Outros olhares sobre a participação portuguesa na I Guerra MundialPara além dos muito citados governantes, generais,....e o soldado milhões, o CEP (Corpo Expedicionário Português) era constituído por gente mais ou menos anónima, que a história esqueceu ou nem sequer reconheceu, pelos que de facto arriscaram a vida, por causas muitas vezes dúbias, como sempre “carne para canhão”, instrumentos dos joguetes e ambicões duma classe dirigente insensata.
Vem isto a propósito de alguma documentação que me chegou às mãos, que mostra um lado mais particular e pessoal do que foi a participação portuguesa na I Guerra Mundial.
Tão particular e pessoal, por essa mesma documentação fazer referência a intervenientes no conflito, naturais ou muito ligados ao local onde estão as minhas raízes mais profundas,… a aldeia onde nasci, e de cujos descendentes sou particular amigo.
O personagem principal desta texto era um padre, pároco da minha freguesia no início do século passado, com uma vida pessoal no mínimo agitada, para o habitual sossego eclesiástico.
Pessoa interessada e participativa nos assuntos dos seus paroquianos, “homem de garra e orador galvanizante,…homem de acção em todo o campo social…“ .
Iniciada a participação portuguesa no conflito, ofereceu-se o pároco voluntário para exercer o seu ministério junto dos militares do CEP, onde já muitos dos seus jovens paroquianos estavam.
Seguidos os passos necessários para que se cumprisse o seu desejo, conseguidas as autorizações dos responsáveis (ft2 e ft3), seguiu o pároco para a Flandres onde integrou o Regimento de Infantaria 7.
Nessa função, rezam as “crónicas”, teve papel meritório pouco usual num capelão.
Dessa participação fica um texto publicado nos idos anos 20 do século passado, n’ “O Mensageiro”, o mais antigo semanário católico, ainda publicado nos dias de hoje.
“…
Não querendo sacrificar mais ordenanças pois era enviá-las a morte certa, o Comandante perguntou quem voluntáriamente queria ir de novo desempenhar a missão de levar a Infantaria 5 a Ordem de avanço. Olham-se os heróicos oficiais e dentre o grupo avança o alferes-capelão Manuel Caetano, que declara dever ser ele e não outro quem devia ir levar a ordem de avanço.
Conhecedor dos caminhos de todo o sector, evita os cruzamentos e as vias mais largas, que continuavam a ser batidas pela artilharia inimiga. No caminho que segue, deparam-se-lhe cenas comevedoras, como soldados que se arrastavam enquanto tinham forças, retirando-se das trincheiras, alguns moribundos, todos sangrando de feridas recebidas. Um dos feridos mais graves que se lhe depara é um oficial, que não pode pronunciar uma palavra. Um estilhaço rasgara-lhe o rosto e da ferida jorrava sangue em abundância. Não dava acordo de si. O alferes-capelão procura estancar-lhe o sangue. Retira o ferido do meio do caminho e corre a entregar a ordem que levava. Entregue esta, regressa e dirige-se para o local onde deixara inanimado o oficial, que continuava inanimado. Consegue carregá-lo às costas até um Posto de Socorros, bastante afastado onde o entrega, regressando ao Comando para dizer ter cumprido a sua missão. Voltando a percorrer o caminho, novos feridos ajuda a conduzir e conduz ao Posto de Socorros.
O oficial veio a recuperar a vida e do ferimento ficou-lhe uma cicatriz que lhe atravessava o rosto. Quando procurou saber quem o levantara e conduzira ao Posto de Socorros, apenas soube que fora um capelão. Após porfiados esforços veio a saber que o capelão que o salvara fora o ver.º Manuel Caetano.
O oficial ferido era o alferes Jaime Trancoso Leote do Rego, que, procurando o seu salvador, ao pretender agradecer-lhe, foi por este obrigado a não proferir palavra, pois se limitara a cumprir o seu dever.
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Decorreram alguns anos. O rev.º Caetano é encarregado da freguesia de Alcanena, onde a perseguição e o ódio à Igreja chegaram ao ponto de queimar a igreja paroquial. O rev.º Caetano era na vida o que fora como capelão nos campos de batalha, zeloso, trabalhador, cumpridor dos seus deveres. Os inimigos do clero e da Igreja não tinham desarmado com o incêndio da igreja e sob qualquer pretexto prenderam o rev.º Manuel Caetano. A notícia da prisão chega à Escola Prática de Cavalaria de Torres Novas, onde prestava serviço o oficial a quem o ver.º Manuel Caetano salvara a vida.
Ao ter conhecimento da prisão, um esquadrão de cavalaria, sob o comando do tenete Leote de Rego, o ferido encontrado na margem da ribeira de Calonne, vence em poucos minutos a distância que separa Torres Novas de Alcanena. Ao chegar à casa onde está preso o rev.º Caetano, o heróico oficial apeia-se, corre a abrir-lhe a porta e obriga-o a vir para a rua. O que o distinto e heróico oficial disse aos que acorreram a presenciar a chegada do esquadrão de cavalaria e a libertação do ver.º Caetano não sabemos, mas sabemos que desde essa data o ver.º Caetano era olhado e respeitado por aqueles que o tinham encarcerado.
O rev.º Manuel Caetano exerceu a sua missão na Flandres em Infantaria 7, onde se contou sempre, desde o oficial mais graduado ao mais humilde soldado, as maiores simpatias e recebeu as provas mais significativas de quanto todos o estimavam.…”
Regressado da Guerra, voltou à paróquia que o viu partir, para continuar o seu trabalho ao serviço da sua igreja.
Mais envolvido no campo social, partcipativo e ainda mais voluntarioso, quiçá consequência da sua presença nos campos de batalha na Flandres e dos malefícios da loucura humana a que assistiu, de tão participativo, envolveu-se com uma paroquiana, e fruto dessa relação deixou descendência, ainda hoje presente.
Dos militares originários da freguesia, muitos perderam a vida.
Dos militares presentes na fotografia (ft1) só um perdeu a vida nos campos de batalha da I Guerra Mundial.
ft1-
Foto de alguns intervenientes no conflito originários da freguesia. Em primeiro plano, à esquerda o oficial francês comandante da companhia da qual faziam parte. Em primeiro plano, 4ª a contar da esquerda o revº Manuel Caetano.Específicamente da aldeia de que sou natural, das cerca de duas dezenas que estiveram nos campos da Flandres nenhum perdeu a vida, o que deu lugar a uma tradição curiosa.
Dias antes das festas anuais em honra da padroeira da aldeia (N.Sra da Graça), era tradição juntarem-se os rapazes solteiros, partirem em grupo durante a noite para as matas nacionais próximas do povoado, e aí, escolhido a melhor árvore que sirva para um mastro de bandeira, normalmente um eucalipto bem esguio e alto, à revelia das autoridades que faziam a gestão da floresta, cortava-se a árvore, sendo esta transportada em ombro a maior parte do caminho (+/- 2 km) até ao local onde iria erguida.
Chegados ao largo da igreja, erguido o mastro no lugar habitual, era içada uma bandeira nacional, simbolo maior do orgulho lusitano.
Esta bandeira era guardada durante o resto do ano pelo rapaz mais ajuizado do grupo, sendo passada a outro, sempre que o guardião do estandarte nacional se casasse, ou por outra razão que o grupo achasse justa.
Esta tradição manteve-se até meados dos anos 80 do século passado, tendo eu participado em algumas surtidas nocturnas pelas matas na busca do melhor mastro.
ft2 -
Pedido de aurorização do Pároco para ir para os campos de Batalha
ft3 -
Autorização para a partida do Pároco para a FlandresPs. Toda a documentação presente neste texto foi cedida por um descendente do reverendo Manuel Caetano.