Líbia: Falta fazer o mais difícil Alexandre Reis Rodrigues Ainda não chegou a altura de comemorarmos o facto de mais de seis milhões de pessoas se terem libertado de um ditador que, no mais completo desprezo pela necessidade de instituições como base de funcionamento de um Estado, imaginava ser possível dirigi-los indefinidamente numa base de poder exclusivamente pessoal.
Neste momento, pode dar-se como certo que Kadhafi não voltará ao poder mas enquanto tanto ele como os seus familiares próximos e colaboradores directos não forem localizados e definitivamente neutralizados, a revolução que os afastou continua a correr riscos consideráveis.
Encontrá-lo deve, portanto, ser a grande prioridade para o Conselho Nacional de Transição. Enquanto não o conseguir, os fiéis do ditador, que ainda restem, continuarão activos a ameaçar a segurança, como que encorajados pela sobrevivência do líder, e as forças da oposição, não tendo completado o seu trabalho, não se deixarão desmobilizar a favor de novas Forças Armadas e Forças Policiais, o que, em qualquer caso, demorará mais tempo do que o desejável.
Neste quadro, a instabilidade geral no País continuará a dominar o dia a dia e a minar a esperança geral de melhores tempos. O risco grande é essa situação impedir o ambiente necessário para fazer com que o colapso do regime de Kadhafi - objectivo alcançado - evolua para uma mudança de regime que corte claramente com o passado e que, com o ritmo mais adequado ao País, o faça entrar num modelo de funcionamento baseado em instituições em que o povo líbio confie.
Esse ambiente só existirá se a população perceber que a sua situação pode melhorar a curto prazo com os novos líderes. Se não for criada essa percepção, o desfecho pode ficar nas mãos da primeira “força salvadora” que lhes prometa a saída do desastre. Como lembrava Scott Stewart, foi por essa via que no Afeganistão, depois da retirada russa, perante o caos em que os senhores da guerra fizeram mergulhar o País, a população olhou, de início, para a entrada em cena dos talibãs.
Naturalmente, é ao Conselho Nacional de Transição que deve caber a tarefa principal de criar as condições para que o País saia da zona de risco elevado em que se encontra e de liderar o respectivo processo; aliás, como também lhe coube concretizar no terreno a queda do regime. Concorda-se, portanto, que a NATO e, em geral, todos os Países que estiveram envolvidos na situação, procurem deixar bem claro essa ideia.
No entanto, é preciso ter presente que nos tempos mais próximos, tudo ou quase tudo vai girar, quase exclusivamente, à volta do tema segurança. Sem segurança será difícil repor brevemente o fornecimento de água, gás e electricidade, não se sabendo se a situação existente resulta de danos acidentalmente sofridos no decurso do conflito, se de acções de sabotagem preparadas por Kadhafi. Sem segurança, a actividade económica não será reposta tão cedo, o comércio demorará mais a reabrir e não haverão incentivos que cheguem para que os milhares de armas que saíram ilegalmente dos depósitos das Forças Armadas e Polícia sejam devolvidos.
Sem segurança não será possível reunir a cooperação técnica estrangeira necessária para avaliar os danos que as infraestruturas petrolíferas sofreram e para repor, tão rapidamente quanto possível, a produção. Neste momento, ninguém consegue estimar com um mínimo de certeza quanto tempo poderá essa tarefa demorar. Tanto pode ser uma questão de dias, na melhor das hipóteses, como uma questão de meses; depende também da forma como as instalações foram paradas. Provavelmente, as que se encontravam a leste, tendo sido alvo das forças de Kadhafi, são as que requererão maiores cuidados.
Sem segurança não será possível clarificar quantos dos 20.000 mísseis anti-aéreos (shoulder-fired) que Kadhafi possuía no início do conflito ainda existirão e quem é o responsável por eles. Também ninguém pode estar seguro das condições de armazenamento de mais de nove metros cúbicos de agentes para armas químicas e entre 500 a 900 metros cúbicos de urânio ainda sob a forma inicial de “yellow cake”, presentemente ainda guardados pelas mesmas forças, num “bunker” no deserto. Embora se trate de material que se presume deteriorado, já sem condições de servir para o fabrico de armas, nem por isso pode deixar de ser vigiado até à sua completa destruição.
Conseguirá o Conselho Nacional de Transição manter-se unido neste quadro de enormes dificuldades e garantir a liderança que o País precisa? Chegarão os créditos que o seu chefe, Abdel Jalil, ganhou, na forma como conduziu a revolução, para se impor sem reservas perante os seus pares? Chegará a larga aceitação de que goza, para tornar os apelos, que tem feito, em ordens concretas que todos terão que cumprir? É difícil imaginar que esse objectivo seja possível sem uma força de segurança organizada que não existe presentemente. A tarefa dos que ajudaram o Conselho a retirar Kadhafi do poder está longe de esgotada. Só está em aberto a forma como se concretizará.
Jornal Defesa