Uma cápsula de cianeto para Vassalo e Silva Regresso à Índia, em Junho de 1980. O general Vassalo e Silva junto à estátua de Camões, que ainda estava em Velha Goa Campo de prisioneiros de Pondá, 7 de Maio de 1962.
Numa das casas da Companhia das Águas, que lhe serve de cela, o ex-governador do Estado Português da Índia recebe a visita do engenheiro Jorge Jardim. Este especialíssimo agente, perito em missões impossíveis, chegara à União Indiana em Fevereiro, com carta branca do ministro do Ultramar, Adriano Moreira, e do próprio Salazar para resolver as questões relacionadas com a libertação dos presos.
Libertação que, afinal, se vinha arrastando por razões exclusivamente imputáveis a Lisboa, já que a única preocupação de Nova Deli era livrar-se daquele fardo o mais rapidamente possível.
A repatriação dos 3500 militares portugueses tinha finalmente começado na véspera, de manhã. Muito antes, haviam sido os civis, entre os quais Urbano Carrasco, do «Diário Popular» e uma equipa da RTP, alguns dos numerosos jornalistas que cobriram a invasão de Goa (como o fotógrafo H. Van Kan, que publicou o seu trabalho no «Paris Match»).
Não é difícil imaginar o assunto da conversa de Jorge Jardim com Vassalo e Silva: o desfecho da guerra, a rendição incondicional ao fim de 36 horas de uma débil resistência, as razões que levaram o governador a não aceitar o «sacrifício total» reclamado por Salazar. A reunião prolonga-se por mais de uma hora. Jardim rejeita os argumentos do general e condena vivamente a sua atitude. Segundo um relato oral feito pelo engenheiro ao ministro Adriano Moreira, a reunião termina com Jardim a recriminar Vassalo: «Para bem do país, o senhor general devia ter morrido em combate. Aconselho-lhe uma maneira de não regressar vivo a Portugal.» Dito isto, levanta-se e deixa sobre a mesa um pequeno frasco com veneno. O episódio é confirmado por Jaime Nogueira Pinto (em «Portugal, os Anos do Fim»), com a diferença de um pormenor: em vez de um frasco, seria «uma cápsula de veneno de acção rápida e mortal». José Freire Antunes, por sua vez (em «Jorge Jardim Agente Secreto»), admite que este «teria aconselhado Vassalo e Silva a suicidar-se com cianeto na funesta hora da partida».
O general não seguiu a sugestão-apelo. Tal como prometera, e apesar da precária saúde, foi o último a ser repatriado. À chegada a Lisboa, não tinha nenhuma autoridade a recebê-lo - nem civil, nem militar. Salazar jamais lhe perdoou a traição. «Se as nossas tropas tivessem resistido oito ou dez dias, ainda hoje tínhamos Goa», tal era a convicção do ditador, numa confidência feita em 1968 ao ministro dos Estrangeiros, Franco Nogueira (em «Um Político Confessa-se»); «assim foi uma desgraça e o Vassalo e Silva cometeu um crime histórico».
Sem conseguir ser recebido por Salazar, o ex-governador pediu um encontro com o ministro. «Apareceu-me com um calhamaço enorme na mão», conta Adriano Moreira. «Expliquei-lhe por que razão não fora ao aeroporto.»
É certo que fora esperar os governadores de Damão e Diu, mas não o de Goa. «É que, entretanto, tinha sido extinto o cargo de governador-geral da Índia, para não termos que negociar a libertação de um governador.» Em seu lugar, fora criada a figura de um alto-comissário. O ex-ministro garante, contudo, que «nunca - jamais! - fiz a menor crítica à sua decisão de se render. Tem que se perceber o papel em que ele se encontrava: a responsabilidade de decidir como é que acabava a História do país! E teve que decidir!» No final da audiência, deu-lhe «o tal livro: era o plano de recuperação da velha Goa, com a indicação de que era para ser executado. Era uma obsessão!»
Oriundo da arma de Engenharia, o general Manuel António Vassalo e Silva nunca estivera na Índia, onde chegou a 4 de Dezembro de 1958. Durante os três anos da sua gestão, Goa atingiu «o maior desenvolvimento de sempre» («Dicionário de História de Portugal»). O aumento da exportação de ferro permitiu superar o crónico deficit externo. Construiu o aeroporto internacional, a que deu o nome do antecessor - Benard Guedes. Uma pista em condições permitiu a criação dos Transportes Aéreos da Índia Portuguesa. Alguns trabalhos de recuperação do espectacular património de Velha Goa arrancaram no seu tempo. Projectada ficou uma ponte suspensa sobre o Mandovi, junto a Panjim, da autoria de Edgar Cardoso.
«Era um bom engenheiro e foi o responsável pelo forte desenvolvimento de Goa», concorda Adriano Moreira. «Foi um riquíssimo governador», opina Carlos Azeredo, «competente, sério e bom».
Significativamente, a imprensa goesa de expressão portuguesa, apesar da enorme cambalhota que deu, não parece ter beliscado o ex-governador. Mesmo os inimigos conservam boa impressão dele. «Era boa pessoa», diz simplesmente Ravindra Kelecar, um dos «Freedom Fighters» preso pela polícia portuguesa.
Em Junho de 1980, voltou a Goa, onde lhe foi dispensada uma amável recepção. A razão é muito simples: evitara um banho de sangue e a destruição de um valiosíssimo património histórico.
Expulso do Exército em 1963, por deliberação do governo de Salazar, reclamou um julgamento. A isso se opuseram os comandos militares, que insistiram na punição disciplinar. Viria a ser reintegrado depois do 25 de Abril. Morreu em Agosto de 1985, com 86 anos.
Expresso