https://cnnportugal.iol.pt/datacenter/sines/bernardo-mota-veiga-a-microsoft-vai-investir-10-mil-milhoes-em-sines-e-este-e-o-produto-que-pode-fazer-de-portugal-a-suica-digital-do-seculo-xxi/20251124/69237350d34e2bd5c6d452ebA Microsoft vai investir 10 mil milhões em Sines - e este é o produto que pode fazer de Portugal a Suíça digital do século XXI
Portugal tem condições estratégicas únicas. E pode legislar a favor dessas oportunidades
Em 8 de Novembro de 1934, a Suíça aprovou a Lei Federal sobre Bancos e Caixas de Poupança que, entre outros, estabeleceu penas duras de multa e prisão a funcionários bancários que quebrassem a obrigatoriedade legal de confidencialidade. Esta lei, aliada à neutralidade política e militar do país, deu à Suíça uma vantagem competitiva única, revolucionando o seu sistema bancário ao mesmo tempo que atraiu bens e valores de quem procurava proteção em tempos de incerteza.
Dos relógios e dos chocolates, a Suíça criou com essa lei um novo produto que conquistou de imediato um mercado imenso, colocando o país no centro do mundo financeiro e servindo em simultâneo heróis e vilões. Esse produto chamava-se confidencialidade. O impacto foi imediato: crescimento económico, reputação internacional e valorização do franco suíço.
A Suíça, pelo seu papel de neutralidade, já desempenhara um papel fundamental na Primeira Guerra Mundial no que dizia respeito à proteção de bens e capital. Mas com a aprovação da lei, que entrou em vigor em 1 de Março de 1935, a proteção suíça ficou verdadeiramente blindada por uma legislação que tornava a confidencialidade inquebrável e assente num modelo que permitia esconder a identidade.
A Segunda Guerra Mundial veio provar que o novo “produto” desenvolvido pelo sistema bancário suíço era não só desejado, como útil ou mesmo fundamental. Refugiados, empresas e governos encontraram na Suíça um porto seguro para patrimónios que, de outra forma, poderiam ser destruídos, roubados ou confiscados.
O que isto tem a ver com os dados?
A Microsoft anunciou recentemente um investimento de 10 mil milhões de euros em centros de dados em Sines, Portugal. Mas terá Portugal sido um acaso ou
algo muito mais profundo condicionou a escolha?
Da mesma forma que a Ucrânia desempenhava um papel fundamental no transporte de gás para a Europa, Portugal beneficia de um enquadramento estratégico, desta feita no que diz respeito a cabos de dados. Desembocam no nosso país alguns dos cabos ópticos submarinos mais importantes para a Europa, ligando as Américas (sul e norte) ao espaço cibernético europeu. Uma das razões pode ser a gigantesca extensão da nossa zona económica exclusiva, que permite que um cabo chegue a Portugal sem ter que atravessar outras zonas, diminuindo os aspetos burocráticos óbvios, ao mesmo tempo que cabos que ligam outros países acabam por atravessar a nossa própria zona económica exclusiva. Brasil, EUA, África ligam-se a nós para se ligarem à Europa.
Dados verdes, dados confiáveis
Portugal tem atualmente uma das maiores implementações de energias renováveis na Europa, transformando os dados em dados “verdes” e, ao mesmo tempo, em dados mais baratos. No fundo, os dados são energia transformada em informação, empacotada através de algoritmos de processamento que exigem infraestruturas robustas e seguras. O nosso enorme investimento em renováveis impacta no preço dos produtos que envolvam grandes quantidades de energia, como é o caso dos dados.
Embora a descarbonização possa não ser efectivamente o critério decisivo para a vinda de empresas como a Microsoft, Portugal acrescenta uma vantagem ainda mais rara: a sua neutralidade e estabilidade política. Se a energia torna os dados mais baratos e sustentáveis, a neutralidade torna-os mais confiáveis e atrativos para quem procura um porto seguro digital.
A confidencialidade aplicada aos dados
A proteção que a Suiça deu aos bens materiais pode ser a que Portugal pode dar aos dados aqui guardados e processados. A Inteligência Artificial só funciona com quantidades massivas de dados. Quando tivermos carros a andar sozinhos na estrada e drones-táxi a levar pessoas pelo ar, quereremos garantir duas coisas: que os dados que os fazem operar sejam incorruptíveis mas quereremos também que esses dados sejam confidenciais.
magine o seu assistente pessoal de Inteligência Artificial, que sabe tudo sobre si — o que fez, o que pensa, onde esteve. Uma extensão de si, portanto. Acha que os americanos vão querer que os alemães saibam tudo sobre a vida dos americanos? E acha que os franceses vão achar bem os americanos terem acesso a todos os seus dados?
Geopolítica dos dados
Considere agora dados clínicos, dados financeiros e tantos outros que quebrarão toda a confidencialidade de indivíduos e empresas se caírem nas mãos ou nos governos errados. O posicionamento geopolítico de cada país vai determinar a sua capacidade e credibilidade para tomar conta dos dados seus e de terceiros e as leis de cada um poderão criar a segurança adicional que pode fazer a diferença.
Embora a Inteligência Artificial possa parecer uma nuvem sem lei nem fronteiras, na realidade os dados são processamento físico que acontece algures num espaço físico. Os dados são processados por placas de circuitos integrados que existem fisicamente e são armazenados em chips de memória que existem fisicamente. O local onde tudo isso está importará, e de que maneira.
Não imagino os Estados Unidos fazerem centros de dados na Venezuela ou na China. Basta ver as lutas sobre dados simples de “login” em algumas aplicações; imagine-se agora dados tão complexos processados e guardados pela Inteligência Artificial.
A oportunidade Portugal
Portugal tem 900 anos, é estável, é credível e é, na realidade, neutro. Temos os acordos de proteção suficientes, mas temos também a autonomia suficiente. Agora comparemos com o que a Suiça fez em 1934 e extrapolemos com o que Portugal pode fazer protegendo não o capital, mas os dados de inúmeros outros países. Os dados poderão ser o novo ouro e Portugal o novo "Fort Knox" digital.
Não sabemos o que está por detrás da escolha da Microsoft, mas sabemos que essa escolha não acarreta as dúvidas políticas do próprio governo americano que acarretaria se a Microsoft tivesse escolhido outro qualquer país.
Não é possível as empresas globais operarem em todo o mundo sem sistemas de suporte de infraestruturas descentralizados. Esse vai ser agora o desafio e até mesmo a âncora para algumas parcerias estratégicas entre governos. Mas poucos são os governos que representam países como Portugal: uma vasta história de estabilidade, continuidade e bom senso.
Claro que a concorrência é feroz — Irlanda, Holanda e até a Islândia já têm vantagens fiscais e energéticas. Mas nenhum deles oferece a combinação única de neutralidade histórica e posição atlântica que Portugal tem. É essa singularidade que pode transformar o país num ponto de convergência para dados sensíveis ao mesmo tempo que crescemos a nossa relevância geopolítica servindo simultaneamente países de todos os continentes que muitas vezes não se entendem.
Confidencialidade e oportunidade económica
Se olharmos para toda a Europa, não é difícil perceber que Portugal e Suiça serão talvez os dois países mais equilibrados e neutros para guardar e processar informação sensível que a IA consolidará e criará. Mas Portugal, desta vez, tem muitas vantagens pela localização, pelo enquadramento político, pela energia e pela neutralidade
rge fazermos como a Suiça fez em 1934: desenvolver o tal produto de proteção e confidencialidade agnóstica — desta vez aplicado aos dados. Isto implica legislação específica que estabeleça penas severas para a quebra de sigilo de dados e que posicione juridicamente Portugal como um "data haven" neutro.
Mas não é apenas uma questão legal. É também uma oportunidade económica gigantesca. A instalação de centros de dados em Portugal abre portas a:
Mão de obra altamente qualificada em engenharia, programação e cibersegurança.
Serviços de manutenção e infraestruturas que criam emprego e dinamizam regiões fora dos grandes centros urbanos.
Clusters tecnológicos que atraem investimento estrangeiro e estimulam startups nacionais.
Formação avançada em áreas críticas como proteção de dados, inteligência artificial e energias renováveis.
Portugal pode não ser o maior país europeu em volume de dados, mas pode tornar-se o mais neutro e atrativo para dados sensíveis. Ao contrário de outros cenários geopolíticos, países como China, Japão, Índia, Reino Unido ou EUA não se oporiam, à partida, a que dados fossem processados e armazenados em Portugal. Pelo contrário: poderiam ver em nós um ponto de convergência neutro, credível e estável pois as nossas relações com muitos deles resultam de séculos
Se a Suíça transformou a confidencialidade em produto financeiro, Portugal tem agora a oportunidade de transformar a confidencialidade em produto digital - e, com isso, posicionar-se como o coração dos dados da Europa e do mundo.