A farmácia otomana que cura no Porto
É uma viagem dupla, ao Médio Oriente e ao século XIX, que está a cativar visitantes para o Museu da Farmácia no Porto. Uma farmácia de um palácio na Síria é hoje peça maior do espaço e provocou mesmo, desde maio, um boom de entradas.
Nasceu para tratar enfermidades numa região do mundo que sofre hoje com a doença da guerra. A farmácia islâmica que no século XIX foi curativa para os habitantes de um palácio de Damasco, na Síria sob domínio otomano, é agora uma atração no Museu da Farmácia do Porto. É um património único que deu um impulso decisivo em termos de visitantes a este espaço museológico que a Associação Nacional de Farmácias criou, alargando a norte o museu já existente em Lisboa. E nem a invulgar localização, numa zona industrial, tem afastado os interessados.
Quando se transpõe a porta e se acede ao museu nem se dá pela farmácia islâmica. Há muito para ver antes. Seguindo o percurso, cronológico, da história da farmácia no mundo, só se entra no espaço quadrangular de origem árabe mesmo perto do final do circuito da visita. Foi, de resto, a última peça a chegar à coleção do Porto do Museu da Farmácia, em maio passado.
A importância deste tipo de farmácia desenvolvida no Império Otomano é relevante. É o seguimento de uma cultura islâmica que deu um significativo contributo para a venda de medicamentos e outros produtos ligados à saúde e ao bem-estar das pessoas. "O conceito de farmácia moderna surgiu no Islão, em Bagdad, no século VIII. É também importante não esquecer que as palavras almofariz, alambique ou química vêm do árabe, que promoveu a descoberta dos medicamentos no combate às doenças", explica João Neto, diretor do museu.
"Não é uma farmácia de rua, só funcionava para o interior do palácio", ressalva o responsável, embora o número de pessoas que frequentava o edifício fosse alargado.
Neste espaço do século XIX está apenas uma parte de todo o envolvimento que uma farmácia islâmica proporcionava. João Neto é um cicerone informado e uma visita ao museu da farmácia ganhará sempre com as suas explicações sobre os objetos expostos. Fica-se a saber que os doentes eram preparados. Normalmente usava-se um banco para o paciente se sentar e depois existia um diálogo. Na farmácia islâmica não há balcões, em seu lugar existiam o tapete e os banquinhos. "Falava-se de saúde e preparava-se a pessoa para tomar o medicamento. Havia uma grande comunicação."
Comunhão com a naturezaNo museu está o mobiliário e alguns dos utensílios, mas o saber islâmico promovia um "contacto com a natureza", que agora, no Porto, se fica por uma pintura. "Aqui era a saída para a natureza. O espaço de saúde só se completava com um jardim, com uma ligação ao tratamento natural muito forte."
Por isso, há até tratamentos que podem surpreender nos dias de hoje. "Buscavam o equilíbrio da natureza. Os islâmicos vão usar o som da água para tratar a tristeza - no fundo aquilo que hoje se chama depressão."
Quando se contempla esta farmácia e se conhece a origem, fica logo no ar a dúvida sobre o que seria deste espaço se ainda estivesse na Síria, mesmo sabendo que Damasco resiste à total destruição que assolou outras grandes cidades sírias. João Neto reconhece que é "incrível como aqui estamos a preservar um património que pertence a uma região que está em guerra. Acaba por ser um lado positivo".

E como é que uma farmácia de Damasco veio parar a Portugal? Este conjunto museológico, explica o historiador que dirige o museu, foi comprado em Londres a negociantes de arte. "Esta farmácia tem passaporte e foi adquirida. Aliás, a quase totalidade do espólio do nosso museu, em Lisboa e Porto, foi adquirida", explica.
A mudança de continente só foi "possível devido aos protetorados, que permitiram que muitas coisas viessem para a Europa". A Síria foi dividida em duas áreas após a Primeira Guerra Mundial com a queda do império Otomano. Franceses e ingleses tomaram conta de cada uma das partes até à década de 1940, época em que, após o final da Segunda Guerra Mundial, o país árabe se tornou independente.
Se por um lado há uma vertente colonialista no transporte deste património para a Europa, há pelo menos a consolação que desta forma está bem conservado, tendo em conta que hoje a Síria é um país dilacerado pela guerra, com muitos bens históricos destruídos.
Após a aquisição, a farmácia chegou a Portugal a necessitar de um apurado trabalho de restauro. "Desde 2009 que o trabalho de preservação foi desenvolvido pela Fundação Ricardo Espírito Santo e devo elogiar a qualidade com que foi realizado", faz questão de frisar o diretor do museu.
"Na Europa não há muitos exemplos de palácios islâmicos, muito menos de farmácias. Há um que está no Metropolitan, em Nova Iorque, é o único caso que conheço", explica João Neto, orgulhoso da peça que o museu apresenta.
"Havia muita gente ligada à farmácia e todos os profissionais estavam muito bem divididos nas tarefas." Os armários ocultam agora as prateleiras que continham dezenas de medicamentos. "É tudo de madeira, com folha de ouro", realça João Neto, apontando ainda as inscrições com "frases que apelam ao conhecimento". É um património da comunidade islâmica que está em Portugal. "Temos a honra de ter um pedaço da sua história."
Conceito de espaço aberto"No Islão nem tudo é mau. Quem conhece a história sabe que contribuíram muito para o desenvolvimento do mundo", realça o diretor do Museu da Farmácia. Explica que foi no mundo árabe que foi "criado o conceito de espaço aberto ao público, é a primeira forma de farmácia". Com os Cruzados essa perspetiva vem para a Europa e faz nascer farmácias neste continente.
No Porto, tem aparecido muita gente interessada em saber mais sobre esta farmácia. "Está a ser um sucesso, o número de visitantes aumentou muito. As pessoas dizem que viram na televisão ou nos jornais e aparecem", garante João Neto. Com a farmácia islâmica houve esse boom de entradas que irá fazer aumentar a média das 12 mil entradas anuais no museu. O preço do bilhete é de cinco euros. As visitas escolares são também uma constante, não só para esta nova peça mas também para todo o conceito do museu. Há visitas de crianças que aprendem alguns processos químicos ligados à arte farmacêutica.
A localização é um pouco estranha, na Rua Eng. Ferreira Dias. "É verdade, estamos no meio de uma zona industrial, longe do centro do Porto, mas tem vantagens: só assim dispomos do espaço necessário para um museu com estas características." As desvantagens passam por ficar numa área fora dos roteiros turísticos. "As pessoas têm de vir mesmo aqui. É mais difícil trazer um turista mas eles vão aparecendo."
Em frente à relíquia islâmica está uma outra, mas bem portuguesa. É a excelente reconstituição da Farmácia Estácio, inaugurada em 1924, na Rua Sá da Bandeira, no Porto. Esta farmácia ficou célebre no final dos anos 1940 pela sua balança falante tornando-se um ex--líbris da Baixa portuense.
E coerermo em Lisboa está a única farmácia chinesa existente na Europa, João Neto aspira um dia adquirir uma farmácia hindu. "É a que falta para completar os grandes avanços históricos da farmácia."
Viagem histórica com a doença e um crocodilo de Fidel CastroSão milhares de anos da história universal da saúde. É assim que João Neto define o museu da farmácia nas suas duas divisões, Lisboa e Porto. Tudo começou em 1996 com a criação do espaço lisboeta, logo premiado no ano seguinte como o melhor museu português. Em 2010 foi o tempo para abrir o museu no Porto.

Muito pode ser descoberto nas relíquias. Até há uma curiosa peça, um crocodilo oferecido por Otelo Saraiva de Carvalho ao museu do Porto. "Ele visitou-nos e quis doar a peça. Recebeu de presente de Fidel Castro em 1975 e quando houve no Porto uma cimeira Ibero-americana, o Otelo esteve cá [Fidel Castro participou nessa cimeira] e quis deixar o crocodilo no museu", explicou João Neto. O crocodilo é um dos animais que forneceram matéria para medicamentos.
Há muito mais. São 15 mil peças que se dividem pelos dois museus, em que o objetivo é "contar a história da saúde e pelo caminho a história humana". Porque "a doença é tão antiga como o homem", diz o diretor. Por isso, com foco apenas no espaço museológico nortenho, é possível acompanhar as principais transformações que o combate à doença foi conhecendo ao longo dos séculos, com milhares de peças ordenadas cronologicamente. Recuamos até à Mesopotâmia e ao Antigo Egito, esta uma das idades de ouro do conhecimento. O sarcófago, representado no museu, significava a preservação da vida.
As peças ganham mais saber com a Grécia e a medicina de Hipócrates. A serpente, que já vinha da Mesopotâmia, ganha o estatuto de símbolo da farmácia: conseguir transformar o veneno numa cura. Perdura até hoje. Avançamos e no Império Romano encontramos instrumentos cirúrgicos como parte da cura da doença. Com o mundo árabe tudo ganha uma dimensão ainda mais profissional. "Passa a ser atividade regulamentada, com profissionais credenciados. A química começa a ser levada a sério e surgem as ervas e os chãs." Tudo isto pode ser visto no Porto, com as peças ali expostas a serem originais. "Não há peças repetidas no nosso museu. Em Lisboa estão umas, aqui são outras", diz.
A viagem estende-se ao Oriente, ao Tibete, China e Japão, onde já existiam noções que não eram conhecidas na Europa. Da América do Sul e das civilizações pré-colombianas há também peças e até de África. "São peças de aspeto horrível, era para prevenção da doença." Em Portugal e na Europa é por volta do século XVIII que as farmácias se desenvolvem. "Eram espaços muito iluminados, com a noção de que há esperança, há luz ao fundo do túnel." A Igreja tinha papel decisivo.
Todo este percurso reunido no museu resume-se em três pontos: Investigar, conservar, expor - João Neto diz que objetivo é "ter uma boa política de conservação e criar comunicação entre a história e as pessoas". Definindo-se, com um sorriso, como o Indiana Jones da farmácia, o historiador João Neto é também o presidente da Associação Portuguesa de Museologia. Deixa um forte elogio à classe profissional que levou à criação do museu. "O orgulho de ser farmacêutico foi decisivo. As farmácias em Portugal não ficaram pela linha costeira, o interior tinha muitas. Há uma grande tradição e história nos farmacêuticos." João Cordeiro "teve a visão de que deveria ser um projeto" da Associação Nacional de Farmácias, a que presidiu. E assim se construiu este museu.
DN