Histórias Reais

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TOMKAT

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Histórias Reais
« em: Maio 04, 2006, 04:26:52 pm »
Outros olhares sobre a participação portuguesa na I Guerra Mundial

Para além dos muito citados governantes, generais,....e o soldado milhões, o CEP (Corpo Expedicionário Português) era constituído por gente mais ou menos anónima, que a história esqueceu ou nem sequer reconheceu, pelos que de facto arriscaram a vida, por causas muitas vezes dúbias, como sempre “carne para canhão”, instrumentos dos joguetes e ambicões duma classe dirigente insensata.

Vem isto a propósito de alguma documentação que me chegou às mãos, que mostra um lado mais particular e pessoal do que foi a participação portuguesa na I Guerra Mundial.
Tão particular e pessoal, por essa mesma documentação fazer referência a intervenientes no conflito, naturais ou muito ligados ao local onde estão as minhas raízes mais profundas,… a aldeia onde nasci, e de cujos descendentes sou particular amigo.

O personagem principal desta texto era um padre, pároco da minha freguesia no início do século passado, com uma vida pessoal no mínimo agitada, para o habitual sossego eclesiástico.

Pessoa interessada e participativa nos assuntos dos seus paroquianos, “homem de garra e orador galvanizante,…homem de acção em todo o campo social…“ .

Iniciada a participação portuguesa no conflito, ofereceu-se o pároco voluntário para exercer o seu ministério junto dos militares do CEP, onde já muitos dos seus jovens paroquianos estavam.

Seguidos os passos necessários para que se cumprisse o seu desejo, conseguidas as autorizações dos responsáveis (ft2 e ft3), seguiu o pároco para a Flandres onde integrou o Regimento de Infantaria 7.

Nessa função, rezam as “crónicas”, teve papel meritório pouco usual num capelão.

Dessa participação fica um texto publicado nos idos anos 20 do século passado, n’ “O Mensageiro”, o mais antigo semanário católico, ainda publicado nos dias de hoje.

“…
Não querendo sacrificar mais ordenanças pois era  enviá-las a morte certa, o Comandante perguntou quem voluntáriamente queria ir de novo desempenhar a missão de levar a Infantaria 5 a Ordem de avanço. Olham-se os heróicos oficiais e dentre o grupo avança o alferes-capelão Manuel Caetano, que declara dever ser ele e não outro quem devia ir levar a ordem de avanço.

Conhecedor dos caminhos de todo o sector, evita os cruzamentos e as vias mais largas, que continuavam a ser batidas pela artilharia inimiga. No caminho que segue, deparam-se-lhe cenas comevedoras, como soldados que se arrastavam enquanto tinham forças, retirando-se das trincheiras, alguns moribundos, todos sangrando de feridas recebidas. Um dos feridos mais graves que se lhe depara é um oficial, que não pode pronunciar uma palavra. Um estilhaço rasgara-lhe o rosto e da ferida jorrava sangue em abundância. Não dava acordo de si. O alferes-capelão procura estancar-lhe o sangue. Retira o ferido do meio do caminho e corre a entregar a ordem que levava. Entregue esta, regressa e dirige-se para o local onde deixara inanimado o oficial, que continuava inanimado. Consegue carregá-lo às costas até um Posto de Socorros, bastante afastado onde o entrega, regressando ao Comando para dizer ter cumprido a sua missão. Voltando a percorrer o caminho, novos feridos ajuda a conduzir e conduz ao Posto de Socorros.

O oficial veio a recuperar a vida e do ferimento ficou-lhe uma cicatriz que lhe atravessava o rosto. Quando procurou saber quem o levantara e conduzira ao Posto de Socorros, apenas soube que fora um capelão. Após porfiados esforços veio a saber que o capelão que o salvara fora o ver.º Manuel Caetano.

O oficial ferido era o alferes Jaime Trancoso Leote do Rego, que, procurando o seu salvador, ao pretender agradecer-lhe, foi por este obrigado a não proferir palavra, pois se limitara a cumprir o seu dever.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Decorreram alguns anos. O rev.º Caetano é encarregado da freguesia de Alcanena, onde a perseguição e o ódio à Igreja chegaram ao ponto de queimar a igreja paroquial. O rev.º Caetano era na vida o que fora como capelão nos campos de batalha, zeloso, trabalhador, cumpridor dos seus deveres. Os inimigos do clero e da Igreja não tinham desarmado com o incêndio da igreja e sob qualquer pretexto prenderam o rev.º Manuel Caetano. A notícia da prisão chega à Escola Prática de Cavalaria de Torres Novas, onde prestava serviço o oficial a quem o ver.º Manuel Caetano salvara a vida.

Ao ter conhecimento da prisão, um esquadrão de cavalaria, sob o comando do tenete Leote de Rego, o ferido encontrado na margem da ribeira de Calonne, vence em poucos minutos a distância que separa Torres Novas de Alcanena. Ao chegar à casa onde está preso o rev.º Caetano, o heróico oficial apeia-se, corre a abrir-lhe a porta e obriga-o a vir para a rua. O que o distinto e heróico oficial disse aos que acorreram a presenciar a chegada do esquadrão de cavalaria e a libertação do ver.º Caetano não sabemos, mas sabemos que desde essa data o ver.º Caetano era olhado e respeitado por aqueles que o tinham encarcerado.

O rev.º Manuel Caetano exerceu a sua missão na Flandres em Infantaria 7, onde se contou sempre, desde o oficial mais graduado ao mais humilde soldado, as maiores simpatias e recebeu as provas mais significativas de quanto todos o estimavam.

…”
 
Regressado da Guerra, voltou à paróquia que o viu partir, para continuar o seu trabalho ao serviço da sua igreja.
Mais envolvido no campo social, partcipativo e ainda mais voluntarioso, quiçá consequência da sua presença nos campos de batalha na Flandres e dos malefícios da loucura humana a que assistiu, de tão participativo, envolveu-se com uma paroquiana, e fruto dessa relação deixou descendência, ainda hoje presente.
Dos militares originários da freguesia, muitos perderam a vida.
Dos militares presentes na fotografia (ft1) só um perdeu a vida nos campos de batalha da I Guerra Mundial.


ft1- Foto de alguns intervenientes no conflito originários da freguesia. Em primeiro plano, à esquerda o oficial francês comandante da companhia da qual faziam parte. Em primeiro plano, 4ª a contar da esquerda o revº Manuel Caetano.

Específicamente da aldeia de que sou natural, das cerca de duas dezenas que estiveram nos campos da Flandres nenhum perdeu a vida, o que deu lugar a uma tradição curiosa.

Dias antes das festas anuais em honra da padroeira da aldeia (N.Sra da Graça), era tradição juntarem-se os rapazes solteiros, partirem em grupo durante a noite para as matas nacionais próximas do povoado, e aí, escolhido a melhor árvore que sirva para um mastro de bandeira, normalmente um eucalipto bem esguio e alto, à revelia das autoridades que faziam a gestão da floresta, cortava-se a árvore, sendo esta transportada em ombro a maior parte do caminho (+/- 2 km) até ao local onde iria erguida.
Chegados ao largo da igreja, erguido o mastro no lugar habitual, era içada uma bandeira nacional, simbolo maior do orgulho lusitano.
Esta bandeira era guardada durante o resto do ano pelo rapaz mais ajuizado do grupo, sendo passada a outro, sempre que o guardião do estandarte nacional se casasse, ou por outra razão que o grupo achasse justa.
Esta tradição manteve-se até meados dos anos 80 do século passado, tendo eu participado em algumas surtidas nocturnas pelas matas na busca do melhor mastro.




ft2 - Pedido de aurorização do Pároco para ir para os campos de Batalha


ft3 - Autorização para a partida do Pároco para a Flandres
Ps. Toda a documentação presente neste texto foi cedida por um descendente do reverendo Manuel Caetano.
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«O meu ideal político é a democracia, para que cada homem seja respeitado como indivíduo e nenhum venerado»... Albert Einstein
 

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Yosy

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« Responder #1 em: Maio 06, 2006, 05:20:32 pm »
Fantástico post. Parabéns TOMKAT. As melhores histórias são sempre as pessoais.

:Soldado2:
 

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Luso

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« Responder #2 em: Maio 06, 2006, 09:24:52 pm »
Postal interessante e tópico que pode muito enriquecer este fórum. Obrigado!
Ai de ti Lusitânia, que dominarás em todas as nações...
 

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TOMKAT

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« Responder #3 em: Maio 07, 2006, 02:33:27 am »
Continuando com histórias reais... esta contada na primeira pessoa.

Com a devida vénia ao autor, um delicioso texto de um ex-combatente da Guerra do Ultramar, antigo Fuzileiro Especial Mário Manso, publicado em
http://www.fuzileiros.tk

Citar
...
Fui como muitos jovens do meu tempo, voluntário para a tropa, tal como eu, outros camaradas foram voluntários três vezes e mais. Voluntário para Marinha para Fuzileiro e para o Ultramar, no meu caso também mais que uma vez.

Quando em 1963 chego pela primeira vez a Angola, levo já um ano de preparação para enfrentar uma guerra de guerrilha, e dez dias de viagem que se traduziu num treino difícil em que a capacidade de resistência foi colocada à prova quase nos limites. Comida má, de que resultou em levantamento de rancho pelo pessoal de Marinha embarcado, (menos Oficiais e Sargentos) um navio que seria para transportar menos de mil pessoas, levava 2.800 militares, foi uma viagem de sonho, que a ninguém eu proponho.

Chegamos numa amanhã, em que o sol não conseguiu acordar antes da maioria daqueles, que por não serem turistas elitistas, eram uns animais algumas vezes racionais, desejosos de desembarcar, e não era só, com a ilusão de nos podermos desenrascar, num daqueles moceques de que se tinha ouvido falar, onde era fácil uma bajudinha disponível para amar, mas também, porque já estávamos fartos, de falta de condições para viajar.

Havia muita expectativa no contacto com esta nova realidade, em que a guerra esperava por nós sem nos desafiar, mas que nos propúnhamos enfrentar, tentando com os conhecimentos adquiridos o inimigo aniquilar, sabotando destruindo matando sem nos deixar-mos matar.
Luanda era uma cidade cativante, mesmo tão distante, dos Pais, da Namorada, ou mesmo da Amante, a adaptação era agora muito importante.

Estávamos longe de tudo o que mais gostávamos. O que nos reconfortava e nos acompanhava, era toda aquela camaradagem e todo aquele espirito de corpo, que era e é, apanágio dos Fuzileiros. Estávamos sempre solidários para o que desse e viesse, houvesse pequeno ou grande risco, e isso era muito importante, para se ter máxima força, e sempre avante.

Não havia um olhar objectivo ou critico sobre a guerra, porque a cidade transmitia-nos serenidade e alguma segurança sem grande desconfiança. E nos primeiros dias, o nosso olhar sobre aquela terra, que diziam ser nossa, era de alguma ternura porque o olhar daquele povo indigna, não transmitia ódio. Mas o seu estatuto de vida, era notoriamente diferente do pessoal branco que tinha ido do continente, ou seja no caso, do puto.
Era evidente, que a opinião iria ser mais adversa quando em confronto com realidade diferente.

O pessoal branco que havia, a maioria estava ligado às Forças Armadas. Os radicados, com as suas actividades comerciais em pleno exercício, mostravam o seu poder, que se manifestava a todos os níveis, não temos reservas especiais quanto aos seus comportamentos em relação a nós Fuzileiros. Mesmo quando, algumas vezes tivemos que ser mais radicais em atitudes, que resultaram do nosso conceito de justiça sobre casos pontuais, fomos talvez, inconvenientes, para algumas gentes, para com a ordem estabelecida. Consequências do espírito solidário, a que um Fuzo que se preze, dele nunca bate em retirada, qualquer que seja o campo em que se desenrole a batalha.

Como por exemplo: certo dia, uma patrulha da polícia militar, faz uma abordagem a uns militares do Exercito que por estarem no mato, a sua farda estava destoada na cor, e por incrível que pareça a dita autoridade Militar quis mostrar serviço, disciplina (abuso de autoridade) que se traduzia afinal na falta de respeito pelos seus camaradas, que estavam no duro da guerra e não no bem bom da cidade, onde a vaidade, nem sequer, tem um suporte altruísta. Mas dois Fuzos que estavam por perto, não deixaram consumar a ideia do Alferes e dos seus acólitos, de os levar presos, e da sua intervenção, que finalizou com uns bons pares de socos e pontapés, com umas muchelas à mistura, dando asas aos Militares em falta, que rapidamente desaparecerem da área da emboscada que lhes tinha sido montada, deixando uma luta renhida entre aquelas duas forças, que terminou com a vitória dos desarmados. Tem mais força a razão, do que tem um batalhão.

Quanto mais ignorância, mais disponibilidade para uma obediência inquestionável. E é um pouco neste estágio, que a grande maioria dos nossos Militares, se disponibilizaram para suportar todas as dificuldades inerentes a uma guerra, que só o tempo foi amadurecendo e questionando, das suas razões. Pena é, que as sementes de uma guerra de doze anos, não tenham apodrecido.

Sendo um olhar individual de um ex. Combatente que aos 18 anos já tinha levado o primeiro, dos muitos tiros que uma emboscada de guerrilheiros ofereceu como boas vindas, ao destacamento nº 6 de Fuzileiros Especiais, que de forma pouco gentil, resolveu entrar naquele que era um respeitoso santuário, dos guerrilheiros daquela vasta zona dos Dembos, sem ter tempo de se benzer. Eu não era o padre, mas era o primeiro daquela enorme procissão, que de arma na mão, com ou sem razão, estava a cumprir ordens da Nação.

Já naquele tempo havia condomínios fechados.
Aquela mata vinte e oito de Maio situava-se no “Concelho de Nambuangongo e Freguesia da casa de zinco sem nome de rua ou código postal” coração da guerrilha onde quem tentasse entrar, levava chumbo pela certa.
Das muitas tentativas de assalto, levadas a efeito por outras forças até aquele momento, tinham sido frustradas, a segurança tinha funcionado, e os assaltantes tinha sido sempre postos em debandada, e então, só com a nossa rapaziada o portão foi forçado, e o assalto consumado. As forças invasoras, tiveram dois feridos e um morto.
As forças de segurança das instalações, não conseguiram impedir os assaltantes de destruir o que puderam, desde “armazéns” de viveres, habitações, escolas, enfim, toda aquela qualidade de vida que existia naquela mata paradisíaca, em que o sol não entrava quando cria, que as suas gentes protegia, servindo de maternidade para a criança que nascia, e que lhe servia de berço quando dormia.
Mas a bem da justiça social, tinha que se alterar tudo que estava mal, e ponto final.
IMPROVISAR, LUSITANA PAIXÃO.....
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TOMKAT

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« Responder #4 em: Maio 07, 2006, 02:56:21 am »
Outra do mesmo ex-combatente retirada do mesmo site...
Vidas de Fuziliero Especial em Angola.

Citar
...
Certo noite em viagem de Luanda para Stº António do Zaire a bordo de uma Fragata, seguia o Destacamento de Fuzileiros Especiais que terminava mais um período de intervenção, e ia permanecer por algum tempo patrulhando o rio Zaire e Lagoa do Massabi com algumas incursões em zonas estrategicamente consideradas.

Entretanto pelas quatro da manhã o Comt. do Destacamento manda formar todo o pessoal para se verificar da falta de um Fuzileiro que muito ao largo de Luanda teria sido socorrido por um barco Japonês.
É assim que se chega à conclusão da falta do nosso camarada Solá.

Com mais oitenta homens a bordo do que a sua guarnição, e de noite, nada foi detectado porque nem houve grito de homem ao mar, por bombordo, estibordo, avante, ou a ré. Ninguém tinha dado pelo mergulho forçado do nosso camarada, que heroicamente tinha aguentado mais de seis horas dentro de água até ser salvo.

Mesmo reportando-nos ao tempo, a situação de guerra em que todos estávamos inseridos, e todos os seus condicionalismos mesmo assim, foi no Noticias de Luanda uma notícia com grande relevo.
Mesmo considerando o motivo que provocou a sua queda, “carga ao Mar por bombordo” por razões de carga excessiva e mal arrumada de umas Cucas ou Nocais.

Dizia-se no tempo em que por lá estive que a cerveja cuca financiava os turras, ou guerrilheiros como também lhe chamávamos, ou seja, as tropas dos movimentos de libertação. A Nocal estaria fora desse campo! Efectivamente a rapaziada na sua grande maioria só bebia Cuca, se não houvesse Nocal. Mesmo na elegância das garrafas havia diferença uma era uma bajuda elegante, com um paladar mais gostoso a outra, era mais baixa e gorda com um grande mataco ou seja um traseiro que não dava para papar, só para acariciar e se possível frio. Mesmo não sendo bem iguais, fosse na silhueta ou no paladar provocavam os mesmos danos colaterais.
Mas neste caso até provocou a todos os seus camaradas uma sensação muito incomoda, até à hora em que a informação dada pelo Comt. nos sossegou, alegrou, e mesmo honrou porque ao ser noticiada foi adquirida uma mais valia para toda a nossa rapaziada, que foi bem expressa na abordagem que era feita aos Fuzileiros, pelos nossos compatriotas. Ainda mais sensacional se tornou, porque havia informação de que um submarino Russo andaria na zona do Ambriz, e Ambrizete, para descarregar material de guerra . Pensamos que o Solá não estaria de posse de tal informação e por isso o mergulho nada teve a ver com um ataque de surpresa que estrategicamente poderia ter planeado.
...
Passe o exagero, mas seria impraticável naqueles tempos dar notícia de uma simples constipação, da filha do soldado Manel ou Jaquim que está com muitas saudades do Pai. Ou não deixar de dar relevância aos chorudos ordenados que os nossos soldados auferiam, ou do Psicólogo que não existia do psiquiatra que não se cria porque se não se estava maluco.
As famílias dos milhares de soldados que participaram na guerra das ex. Colónias, foram impressionantemente amparadas, acarinhadas, ajudadas de todas as formas e feitios, inclusive, sonegando-lhes a verdade, dos que tendo morrido apenas, tinham desaparecido. Da urna que chegava, nem sempre havia a certeza de quem eram os restos mortais. Para não falarmos das vantagens que se tinha, com aquela fantástica facilidade, que nos era facultada com aquela dádiva dos céus daqueles aerogramas, que até eram transportados de avião, para que houvesse a certeza de que as noticias chegavam fresquinhas, e de que o militar expedidor tinha fortes hipóteses de ainda estar em bom estado que a única despesa que nos dava era o cuspo com que os fechávamos e dos códigos secretos que lhes atribuíamos para que não fossem intersectados pelo inimigo como por exemplo: bate estradas, febre-amarela, burro do mato, etc.

Realmente, estou sem querer a ser injustamente contundente, porque afinal, houve coisas muito boas! Como seja o caso de em vez de seis meses eram dois anos, o transporte era de morte nunca sabíamos onde era o sul, ou o norte, eram de facto viagens de muita sorte, não só pela companhia, onde felizmente mulher não havia mas especialmente pelo excelente camarote em que se dormia.
São só alegrias e ainda bem, que já enterramos muitas tristezas, caso contrario, teríamos que criar um muro de lamentações, com condições para nele se bater com a cabeça, para que todo aquele que tem direitos não adormeça.

Corria o mês do ano de 1962 quando, com outros jovens voluntários me apresentei no Corpo de Marinheiros da Armada para colocar à prova as minhas capacidades físicas. O meu primeiro acto voluntário estava a consumar-se e já outro se seguiu voluntário para os Fuzos iriam aparecer mais oportunidades para nos voluntariármos de novo, terminada a recruta e o I.T.E “Instrução Técnica Elementar” candidatei-me ao curso de Fuzileiro Especial, concluído este com aproveitamento, estava apto a fazer parte de um Destacamento, também aqui ingressei de livre vontade e para onde quer que fosse, Guiné, Angola, ou Moçambique, era para mim naquele momento indiferente.

Não terá sido por a cada momento se ouvir na rádio Angola é nossa, de forma afirmativa, que para lá fui com todos os conhecimentos adquiridos na nossa universidade da guerra de contra guerrilha. A dureza da instrução ministrada, fez de muitos Putos uns homens adultos, ao confronta-los com realidades que os obrigaram a amadurecer rapidamente, e foi muitas vezes de forma inconsciente, que se foi em frente, olho por olho dente por dente, como diz a nossa gente, dos fracos não reza a história e nós, tivemos homens valentes.

Já desembarcamos em Angola já saciamos a malvada, alguns já ficaram sem o cabaço “os três vinténs ou a virgindade é a mesma coisa “ estamos a caminho do Zaire, um rio maravilhoso, monstruoso, grandioso, esplendoroso até. Ele foi espectador ele participou, ele balouçou e embalou, ele suportou, nele se nadou, nele se morou, nele se pescou muito peixe que se comeu, que se tinha alimentado de alguma gente que nele morreu. Ele foi palco de muitas cenas, umas de horror, algumas cómicas, sempre de forma serena e em paz porque de tudo era capaz, porque quando menos se esperava, zás. Mesmo assim, tenho saudades, das suas diabruras sem maldades. Nele bebi água, mesmo não sendo boa, nele me deliciei andando até de canoa. Compram-se hoje casas de praia, a que só chegam os homens de muito dinheiro, os Fuzileiros, foram uns privilegiados porque sem comprar, tiveram várias estadias completamente à borla naquelas moradias viradas para aquela imensidão de água corrente ferrosa e quente, que mesmo em frente de forma altaneira, dividia o Congo de Angola definindo a fronteira. Era a única alternativa para se chegar a qualquer lado, era sobre ele empoleirado, fosse embarcado, ou a nado, da Quissanga ao Tridente, que era o posto mais a nascente. Era o rio que na zona norte, sustentava navios de qualquer porte. Por ele, nos deslocávamos montados nos potentes sessenta cavalos, que era a cilindrada dos motores que equipavam os nossos botes, por ele, nos chegava a comida e a bebida, mas nunca por lá nos chegou, uma qualquer querida, para nos levantar o austral da vida. Dos vários nomes que tinham dado às suas muitas zonas, uma era apadrinhada pelo nosso maior poeta, chamava-se ponta de Camões, um local pacificado pelos muito hipopótamos que dali faziam a sua estancia de veraneio, coitados, mesmo ali, alguns se não safaram à violência gratuita do homem, sucumbiram dando satisfação a uma boas refeições para os nativos da área e apetrechando os Fuzos com uma arma de defesa pessoal oriunda da sua pele, muito grossa que depois de seca fazia uns cassetetes fabulosos, transparentes como o vidro. Uns outros habitantes não menos interessantes eram os crocodilos que nos proporcionaram algumas caçadas nocturnas, no fio da navalha muitas vezes, ao ponto de correrem com a tripulação do bote com as suas chicotadas que no caso não eram psicológicas. A sua pele tinha algum valor, e a carne, deixou na dúvida a origem de alguns pequenos-almoços. Uma das sus características engraçadas consistia no seu comportamento quando lhe fazíamos a aproximação. O barulho do motor era para eles um autentico sedativo, se houvesse um pequeno som que aparecesse do bater de um remo nos painéis era o suficiente para mergulharem e desaparecerem dos intentos dos predadores. Este Zaire que foi tumulo para muito militares, mesmo para alguns do exército, é detentor de um palmarés de episódios, em que nalguns deles participei, dos quais me arrepiei e arrepio, sempre que me lembro daquele maravilhoso e majestoso rio.


Mário Manso


Fonte: http://www.fuzileiros.tk
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