Bom, pelo que li, parece-me que estamos de acordo. Acaba por ser uma questão de linguagem e nada mais, senão, vejamos:
Os nossos manuais de instrução são traduções dos manuais US Army. Era verdade até ao final da década de 90 para a generalidade dos manuais e continua a sê-lo para alguns. Com efeito, muitos manuais de instrução foram atualizados pelo Comando da Instrução e Doutrina (CID), com base em trabalhos desenvolvidos principalmente nas Escolas Práticas de Infantaria e Cavalaria.
Desde 2005 que a Formação no Cargo tem fichas próprias que, nalguns casos são significativamente diferentes do preconizado no anterior MC-110-10. É aqui fundamental referir que os manuais de instrução do antigo CGM, mais tarde CFO/CFS, bem como o Manual do Graduado do SMO e o MTIC (Manual de Técnica Individual de Combate) são praticamente insubstituíveis enquanto a tecnologia utilizada não obrigar a tal. Estamos a falar de manuais de técnica e de tática dos baixos escalões (neste caso, secção e pelotão).
A partir do escalão companhia, existem manuais próprios sobre a CAt e a CAtMec, bem como o BI e o BIMec e, ainda para aprovação, sobre o Agrupamento Mecanizado. Continuam a ser muito semelhantes aos americanos, é verdade.
Voltando aos manuais US Army, não sei se esteve colocado numa unidade operacional, onde, por princípio teórico, não ocorre “instrução”, mas sim “treino operacional”. A nossa tradição é que leva a que chamemos “instrução” a tudo (esse termo já saiu de grande parte do léxico formativo do Exército a partir da regulamentação da abordagem sistémica da formação). O treino operacional na BrigMec, e em algumas unidades da BrigInt é conduzido, uma vez mais, aos baixos escalões, com base nos ARTEP (Army Training and Evaluation Program), existentes até ao escalão batalhão. Desde 2007 que o Exército americano tem transformado o sistema de ARTEP em MTP (Mission Training Procedures).
Em ambos os casos tratam-se de check lists de tarefas críticas a realizar em operações. Quanto a este procedimento, nada está regulamentado, sendo que os comandantes de companhia e as secções de operações dos batalhões implementam o que entendem mais adequado, recorrendo ao que está preconizado doutrinariamente nos manuais dos batalhões (ou grupos) da Arma respetiva e ao RC-Operações em vigor (de 2005), que fornece os princípios gerais para cada tipologia de operação.
A NATO, que enforma a maioria (senão a totalidade) da nossa doutrina conjunta (e a NATO não são os EUA), define este tipo de treino como sendo do âmbito das TTP (Tactics, Techniques and Procedures). A NATO define TTP em todas as áreas em que existe suscetibilidade de existência de forças combinadas, ou seja, procura definir como se faz, até ao mais baixo escalão, nas organizações em que há probabilidade de estarem dois elementos de nações diferentes a trabalhar em conjunto. É o que acontece, por exemplo, na área CIMIC (cooperação civil-militar), em que as equipas que estão no terreno podem ser multinacionais.
Na maioria das áreas relacionadas com técnica individual de combate ou de combate dos baixos escalões na função de combate manobra (na qual se incluem a maioria das unidades de infantaria e cavalaria), bem como no apoio de fogos, a NATO não interfere, por se tratarem problemas das nações.
Algumas notas em relação à posição defensiva do pelotão de atiradores:
A linha de proteção final (LPF) é estabelecida ao escalão pelotão e ao escalão companhia. No caso do pelotão, está presente o emprego das armas coletivas (metralhadoras ligeiras), mas não só. No caso da companhia, o modo de emprego dos apoios de combate disponíveis. Em ambos os casos, o único significado que tem (e muito importante, claro) é que, uma vez ultrapassada pelo inimigo, desencadeiam-se fogos de proteção final.
Esta linha está relacionada com o lançamento do assalto por parte do inimigo e a designação de proteção final indica, por vezes, que a utilização dos fogos de barragem pode estar delegada nos comandantes dos pelotões (Manual do BI, 2001: V-24).
Os fogos de barragem são importantes porque os meios próprios da companhia (morteiros) estão, normalmente apontados a uma barragem, mas o comandante de companhia tem também atribuída, pelo menos, uma barragem dos morteiros do batalhão. Se estiver no esforço, pode-lhe ser atribuída uma barragem de artilharia. Em função das barragens que tem, deve articular com os comandantes de pelotão os procedimentos para proteção final pelo que estes poderão ver-se condicionados a fazer coincidir a LPF do pelotão com as indicações que recebem do comandante de companhia e não o contrário (ser a linha de tiro das ML que determina a LPF).
Mais: os fogos são maximizados quando direcionados para Áreas de Empenhamento (AE). Numa situação ideal, em terreno regular, não há problema em ter as ML nos extremos do pelotão, mas caso não seja vantajoso para a maximização dos fogos, elas podem e devem ser colocadas noutro local. Elas podem, por exemplo, bater zonas mortas às médias distâncias, sabia? A maior parte das metralhadoras, bem agarradas ao solo (calçadas), quando fazem fogo com uma ligeira elevação, provocam um efeito no projétil tipo “remate de pingue-pongue”, ou seja, há um alcance em que elas se precipitam violentamente para o solo. Na HK-21, por exemplo, consegue-se isso aos 1100 metros. A MG-3 também o permite.
Ou seja, não são as ML que determinam a LPF, mas sim o Plano de Operações da companhia. Estas integram-se nos fogos de proteção final da melhor maneira que, em situação ideal, é como descreveu.
Uma nota quanto às distâncias entre abrigos duplos e a tática. Talvez não tenha detetado, mas tocou aqui num dos maiores problemas quando se mexe em quadros orgânicos. É que os manuais táticos estão feitos para um PelAt ter uma frente de 400m, mas isto só é possível com SecAt a 11 elementos em que todos (ou pelo menos 10, vá lá), são atiradores que podem fazer uso da sua espingarda. Quando os quadros orgânicos sobrecarregam as secções com armas coletivas, podem até aumentar o poder de fogo (o que é discutível, dependendo da arma), mas reduzem claramente a frente possível, porque numa ML têm de operar 2 ou 3 elementos numa só posição para servir uma mesma arma e na maioria das outras para se obter o máximo rendimento, esgotam-se também 2 elementos. Em 2005 surgiram uns quadros orgânicos que pretendiam uniformizar o efetivo dos batalhões das três brigadas, pelo que, nalguns casos, as secções de atiradores passavam a ter 7 elementos, ou seja, 3 abrigos duplos e cerca de 50 metros de frente… ao reduzir 4 homens por secção, estava-se a reduzir a frente do pelotão para metade, a das companhias para metade e assim por diante. Com essa matemática, nenhuma tática resiste. Tudo estava empenhado à medida que se subiam os escalões. Os quadros orgânicos já foram retificados, desde 2009 e refira-se que na maioria das unidades, por se ter constatado isto, cumpriu-se formalmente a ordem, treinou-se a sete, mas manteve-se a noção de que tinha de ser alterado.
Quando fala dos lanços com sobreapoio das secções de atiradores, também há algumas notas interessantes. O que diz é completamente verdade para as secções de infantaria apeada, mas não para a mecanizada, nem para as Pandur. Na mecanizada, uma esquadra é a da viatura e a outra é a de manobra. Não pode haver mais assimetria entre as esquadras. Por isso, os lanços com sobreapoio são feitos de modo diferente. A esquadra de viatura coloca-se numa posição ou em posições sucessivas de onde possa apoiar a esquadra de manobra. A esquadra de manobra pode marchar para o contacto e inclusive assaltar, por lanços, ou de esquadra ou de equipas dentro da esquadra. Ainda outra nota curiosa reside no termo sobreapoio: se reparar bem, não há nenhuma outra situação do português em que aplique este termo. É que se trata de uma tradução à letra do inglês “overwatch” dos manuais americanos… Aconteceu no passado esta gaffe de tradução e entrou para ficar no léxico português. Teria exatamente o mesmo significado se dissesse “lanços com apoio”.
Quando termina com o termo base ideológica, percebo o que quer dizer. No entanto o termo “ideológico” tem conotações políticas e não é disso que se trata. O que sabemos é que o racional para o estabelecimento de quadros orgânicos deve respeitar a tática estabelecida para todos os escalões, ou então provocar a alteração dessa tática. Se as secções se tivessem mantido a 7 elementos, ou os pelotões de carros de combate passassem para 3 carros, ao comandante de companhia não se lhe podia ordenar que defendesse uma frente de 1000 a 1200 metros nem o esquadrão de carros podia cobrir uma frente de 1500 metros. Por conseguinte, o batalhão não podia ter um setor de 3000 a 5000 metros, nem a brigada podia ter o seu de 10000 a 15000 metros. Pegando, agora, no caso da brigada, esta poderia aspirar, mesmo atribuindo ao seu Esquadrão de Reconhecimento um setor na frente, a um máximo de 8000 ou 9000 metros. Ficaria tudo reduzido a metade. Isto traria implicações no apoio de fogos e na proteção aérea, que nem sempre seriam desvantajosas. Quanto à artilharia, os seus alcances não estariam maximizados, mas aumentava a flexibilidade quanto à escolha de posições de tiro. Quanto à antiaérea, seriam necessários menos recursos para gerar o “chapéu” à brigada ou então, aumentava-se a redundância dos sistemas, etc., etc..
Todas estas coisas têm muito que se lhe diga e é bom o confronto de ideias. Na realidade, mais do que discutir os assuntos, é importante que percebamos que, enquanto portugueses, estamos todos no mesmo barco. A ideia de que a tropa do passado é que era e que hoje em dia já não se fazem as coisas como antigamente (sei que não disse nada disto, no seu post, sou eu a extrapolar…) tem validade em muitos campos, mas noutros não.
Há que considerar que as pessoas que servem hoje nas fileiras são igualmente responsáveis e têm de gerir um manancial de informação e uma quantidade monstruosa de mudanças diárias no ambiente envolvente, que não têm mãos a medir. Tal como a NATO, que tem um comando para a transformação desde 2002, temos de ter bem presente que o que precisamos é de estar prontos a transformar-nos de modo a anteciparmos a mudança.
Estamos no bom caminho quando pensamos “modularmente”.
Cumprimentos e muito obrigado por esta oportunidade de escrever umas coisas sobre estes assuntos.
Lemos