Entrevista com Francis Fukuyama "EUA e Europa não devem tomar partido na grande guerra civil entre Irão e Arábia Saudita”
Afável, sem disfarçar o cansaço de múltiplas viagens, Francis Fukuyama recebe-nos com tempo muito contado, numa longa sexta-feira de entrevistas e discursos nas Conferências do Estoril. Acaba de lançar em Portugal o seu volume “Ordem Política e Decadência Política”, com quase 800 páginas, sobre as evoluções políticas e sociais desde a Revolução Industrial às Primaveras Árabes.
Começamos pelo fim. Interessa-nos o seu olhar sobre a actualidade no Médio Oriente que, veremos, está sempre ancorado na sua tese da importância das instituições. Aquelas que, na sua visão, constroem o caminho para a democracia liberal, o tal “fim da história” que lhe deu fama e que continua a defender. Mesmo que seja preciso lançar mão de alguma paciência. Paciência e pragmatismo, por exemplo, na hora de escolher um lado num tempo e espaço de violentas incertezas.
Depois de todas estas decapitações e violência generalizada, ainda considera que o auto-denominado Estado Islâmico é um “tigre de papel”, como escreveu há dois meses?
Bom… Sim, no fundamental, ainda acredito nisso. Penso que o verdadeiro problema está na fraqueza dos governos do Iraque e da Síria. E na sua incompetência e falta de legitimidade.
O que tem mesmo que acontecer é que estes revezes os levem a organizar seriamente o seu dispositivo militar, de forma a reconquistar aqueles territórios. Não estou certo de que Assad consiga fazer isso neste momento, uma vez que a sua base política é apenas a comunidade alauita.
O Governo de Bagdad perdeu, sim, uma grande oportunidade para se legitimar através de uma maior inclusão. Ainda podem fazê-lo, se forem mais comprometidos em relação a isso.
Então, quer dizer que há esperança, em relação a este desafio?
Bom… Infelizmente, tenho uma espécie de visão cínica desta questão, uma vez que considero que estamos a assistir a uma grande guerra civil que pode durar algum tempo entre sunitas e shiitas, com a Arábia Saudita e o Irão apoiando todos os grupos que actuam em diferentes países.
Não penso que os Estados Unidos ou a Europa tenham realmente algo a dizer no desfecho, mais do que apenas prevenir que um lado ou outro dominem por completo a região.
Nesse sentido, penso que a nossa política deve passar pela preservação de um equilíbrio e não tomando partido, tentando conter o conflito de forma a que não nos magoe.
Defende a contenção em vez da confrontação. Mas não é isso que a administração Obama está a fazer? Os Estados Unidos têm uma estratégia para o Irão e, ao mesmo tempo, dialogam com a Arábia Saudita. Estão no "banco de trás" de toda esta situação. Considera correcta a posição da administração Obama?
Sim, tem razão. De facto, é isso que a Administração Obama está a fazer. Não o pensaram como uma estratégia coerente, mas penso que, de facto, estão a tentar evitar a introdução de tropas terrestres americanas na região. Penso que é uma estratégia muito sensata. De facto, devemos fazer todo o que podermos para evitar sermos “sugados” por um lado ou pelo outro deste conflito.
Mas isso não durará para sempre. Algumas vozes nos Estados Unidos poderão defender que os norte-americanos podem ter que ir, por exempl,o a Ramadi, no Iraque, onde se vive uma situação muito difícil.
Se olhar para as sondagens, há muito pouco "apetite" nos Estados Unidos, mesmo entre eleitores republicanos, para a reintrodução de largas quantidades de tropas militares no Médio Oriente. Penso que o que está a acontecer é que os republicanos estão a usar isto como um meio partidário de atacar Obama. Duvido que, se tivéssemos um presidente republicano, ele enviasse largos contingentes de tropas terrestres para o Médio Oriente.
Não se entra numa guerra quando não se sabe como se pode acabar com ela?
Um dos grandes problemas da política externa americana naquela região é, fundamentalmente, a falta de conhecimentos. Mesmo nos dias de hoje, penso que não sabemos que lado apoiar na Síria. Não conhecemos os actores, não temos o conhecimento aprofundado que, por exemplo, os britânicos já tiveram nessa região, quando eram o poder colonial. Dado esse facto, sou muito céptico em relação sobre os chamados “especialistas” que oferecem soluções muito específicas para resolver, por exemplo, o conflito na Síria.
Mas alguns destes países continham uma "ideia de Estado”. O Egipto tinha universidades, uma sociedade civil. A Tunísia tem um regime constitucional. O Iraque também tinha muitas estruturas no passado. Como caracteriza actualmente esta "falta de instituições" que é uma peça central no seu argumento a favor do real funcionamento de uma democracia?
Tivemos regimes autoritários, aparentemente estáveis, em quase todos os países árabes. Em retrospectiva, podemos dizer que eram bastante frágeis, porque lhes faltava a legitimidade. Eram baseados em populações minoritárias, faziam uso de forte repressão. No momento em que mostravam alguma fraqueza, a sociedade civil explodia, dizendo que não aceitava esses regimes. Isso foi o que realmente perturbou essa região desde o fim dos colonialismos, este falhanço a criar formas de governo largamente legitimadas. Elas não têm que ser democráticas, só têm que ser efectivas. De alguma forma, fizeram-no em algum grau no Golfo, porque esses regimes conseguiram disseminar riqueza de forma suficiente para que não existam grandes levantamentos populares. Esse é também um modelo frágil, porque está tudo dependente da riqueza do petróleo. Se este desaparecer, nada vai sobreviver.
Em termos genéricos, vê possibilidades num 'florescimento’ da democracia no Médio Oriente?
Bom... Penso que deveria fazer essa questão em 1815. Seria possível que a democracia viesse a existir na Europa depois das derrotas de Napoleão e do colapso da Revolução Francesa? Nessa altura, seria muito pouco provável. Olhe para as forças conservadoras na Europa, que querem manter a ordem tradicional. Levou outros cem anos à Europa para aparecer como tal. Penso que temos que ser pacientes.
Renascença