Portugal a brincar com o fogo
Somos o país da Europa com maior área ardida. E o único sem uma frota de Canadair para combater os incêndios florestais. O ministro da Defesa está disposto a entrar no campeonato dos países responsáveis, nos termos que avança ao Nascer do Sol
O Estado português combate os grandes incêndios com aviões alugados, de um modelo com 30 anos, fora de prazo de validade. Quando as chamas se tornam trágicas, o que acontece todos os anos, fica dependente da ajuda internacional. Os Canadair de Marrocos, agora, e os de Espanha e Itália, na carnificina de 2017, serviram de Santa Bárbara ao ‘dispositivo’ português, cada vez mais caro e impotente para travar a trovoada de fogos florestais que nos visita, sem falhas, a cada verão.
A comparação internacional justifica uma medalha de cinzas ao nosso regime democrático. A Grécia tem Canadair desde os anos 1970, operados pela Hellenic Air Force. Atualmente, dispõe de uma frota de 17 aviões, mas já encomendou mais sete. Espanha e Itália também adquiriram nessa época aviões do modelo original (CL-215). De 1994 para cá, investiram em Canadair (CL-415), com motores turbo, modelo mais avançado em atividade. Em Espanha, são operados pela Força Aérea, em Itália pertencem ao Corpo Nazionale dei Vigili del Fuoco, bombeiros do Estado. Marrocos começou a operar aviões do novo modelo em 2011. Portugal nunca adquiriu qualquer avião.
A produção de Canadair esteve suspensa, por dificuldades económicas dos fabricantes, e foi recentemente retomada. Em março de 2024, a Comissão Europeia anunciou a compra de 12 aviões Canadair DHC-515, financiados com 600 milhões de euros pelo mecanismo RescEU. Esses aviões serão distribuídos entre seis países: Croácia, Grécia, Itália, Espanha e Portugal, com cada um deles a receber dois aviões. A diferença é que países como a Croácia, a Grécia e a Itália encomendaram aviões extra (ver infografia). Marrocos fez o mesmo, para duplicar a sua frota de seis bombardeiros de água.
O ministro da Defesa Nacional (MDN), em declarações ao Nascer do SOL, sustenta que «Portugal só vai ter dois Canadair por decisão deste Governo». Nuno Melo, como deputado europeu, já defendia este investimento, nunca concretizado pelos Governos socialistas. Para vermos essas aeronaves no combate aos fogos será necessário esperar até 2030. Considerando o estado de abandono da floresta, continuarão a ser muito úteis na altura.
Dois aviões, parece evidente, são melhor do que nada. Esta lógica, contudo, é discutível. Os Canadair são eficazes em carrossel. Na Grécia e na Croácia, por exemplo, bandos de quatro aparelhos atacam um único incêndio, o que lhes permite largar água em permanência sobre as chamas. Enquanto alguns aparelhos reabastecem 6.500 litros de água no mar, num rio ou numa albufeira, em doze segundos, outros atacam as chamas. «Dois Canadair não servem para nada, até por causa das avarias e necessidades de manutenção», critica António Nunes, presidente da Liga de Bombeiros Portugueses.
Em 1997, o então inspetor superior de bombeiros visitou a fábrica destes aviões no Canadá. António Nunes veio de lá convencido, ao ponto de recomendar ao Governo de António Guterres a aquisição de pelo menos três ou quatro Canadair. O então ministro da Administração Interna tentou satisfazer esse sonho, mas o investimento esbarrou na ‘indisponibilidade’ orçamental do Ministério das Finanças. Jorge Coelho ainda tentou montar uma parceria público-privada (PPP), para amortizar a despesa ao longo de 10 anos. Em março de 2001, a Ponte de Entre-os-Rios caiu, morreram 59 pessoas e o ministro abandonou a política ativa antes da constituição dessa empresa.
Cinco anos depois, com António Costa como titular da pasta, o Estado abriu um concurso público internacional para contratar meios aéreos. Nenhuma empresa se apresentou a oferecer aviões Canadair, que em regra são encomendas de Estado. O concurso caiu para o lado da Rússia: seis helicópteros Kamov, originariamente concebidos para missões de guerra, pelo preço de 51 milhões de euros.
A história desses aparelhos foi penosa. Só nos primeiros dois ou três anos andaram a combater fogos florestais. Um a um, todos foram ficando inoperacionais, devido a problemas mecânicos estranhamente irresolúveis. Foram deixados à ferrugem do tempo num hangar da Proteção Civil, em Ponte de Sor. Os Kamov, comprados em 2006 novinhos em folha, eram encarados como sucata. Acabaram oferecidos à Ucrânia, em 2023, que os recuperou com espantosa facilidade e os tem no ativo.
Em 2016, a encomenda de aviões Canadair voltou à agenda do Governo, tendo sido abandonada em favor da modalidade de aluguer de aparelhos a operadores privados, alegadamente pela preocupação com os custos de manutenção. A então ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, invocou «razões éticas» para declinar prestar informações ao Nascer do SOL sobre esse processo.
O problema é que o mercado, neste caso, já não consegue corrigir 50 anos de atraso no planeamento de meios do Estado. A Força Aérea Portuguesa (FAP) lançou um concurso público internacional para a aquisição de quatro aviões Canadair com motores turbo, dos modelos mais recentes. Esse concurso ficou deserto, à semelhança de outro lançado há dois anos.
Quem não tem cão, caça com gato. A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) assume que «as dificuldades na contratação dos modelos pretendidos— evidenciadas nos concursos de 2023 e 2025 — levaram a Força Aérea, entidade responsável pela contratação dos meios aéreos, a comunicar a esta Autoridade a sua intenção de voltar a contratar de novo as aeronaves CL-215 para os próximos três anos», refere José Manuel Moura, presidente da ANEPC, em resposta escrita ao nosso jornal. « A opção que a ANEPC apresentou foi contratar mais dois helicópteros pesados e os dois Canadair mais antigos, que têm vindo a ser utilizados nos últimos anos, e que ainda estavam disponíveis», esclarece igualmente por escrito o gabinete do chefe do Estado-Maior da FAP, Cartaxo Alves.
https://sol.sapo.pt/2025/08/14/portugal-a-brincar-com-o-fogo/