https://eco.sapo.pt/especiais/a-guerra-das-terras-raras-china-age-eua-reagem-europa-dorme-e-portugal-hiberna/As guerras contemporâneas raramente se travam com exércitos — a guerra na Ucrânia é a exceção que confirma a regra —, travam-se com cadeias de abastecimento, escreve o economista Óscar Afonso.
Poucas matérias-primas revelam tão bem a interdependência e a vulnerabilidade da economia global como as terras raras — um conjunto de 17 elementos químicos da tabela periódica, com nomes que poucos conhecem, mas que são indispensáveis à vida tecnológica moderna. Motores elétricos, turbinas eólicas, smartphones, satélites ou sistemas de defesa dependem deles.
A recente decisão da China de restringir as exportações destes materiais e das tecnologias que os processam reacendeu uma tensão que vai muito além do comércio: trata-se de uma guerra económica silenciosa, onde o controlo de recursos críticos se converte em instrumento de poder geopolítico.
A disputa pelas terras raras tornou-se um símbolo da nova era em que vivemos — uma era em que o crescimento económico, a segurança energética e a soberania tecnológica estão cada vez mais entrelaçados. A transição energética e digital precisa destes elementos, pelo que a sua escassez ou manipulação pode travá-la. É neste tabuleiro, onde se cruzam as ambições da China, as reações dos EUA e a vulnerabilidade europeia, que Portugal também é chamado a posicionar-se — ainda que, como é habitual entre nós, um tema desta relevância pareça não suscitar a devida preocupação da classe política.
A guerra global das terras raras
Há guerras que não se travam com tanques, mas com cadeias de abastecimento. Desde o início dos anos 2000, a China percebeu que o verdadeiro poder não está apenas em extrair recursos, mas em dominar a refinação e o processamento — as etapas de maior valor acrescentado e mais difíceis de replicar. Hoje, controla cerca de 70% da extração mundial e quase 90% da refinação (e.g., Goldman Sachs, “The case for rare-earths”, Outubro 2025), colocando o resto do mundo numa dependência estrutural.
Quando, há poucas semanas, Pequim apertou novamente os controlos à exportação, invocando razões ambientais e de segurança nacional, o gesto foi interpretado como uma jogada de pressão política. As terras raras tornaram-se a nova alavanca diplomática chinesa, usada para influenciar negociações comerciais e tecnológicas, especialmente com Washington.
A resposta americana foi rápida. Ciente da vulnerabilidade das suas cadeias industriais — em particular nas áreas da defesa, energia limpa e semicondutores —, a Administração dos EUA acelerou acordos com países aliados, procurando reconstruir um ecossistema de fornecimento alternativo mesmo antes de Trump se encontrar com o líder Chinês na Coreia do sul esta semana — estando já previsto um acordo preliminar para a China adiar por um ano as restrições de terras raras aos EUA em troca da suspensão das tarifas adicionais de 100% de Trump, mais algumas promessas parte a parte. Os pactos recentes dos EUA com Austrália e Japão são paradigmáticos: preveem investimentos conjuntos e cooperação em mineração e processamento, criação de mecanismos para identificar vulnerabilidades nas cadeias de fornecimento e investimentos bilaterais estratégicos em troca da redução das tarifas americanas. O objetivo dos EUA é claro — reduzir a dependência chinesa via rede de parceiros “amigos”, o chamado friend-shoring.
Contudo, os limites da estratégia são claros. Nenhum país, à exceção da China, possui simultaneamente a escala de produção, o domínio tecnológico e a flexibilidade ambiental necessários para sustentar o mercado global. A substituição será lenta, cara e politicamente frágil. Enquanto isso, o mundo continua preso à teia industrial chinesa, onde a eficiência económica se confunde com dependência estratégica.
A Europa na encruzilhada: dependências, transição verde e oportunidade da reciclagem
A Europa, sem rumo e sem uma estratégia coerente — como, aliás, começa a ser a sua marca — vai assistindo ao desenrolar desta disputa com uma mistura de preocupação e atraso, reagindo mais do que agindo, num mundo que já não espera por ela. Durante décadas, confiou que o comércio global garantiria acesso estável a tudo o que não produzia. Essa crença colapsou com a pandemia, a guerra na Ucrânia e, agora, com o controlo chinês sobre os materiais críticos da transição verde.
O dilema europeu é claro: como conciliar as metas ambiciosas de neutralidade carbónica e digitalização com a escassez de matérias-primas controladas por um rival geopolítico? A resposta ainda é incerta, mas o tempo joga contra o continente. As metas do Pacto Ecológico implicam multiplicar entre três e sete vezes a procura de minerais críticos até 2040 (Agência Internacional da Energia, “Critical Minerals Outlook”, 2024). E, enquanto a Europa hesita e adormece entre cimeiras e declarações, cada atraso em diversificar fornecedores torna-a mais vulnerável.
Perante a restrição recente das terras raras da China, a Comissão Europeia está a considerar utilizar o Instrumento Anticoerção, uma ferramenta comercial poderosa, legalmente vinculativa, que autoriza sanções ou restrições comerciais proporcionais contra países que usem a economia como arma política. No entanto, na prática, a UE ainda não o aplicou, o que significa que há alguma incerteza sobre a rapidez e eficácia da sua implementação. Além disso, qualquer medida seria cuidadosamente calibrada para não prejudicar demasiado os próprios interesses europeus, dependendo da capacidade da UE de agir de forma coordenada e rápida, o que, como sabemos não tem acontecido com a frequência e a efetividade necessárias nas mais variadas áreas. Esse não pode, por isso, ser o único vetor de resposta da Europa.
Num passado recente, a UE tem também procurado diversificar as suas fontes através de acordos bilaterais e parcerias com países fora da China, incluindo Canadá, Austrália e Brasil, mas estas iniciativas são geralmente de longo prazo e ainda não resultaram em acordos comerciais concretos equivalentes aos pactos dos EUA com Japão e Austrália (e, anteriormente, na área da defesa, com a Ucrânia).
Num mundo em reconfiguração, as terras raras deixaram de ser apenas um tema técnico de mineração ou de ambiente. Tornaram-se um índice de soberania económica — um espelho das forças e fraquezas de cada modelo de desenvolvimento. E é à luz dessa realidade que se deve ler o caso europeu e português.
A Europa acordou tarde para o peso estratégico das matérias-primas críticas. Durante demasiado tempo, confiou que bastava regulamentar e inovar para garantir prosperidade, acreditando num comércio global previsível e estável. Essa visão colapsou. Hoje, a União Europeia (UE) enfrenta o paradoxo de querer liderar a transição energética e digital enquanto continua dependente da China para 98% das terras raras processadas que utiliza (Comissão Europeia, Raw materials dependence statistics 2024).
Bruxelas tem tentado corrigir o erro, mas não é fácil.
O Critical Raw Materials Act, aprovado (apenas) em 2024, define metas ambiciosas para 2030: extrair internamente 10% das necessidades, refinar 40% e reciclar 15%.
Trata-se de uma tentativa de construir um “escudo industrial” num domínio onde o continente quase abdicou da soberania. Só que as dificuldades são evidentes: os projetos de mineração enfrentam resistência ambiental e burocrática, o investimento privado é escasso e o tempo joga contra as metas climáticas. A UE até vai tendo recursos financeiros, o que lhe falta é capacidade executiva, determinação e, sobretudo, vontade de acordar do seu torpor estratégico.
O contraste com a estratégia chinesa é gritante. Pequim domina toda a cadeia de valor, da extração à refinação e produção de ímanes, enquanto a UE depende de importações até para equipamentos de reciclagem. Se a globalização ensinou os europeus a valorizar a eficiência, a nova geopolítica exige-lhes resiliência. O comércio deixou de ser neutro e tornou-se o campo onde se mede poder.
A transição verde, vista como símbolo de autonomia energética, é também um novo tipo de dependência. As turbinas eólicas, as baterias dos veículos elétricos, os painéis solares — todos dependem fortemente de elementos raros, como o neodímio, o cério ou o térbio. A substituição dos combustíveis fósseis por minerais não elimina a dependência; apenas a transforma. E, paradoxalmente, torna-a mais concentrada em poucos países. Enquanto o petróleo se pode comprar a vários fornecedores, as terras raras, em grande medida, concentram-se em poucos, sobretudo dois ou três.
A Europa, que se orgulha de liderar a transição ecológica, corre o risco de se tornar refém de uma transição controlada por outros. A ambição verde poderá ser verde na retórica, mas cinzenta na prática, se continuar dependente de cadeias produtivas externas. É a diferença entre ser protagonista da revolução energética ou apenas seu consumidor.
Há, contudo, uma via intermédia — e promissora: a reciclagem e a economia circular. As terras raras podem ser recuperadas de equipamentos em fim de vida — motores, turbinas, discos rígidos, smartphones —, reduzindo a necessidade de mineração primária e aliviando pressões ambientais. A UE detém o conhecimento científico para o fazer, mas ainda não criou um quadro económico que o torne viável em larga escala. O custo de reciclagem é elevado e as políticas públicas raramente recompensam suficientemente as externalidades positivas dessa atividade.
Investir em hubs industriais de recuperação de materiais críticos seria, simultaneamente, um ato de soberania e de inovação. Permitiria reduzir a dependência externa e criar emprego qualificado. Para isso, é necessário ver a reciclagem não como um complemento, mas como um pilar da política industrial europeia. É também aqui que Portugal pode ter um papel relevante, se souber alinhar a sua capacidade científica com uma estratégia industrial coerente — embora, face à (in)capacidade das lideranças que temos tido o azar de conhecer, a esperança de o ver acontecer seja, no mínimo, prudente. Este será o tema da próxima secção.
A fragilidade da Europa não é só a montante, na obtenção de terras raras, mas também no desenvolvimento de uma indústria de semicondutores mais forte e resiliente, que possa ser competitiva e suportar o resto do aparelho industrial europeu, faltando políticas nesse sentido.
O episódio recente da Nexperia mostra que a globalização já não é ingénua, tornou-se defensiva e seletiva. Esta empresa de semicondutores, com sede nos Países Baixos, passou a ser chinesa após a aquisição em 2019 pela China Wingtech. Recentemente, o governo holandês interveio para restringir o controlo da Nexperia sobre uma produtora local de semicondutores, a Nowi, de modo a impedir a transferência de tecnologia e conhecimentos é o retrato dessa viragem.
Depois que o governo holandês ter assumido o controle da Nowi, a China respondeu com a interrupção das exportações de produtos da Nexperia, fundamentais para a indústria automóvel europeia, incluindo as empresas do grupo alemão Volkswagen, um dos maiores clientes da empresa chinesa.
No que refere a Portugal, a Autoeuropa já admitiu, em comunicado, a preocupação com a situação, embora até ver ainda não tenha sido afetada e tenha a produção próxima assegurada. Outras notícias dão conta de que o grupo Wolkswagen criou uma task force para lidar coma situação e já terá arranjado um substituto para a Nexperia, mas é algo ainda a confirmar, pelo que a situação deve ser acompanhada de perto pelas autoridades europeias e nacionais.
Portugal entre a vulnerabilidade e a oportunidade: uma estratégia possível
Portugal raramente surge nas manchetes quando se fala em terras raras —ou de semicondutores, mas as suas vulnerabilidades estão profundamente entrelaçadas com as da Europa. Embora não produza componentes estratégicos em grande escala, o país integra cadeias industriais altamente expostas: automóvel, aeronáutica, energias renováveis, eletrónica.
Um simples atraso na chegada de ímanes ou sensores produzidos na Alemanha — dependentes, por sua vez, de refinação chinesa —, como poderá acontecer se o episódio Nexperia não for resolvido rapidamente, repercute-se nas fábricas portuguesas de componentes. A dependência é indireta, mas real. E torna o país vulnerável a choques de fornecimento, subida de custos e perda de competitividade.
Ao mesmo tempo, Portugal enfrenta um risco adicional: o da complacência. O país tende a reagir tarde às mudanças estruturais, sobretudo quando estas exigem coordenação entre ciência, política industrial e ambiente. Mesmo quando dispõe de fundos, falta-lhe aquilo que o dinheiro não compra: capacidade de decisão, visão estratégica e sentido de urgência.
Multiplicam-se planos, comissões e relatórios, mas escasseiam decisões efetivas. A administração pública move-se a um ritmo que desincentiva o investimento, a política hesita por cálculo e o país, entretido na retórica, perde janelas de oportunidade que não voltam. A guerra das terras raras é mais do que uma disputa entre superpotências — é um aviso claro de que quem não define uma estratégia industrial acaba por ser definido pelos outros.
( continua )