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Discretamente, um consórcio de empresas portuguesas lideradas pela CP-Comboios de Portugal e a SERMEC está a construir aquilo que se poderá chamar como o primeiro comboio português, aproveitando fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Numa fábrica da Maia já está a ser fabricada a caixa da primeira das três carruagens que formarão a composição deste protótipo: uma carruagem de 1ª classe, outra de 2ª classe e uma carruagem-bar.
Mas a principal característica deste conjunto de três unidades é que uma das carruagens incorporará uma cabine de condução, estreando em Portugal o conceito de push-pull (empurra-puxa) no qual a composição tanto é rebocada como empurrada pela locomotiva que está numa das extremidades. Na outra ponta está a carruagem com a cabine de condução permitindo que o comboio circule nos dois sentidos sem necessidade de manobrar a locomotiva para inverter a sua marcha.
Parece simples e comboios push-pull circulam há décadas na maioria dos países europeus, mas é complexa a engenharia necessária para ligar o sistema de condução da cabine instalada na extremidade da carruagem à locomotiva que está na outra ponta da composição. Nada disto pode falhar para que o comboio possa fazer inúmeras viagens em segurança e com fiabilidade.
Paulo Duarte, director-executivo da Plataforma Ferroviária Portuguesa, diz que o mais importante deste projecto é precisamente a certificação e homologação das empresas que nele participam. "A ferrovia é um sector muito exigente em termos de certificação e homologação e este projecto vai permitir a todos os parceiros ganhar competências para poderem participar na indústria ferroviária a nível internacional", diz.
Actualmente, já há empresas portuguesas que fornecem componentes para multinacionais do sector, mas Paulo Duarte explica que "enquanto não forem homologadas, ficam no fim da linha em termos da cadeia de valor", pelo que o projecto do comboio português vai permitir-lhes esse upgrade de ficarem na primeira divisão da indústria ferroviária. Ou seja, mais do que fazer um comboio, o que se pretende é capacitar empresas para produzir material circulante ferroviário em Portugal.
Para este engenheiro, o mais importante até nem é o resultado final - a produção do comboio -, mas sim o caminho que se percorre para lá chegar, pois é durante esse processo que se obtêm as competências para a industrialização da ferrovia nacional.
A parte mais fabril deste projecto está a cargo da SERMEC e das oficinas da CP. Mas as carruagens não são só caixas metálicas assentes em rodados. Há os assentos, as cortinas, as janelas, os WC, o ar condicionado, a informação sonora e digital a bordo, as bagageiras, os equipamentos para fixar bicicletas e a instalação do bar.
A Nomad Tech é a responsável pela parte mais tecnológica, ligada ao comando e controlo do comboio, o que inclui o cockpit do maquinista, os conversores de potência e o sistema de monitorização e frenagem. O INEGI - Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial e a FEUP - Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto tiveram um papel decisivo nos cálculos estruturais das carruagens. O interiorismo está a cargo da empresa O2A.
Os assentos e cortinas devem ser feitos com tecidos anti-vandalismo e anti-fogo e que sejam luminescentes (para brilharem no escuro em caso de acidente). Uma área que é liderada pelo Citeve - Centro Tecnológico da Indústria Têxtil.
Já os bogies (rodados) são importados porque não se fabricam em Portugal, mas em tudo o resto predominam as empresas portuguesas.
Paulo Duarte explica que o fabrico da estrutura das carruagens assenta na soldadura de chapas metálicas, cujo processo tem de ser certificado, incluindo o próprio soldador, o equipamento e o software utilizados. Por isso, o responsável da Plataforma Ferroviária Portuguesa insiste que, no limite, mesmo sem comboio no final, só o processo já teria valido a pena.
Mas é claro que vai haver comboio. Sendo português, está - sem surpresa - atrasado. As três carruagens deveriam estar concluídas em Dezembro deste ano, mas Filipa Pereira, responsável pela comunicação do consórcio que envolve 13 entidades, diz que estará fabricado em 2026 e que não estão em risco os 8,6 milhões de euros de verbas do PRR, que são a principal fonte de financiamento deste projecto.