daqueles países. "Há condições precárias para que haja armamentos e criminosos que vão em busca de riqueza no mar, e usam a pirataria como meio de sobrevivência".
Marçal Lima ressalta que em muitos casos há sempre alguém com capacidade financiadora por detrás destes homens, e acredita que é gente de variados países. "Os piratas mesmo são pessoas muito miseráveis, que precisam se arriscar em embarcações sem condições de percorrer muitas milhas, e por isso as ações acontecem cada vez mais próximo à costa dos países". O fato de os ataques ocorrerem cada vez mais perto do litoral faz com que a pirataria aconteça na rota dos navios petroleiros, pois "os navios têm de ir à costa para armazenar o petróleo e transportar para fora do continente o produto".
As abordagens piratas acontecem, por vezes, à saída destas embarcações. O coronel afirma que os bandos, fortemente armados, abordam estes navios, ameaçam as tripulações e roubam os seus pertences. No caso dos navios petroleiros, piratas apoderam-se da própria embarcação e conduzem-na para um local seguro, onde podem vender o produto e descaracterizar o navio para ser utilizado novamente. "São pessoas que conhecem muito bem a região".
Segundo a Organização Marítima Internacional (OMI), de todos os países do Golfo da Guiné, Benim, Togo e Nigéria estão entre os mais afetados pela pirataria. De acordo com a OMI, as ações piratas já deram prejuízos de quase 2 milhões de dólares à região, entre bens e produtos subtraídos, e investimentos em segurança.
Petróleo
A região do Golfo da Guiné, além de ser rica em pescado de característica migratória, como o atum, por exemplo, guarda no fundo do oceano uma grande reserva de petróleo. Para os países ali situados, um dos maiores problemas com os piratas gira em torno da produção petrolífera, que é roubada em muitos ataques, como salientado por Marçal. "Hoje os países do Golfo da Guiné são ricos em petróleo, de modo que são o futuro da produção petrolífera no continente", assegura o diretor.
Dentre os principais produtores está a Nigéria, que em 2008 atingiu a marca de produção de mais de 2 milhões de barris por dia, conforme Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Assim como a Nigéria, também a Guiné Equatorial, o Gabão e Gana se destacam nesta produção. São Tomé e Príncipe, de acordo com Marçal, ainda não iniciou a exploração do óleo, que "está em água ultra profundas".
Uma das zonas de exploração são-tomense é em conjunto com a Nigéria. São Tomé e Príncipe vai garantir 40% do seu rendimento, quando essa mesma exploração for iniciada. Contudo, para assegurar a produção são-tomense, o governo está desenvolvendo medidas que evitem a acção dos piratas na região. Dentre esta série de medidas, estão várias parcerias com países europeus e americanos. Um sistema de radar, por exemplo, instalado em parceria com os Estados Unidos, realiza a fiscalização da costa das ilhas, que possui 200 milhas náuticas de extensão. "Se for um navio legal, ele terá um sistema automático que o identificará no nosso sistema de radares. Quando este sistema não responde, precisamos interceptar esta embarcação".
Foi com este sistema de radares que em março de 2013 a Guarda Costeira de STP apreendeu dois navios que contrabandeavam combustível para a Europa. "Não era um navio pirata, mas se tratava de combustível que estava sendo transportado sem nota fiscal, e que deve ter sido adquirido de forma ilegal. Então, o comandante da embarcação foi multado e detido", acrescenta o director Lima.
Combate
Para além deste sistema de radares instalado com ajuda norte-americana, os são-tomenses garantiram parcerias com diversos outros países. Quer ao nível regional, com países do Golfo da Guiné, e os demais países africanos, quer ao nível internacional, com países como Portugal, Reino Unido e Brasil, São Tomé e Príncipe busca ajuda para manter a soberania do seu território marítimo e a segurança das embarcações que ali navegam. "Quem está mais afetado é quem compra o petróleo de nós. Por isso, há todo interesse das grandes potências em criar estratégias contra esses crimes aqui na região", ressalta o corenel Marçal, referindo-se às potências europeias e aos EUA.
Um dos principais parceiros de STP contra os piratas é Portugal. O adido da embaixada portuguesa para a cooperação, Nuno Vaz, explica que, dentre outras acções de parceria, o Estado português mantém há 2 anos um acordo antipirataria com o governo são-tomense. Este acordo viabiliza para o país infraestrutura para o patrulhamento marítimo, bem como ocorreu em abril deste ano, quando uma fragata e uma aeronave P3 estiveram em actividade no país. Desde então, a vigilância das águas de jurisdição das ilhas é feita com a ajuda da Marinha de Portugal.
Este acordo firmado com os portugueses permitiu que São Tomé e Príncipe tivesse infraestrutura e pessoal capacitado para participar do exercício militar OBAN GAME, que ocorreu em março deste ano no Golfo da Guiné. Coordenado pelos Estados Unidos, este exercício teve ainda a participação do Brasil e da França, que mantêm actividades de cooperação com países da região. A operação ocorreu como treino de oficiais e também reforço da vigilância no Golfo. Os resultados, porém, são confidenciais e, portanto, não foram divulgados.
A Marinha do Brasil iniciou, também em março, um trabalho de formação dos oficiais da Guarda Costeira de STP. A missão, que durará um ano, conta com a participação de nove fuzileiros navais brasileiros, que serão os responsáveis por essa mesma formação. De acordo com o embaixador do Brasil para STP, José Carlos de Araújo Leitão, a luta pela segurança no Golfo da Guiné será constante. "O trabalho de vigilância no Golfo da Guiné deve coibir o contrabando de combustível e de pescado. São riquezas que estão na região e chamam a atenção dos piratas", destaca o embaixador, que acredita que os piratas são criminosos bem estruturados com embarcações e outros equipamentos que permitem, por exemplo, um "arrastão" de pescado em alto-mar.
O embaixador brasileiro não descarta a possibilidade de estas acções serem coordenadas por criminosos de várias nacionalidades, pois, segundo o diplomata, além das riquezas, esta área do Atlântico Sul é geograficamente estratégica para a África e para países de outros continentes. Por isso, as atividades de fiscalização, em sua opinião, devem ser reforçadas e garantidas para resguardar a soberania de STP.
A pirataria marítima está prevista no Código Penal são-tomense como crime (artigo nº 388). Aqueles que forem apanhados em flagrante podem ser condenados de 2 até 8 anos de prisão. Segundo o presidente da Ordem dos Advogados de São Tomé e Príncipe, André Aragão, mecanismos como esta legislação são extremamente relevantes para resguardar a soberania e as riquezas do país, visto que a zona marítima é 600 vezes maior que a área terrestre, formada pelas duas pequenas ilhas.
O coronel Marçal afirma que, apesar de todas as acções e parcerias para o combate à pirataria, é muito difícil estabelecer leis contra estes crimes. "Há uma série de instrumentos e acordos internacionais que os Estados têm considerado. Acontece que nenhum Estado quer se responsabilizar pelo julgamento destes criminosos, pois muitos desses crimes acontecem em águas internacionais, e esta ainda é uma área muito vaga em termos de legislação internacional". Para o coronel, é necessário que os Estados ratifiquem a série de convenções e medidas jurídicas já existentes e se entendam no julgamento dos crimes de pirataria marítima.
Esta produção só foi possível realizar graças ao programa de formação jornalística, Beyond Your World, o qual é financiado pela Comissão Europeia e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Holandês.
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