Participação cívica alargada e imperativa ou Serviço Militar Obrigatório?
Brigadeiro-general Duarte da Costa
Presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC)
Declaração inicial: discutir a existência de um Serviço Militar Obrigatório (SMO) em Portugal, obriga-me a um exercício de equilíbrio entre razão e emoção por forma a não me deixar influenciar por análises superficiais e soluções que apontam apenas para a resolução de problemas num dos segmentos de uma cadeia de valor muita mais ampla e abrangente, ou seja, não se pode pretender resolver questões da defesa militar, deixando de fora da equação a questão da segurança como um todo. E quando nos arrojamos para opções que interferem com a vida e a liberdade das pessoas, fatores identitários de cidadania, temos também de estar preparados para discutir essa mesma cidadania e a segurança da nossa própria comunidade, tal como a conhecemos.
Como um dos participantes no atual processo de revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, sempre defendi uma leitura abrangente do conceito alargado de Segurança do Estado, que envolve pilares como a defesa, a segurança interna e a segurança humana, entre outros. E é nessa mesma ótica que tento analisar a questão do SMO e que razões ponderáveis nos poderiam, ou não, levar a reconstituir um modelo do passado, adaptado às exigências do mundo atual.
Várias são as razões que apontam para a viabilidade ou mesmo necessidade da reintrodução do SMO em Portugal. A saber:
- numa altura em que o voluntariado está em crise e que as forças militares lutam com uma gritante falta de efetivos, pode garantir um aumento no efetivo das Forças Armadas, ajudando a fortalecer a capacidade de defesa do país num ambiente global incerto e potencialmente hostil. Este tem sido o argumento mais difundido, e levanta-se aqui a questão do emprego operacional destes militares na defesa das fronteiras de segurança externas de Portugal (emprego fora do território nacional);
- quando tanto se fala em resiliência do país, em caso de emergências nacionais, desastres naturais, ameaças terroristas ou outros cenários de crise, um contingente adicional de cidadãos treinados e preparados poderia ser fundamental para uma resposta mais eficaz do Estado em complemento dos sistemas de proteção civil e emergência;
- pode promover a integração de jovens de diferentes origens sociais, culturais e económicas, contribuindo para a coesão social e o sentimento de pertença à Nação e, de uma forma abrangente, à totalidade da comunidade nacional, contribuindo para o fortalecimento de um sentimento de cidadania participativa;
- pode ser uma oportunidade para transmitir valores cívicos, éticos e de responsabilidade aos jovens, promovendo o sentido de dever para com a comunidade e o país;
- Pode proporcionar aos jovens capacitação em diversas áreas, como liderança, trabalho em equipa, disciplina, gestão do tempo e resolução de problemas, que pode ser valiosa nos seus desempenhos futuros, tanto no âmbito profissional quanto pessoal.
Mas também se encontram diversas razões que desaconselham a reintrodução do SMO. A saber:
- o SMO pode ser visto como uma restrição à liberdade individual dos cidadãos, obrigando-os a dedicar um período de suas vidas a atividades militares, mesmo que não tenham interesse ou aptidão para tal;
- o recrutamento de voluntários permite que as Forças Armadas selecionem candidatos com base em critérios específicos de aptidão e capacidade, resultando em uma força militar potencialmente mais eficiente e bem treinado, ao invés do produto operacional do SMO;
- o recrutamento voluntário é também potencialmente mais económico do que o SMO, que implica custos adicionais para fardamento, equipamento, treino e alojamento de um grande contingente de recrutas;
- o cenário de conflitos e ameaças à segurança mudou significativamente nas últimas décadas, com a ascensão de novas formas de conflito, como ciberataques, terrorismo internacional e ameaças híbridas. Neste contexto, as Forças Armadas precisam de contar com pessoal altamente especializado e treinado em áreas específicas, sendo, neste sentido, mais eficaz o recrutamento voluntário. Basta recordar o quão específico e especializado é hoje a utilização dos modernos sistemas de armas;
- o SMO pode levantar questões de discriminação e exclusão, especialmente em relação a minorias étnicas. Ao invés, um recrutamento voluntário promove a diversidade e a inclusão nas Forças Armadas, refletindo a sociedade como um todo.
Desta forma, embora o estado de conflitualidade que hoje em dia se vive possa levantar a discussão sobre a validade do SMO, ainda existem argumentos válidos contra a sua implementação, que devem ser considerados à luz das necessidades e valores de cada sociedade, num determinado momento.
Importa referir, como comecei por dizer, que não se pode pretender resolver questões da defesa militar recorrendo ao SMO e deixando de fora da equação a questão da segurança como um todo e, nesse aspeto, valores como cidadania, pertença e identidade têm de ser equacionados para a relevância deste assunto. E parece ser por demais evidente o distanciamento da generalidade dos jovens de hoje em dia face a questões de identidade nacional, de valor da comunidade e da partilha do esforço comum para um bem social maior.
Acredito que os valores humanistas e de liberdade democrática em que acreditamos não nos podem fazer desligar dos deveres de cidadania ativa e de pertença à comunidade, e importa, na minha opinião, mais do que falar do SMO, assumir a mais-valia de uma participação cívica alargada e imperativa, por um determinado período, de todos os jovens cidadãos que vivem em Portugal, e que relevasse uma participação social e integrada dos mesmos em serviços do Estado que promovam a partilha de um sentimento comum de pertença ao País e que, numa conceção alargada de segurança, contribui para a consciencialização dos jovens na importância da defesa de Portugal e do seu modelo de sociedade.
Neste sentido, a implementação de uma participação cívica alargada e imperativa em vez de um SMO pode ser considerada vantajosa por várias razões:
- pode envolver uma variedade de atividades e projetos que vão além das competências militares, permitindo que os participantes contribuam de acordo com as suas aptidões e interesses, resultando numa força de trabalho mais diversificada e eficaz;
- pode ser direcionada para projetos que beneficiam diretamente a comunidade local e nacional, como assistência social, educação, saúde, preservação ambiental, proteção civil e defesa militar (sim, também a defesa militar para os que quiserem cumprir essa participação nas Forças Armadas), entre outros, promovendo um senso de responsabilidade cívica e fortalecendo os laços entre os cidadãos e suas comunidades;
- pode proporcionar oportunidades de desenvolvimento pessoal, como o aperfeiçoamento de aptidões de liderança, trabalho em equipa, empatia e resolução de problemas;
- pode ser estruturado de forma a promover a igualdade de género, inclusão de minorias e respeito da diversidade, criando um ambiente mais inclusivo e equitativo para todos os participantes;
- em alguns contextos, pode ser uma alternativa mais pacífica e construtiva ao SMO, promovendo a resolução de conflitos de forma não-violenta e incentivando a cooperação e o diálogo.
No entanto, considero que a implementação de uma participação cívica alargada e imperativa também pode ter desafios a serem abordados, como a logística e recursos para a sua implementação, o financiamento adequado dos programas, a garantia dos direitos dos participantes, a criação de incentivos, tais como créditos de habilitações (elementar e/ou universitária) e a qualidade das atividades oferecidas.
Importa ressaltar que o regresso do SMO levanta questões éticas, de Direitos Humanos e de liberdade individual, e que a implementação de tal medida deve ser cuidadosamente ponderada, levando em consideração os valores democráticos e os interesses da sociedade como um todo. E a decisão sobre a sua validade e implementação não pode ser deixada à mercê de conjeturas ideológicas, mas sim da essencialidade de tal medida para a sobrevivência da nossa sociedade tal como a conhecemos.
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