Uma questão, honesta que não sei mesmo - Portugal tem industria de calçado, tem centro de investigação e (com a industria) colaborou com o Exército para produzir calçado; não prestou? Foi criado para serem "botas atribuídas nas DIF aos militares são boas... Para trabalhar numa SecEM, ou assim.", com um custo para esse fim? E ter 2 tipos de botas (retaguarda e operacional) é normal noutros exércitos?
Resposta tardia, mas que espero ser tão completa como possível:
Sim, Portugal tem indústria de calçado de nível mundial, e um centro de investigação que desenvolveu fardamento (incluindo botas), e proteções balísticas extremamente interessantes, e que não ficam a dever nada a ninguém.
No entanto...
Estando nós em Portugal, surgiram rapidamente problemas, nomeadamente:
1- Incompetência logística;
2- Falta de dinheiro;
3- Chico-espertice;
4- Priorização questionável.
1- Incompetência logísticaDe facto, quando o programa SCS começou, uma das propostas foram até dois modelos de botas, uma de clima frio e outra de clima quente. A de clima frio com sola grossa, isolamento, membrana Gore-Tex a impermeabilizar a bota, etc. A de clima quente de sola fina, de lona/cordura, com furos laterais para permitir que o pé respirasse.
Naturalmente que ter e fornecer duas tipologias de bota diferentes seria um desafio hercúleo e intransponível a qualquer força militar, pelo que houve indicação para juntar os dois desenho num só, sendo desenvolvido um protótipo com isolamento, membrana Gore-Tex a impermeabilizar a bota... E furos laterais para melhorar o respirar do pé.
Felizmente alguém percebeu que isso seria pouco útil, e então esse protótipo foi à vida. Entre muitos tropeções, incluindo botas AT castanhas brilhantes com sola preta (porque, e sem gozar, um general envolvido no processo de decisão, achou impensável e uma falta de brio militar acabar com a ideia de engraxar botas), lá se desenvolveu o protótipo final, produzido pela Lavoro, e que ao que tudo indica, era extraordinário. Confortável, bem feito, com bons materiais, e bastante bem recebido. Mas caro. Muito mais caro do que o Exército (que pagava cerca de 10/15€ por par de bota preta) queria/estava disponível para pagar. Mais uns incidentes que se eu contar ninguém acredita, e lá se obtém o atual modelo - barato, e "suficientemente bom". Claro, para quem não precisar de usar as botas em questões de combate. Para essas pessoas, lá se vai a uma loja comprar uns pares de botas decentes. De resto, para secretarias, são bem confortáveis.
2- Falta de dinheiroConforme ponto acima, havendo dinheiro, não faltam nem excelentes fabricantes, nem excelentes opções de botas para o Exército/FFAA portuguesas - mas não há. E mesmo assim, se antigamente na incorporação cada militar recebia dois pares de botas (eu por exemplo, tive a honra de receber dois pares de botas já usadas, de tamanhos diferentes, e rotas, o que devia ter sido logo o meu primeiro sinal de alerta para abandonar o proverbial barco), hoje só se recebem umas.
E há uma razão para a Lavoro já não fornecer as botas base ao Exército. Quem não tem dinheiro não só não tem vícios, como não tem material decente.
3- Chico-esperticeNaturalmente que o tradicional português que quer poupar dinheiro, mas se queixa do material dos chineses, se infiltrou tanto no governo como na indústria. O que significa que se era suposto os uniformes e botas fossem fabricados inteiramente em Portugal, isso já não acontece. Há peças de fardamento que são importadas, e os tecidos dos camuflados também o são, sendo a montagem feita em fábricas portuguesas. Ou seja, a qualidade piorou imenso, e do que se tem visto em termos de custo unitário, não desceu - pelo menos que eu tenha percebido. Então, menos qualidade por mais dinheiro, significa que o empresário português tem vindo a sair bem servido. E com o péssimo (ou inexistente) controlo de qualidade, é comum aparecerem peças de fardamento com fechos ao contrário, com os velcros dos postos e os bolsos do peito quase nos ombros, com costuras descosidas, com números falsificados (do género, duas calças ambas marcadas T48, serem de tamanhos absurdamente diferentes), com cortes mal feitos, etc etc. Reclamar à DRT/CmdLog normalmente leva a uma resposta do género "ou levam isso ou não levam nada", ou o normal "isso já não é um problema meu, desenmerdem-se". Alguns até indicam logo que uma costureira ou um sapateiro resolvem o problema, é só o militar pagar.
Este ponto ata também com o ponto 1- Incompetência logística.
3- Priorização questionávelUma das coisas caricatas que o Ex-CEME, atual CEMGFA, decidiu, foi primeiro equipar todos os Gen, Cor, e SMor com fardas novas, enquanto o resto da tropa lá ia andando com camuflados descosidos (pormenor dos pormenores, os Gen que receberam os primeiros camuflados, receberam-nos feitos por medida, e em caixas de cartão com uma fita vermelha à volta. Haja classe). As fotos promocionais, as presenças em eventos, e etc, normalmente eram feitas com fardas emprestadas oficialmente (levantadas na UAGME e depois devolvidas, com lavagem a seco. Entenda-se, lavagem sem nada, nem água), ou oficiosamente (pedir a um camarada que tivesse vindo de missão, levantando noutros regimentos, os próprios Cor a emprestarem a subordinados, etc. Chegaram a haver ordem oficiais de "desenmerdem-se a arranjar fardas, que na UAGME não há". Eu tive a honra de estrear uma farda de um Cor, que mede cerca de 1,65m, e eu meço 1,80m, portanto foi divertido).
Todas estas peripécias, e muitas outras que contadas aqui seriam vistas como um louco a imaginar coisas, funcionaram tão bem na moral e bem estar da tropa como possam imaginar. E com os primeiros camuflados de excelente qualidade a serem partilhados, toda a gente pensou que pelo menos quando os recebessem, iam ser qualquer coisa de extraordinário. No entanto, ver ponto acima.
Para coisas sérias, tipo FND ou END, das duas uma, ou a força adquire para toda a gente, ou os militares compram com fundos próprios. Essencialmente, ninguém usa botas do exército sem ser em território nacional ou em fotos. Tirando talvez nos programas de ERASMUS do exército, como a Roménia.
Resumidamente:
Há muitas e excelentes opções, mas não há dinheiro (nem vontade) para elas. Senão, ainda tinham que deixar de se gastar dezenas de milhares de euros em croquetes, convívios e outras porras inúteis que os nossos Gen tão bem foram habituados, e sem as quais o Exército e as FFAA em geral, deixariam de existir como forças modernas, prontas, credíveis e essas tretas todas.