Como a IA irá perturbar os gigantes da tecnologia
Ilustração Rudall30/Getty ImagesO cineasta premiado, investidor e especialista em tecnologia explica como a inteligência artificial está a trocar as Big Tech. A começar na Google, cujo motor de busca já foi ultrapassado03 julho 2025
Charles Ferguson
sociedade civil está cada vez mais alarmada com a forma como a inteligência artificial (IA) generativa pode obliterar sectores e profissões estabelecidos, desde advogados até condutores da Uber, passando por contabilistas. Mas o que é frequentemente ignorado é que a primeira grande vítima da perturbação da IA será, sem dúvida, o próprio sector tecnológico. A IA já está a começar a canibalizar os gigantes estabelecidos e também a remodelar a profissão de engenheiro de software, com implicações importantes para a investigação, a política de concorrência e a regulamentação da segurança.
Desde a invenção de computadores modernos durante a Segunda Guerra Mundial, o progresso tecnológico permitiu-nos tornar os computadores cada vez mais cómodos para os seres humanos normais. Mas todos esses sistemas continuaram a basear-se em formas rígidas e altamente estruturadas de programação e utilização dos computadores. Isto aplica-se até mesmo a muitas aplicações de consumo, ou seja, pense na forma como procuramos informação, preenchemos formulários, navegamos em ecrãs, criamos folhas de cálculo e especificamos a formatação de documentos.
Mas com a chegada da IA, isso está a começar a mudar. A vítima mais óbvia da perturbação causada pela IA no sector da tecnologia é a empresa Google, cujas receitas derivam principalmente dos anúncios inseridos nos resultados da pesquisa. A utilização da pesquisa tradicional no motor de busca Google tornou-se um processo complicado de seleção entre demasiados links e anúncios. Mas com o ChatGPT da OpenAI, o Claude da Anthropic ou o Perplexity, basta pedir a informação que se pretende e obtê-la. Ainda têm falhas, mas já são muito superiores ao modelo de procura do Google. A sua utilização está a crescer cerca de 10% por mês e, este ano, só o ChatGPT deverá ultrapassar os 10 mil milhões de dólares em receitas. A Google lançou tardiamente o AI Mode, mas é difícil perceber como é que a empresa pode dar resposta de forma eficaz sem se destruir a si própria. A direção da Google está claramente consciente deste facto e completamente aterrorizada — como deveria estar.
Esta nova geração de disrupções, com a IA a tornar grande parte do atual sector tecnológico obsoleto, poderá ocorrer de forma mais rápida e impactante do que as anterioresAlgo muito semelhante parece aplicar-se a uma grande parte do sector tecnológico. Os gigantes atuais da indústria — como a Microsoft, Apple, Salesforce, SAP, Nvidia, Amazon, Intel e Dell — foram eles próprios construídos com base em tecnologias que prejudicaram os gigantes anteriores, em particular a IBM e os seus mainframes. Mas todas essas tecnologias, outrora revolucionárias, já têm várias décadas. A IA pode muito bem substituí-las e já está a abrir espaço para novos disruptores.
Veja-se o exemplo das chamadas aplicações de produtividade, como os processadores de texto e as folhas de cálculo. A Microsoft e outras empresas estão a adicionar ‘copilotos’ de IA aos seus produtos. Mas todos esses produtos carregam o peso da sua história. Não podem mudar muito, porque têm de manter a compatibilidade com todos os documentos e aplicações existentes. O mesmo acontece com muitas outras aplicações tradicionais que tratam de documentos, correio eletrónico, calendários, recuperação de dados e gráficos de apresentação.
A disrupção dos disruptoresA título experimental, antes de escrever este artigo, pedi ao Perplexity que o escrevesse por mim, com base num parágrafo de instruções. Fez um trabalho bastante decente, pelo menos como primeiro rascunho, e eu poderia tê-lo melhorado para o tornar algo utilizável. Não o fiz; mas, independentemente disso, é uma brincadeira de crianças. Em breve, até esse processo se tornará mais fácil: com instruções verbais, não haverá necessidade de escrever nada e poderemos fazer muito mais do que o Word ou os seus ‘irmãos’ convencionais permitem.
E isto é apenas o início. Suponhamos que queríamos encontrar todos os CEO de startups (empresas jovens e inovadoras em fase de arranque) de IA na área da baía de São Francisco, cujas receitas da empresa fossem inferiores a 10 milhões de dólares, escrever a cada um deles um e-mail personalizado a pedir emprego, anexar o nosso CV em todas as mensagens e seguir automaticamente as respostas. A Microsoft vai, sem dúvida, tentar acrescentar essa capacidade ao MS Office. Mas será confuso e complicado. Não seria melhor utilizar algo concebido de raiz com a IA em mente, um produto que fizesse tudo isso por nós quando o pedíssemos? Sim, seria, e várias startups de IA —como a Clay e a Paradigm — já estão a desafiar a Microsoft precisamente dessa forma. Do mesmo modo, a FuseAI está a desafiar a Salesforce, várias outras startups estão a desafiar o LinkedIn, e assim por diante.
Até os engenheiros de software da Google, um grupo de elite, estão preocupados com a possibilidade de perderem os seus empregosPensemos agora os nossos dispositivos pessoais. Os telemóveis atuais — todos eles, desde os iPhones até aos Samsung Galaxy, Google Pixels, Huawei e Xiaomi — utilizam microprocessadores, sistemas operativos e interfaces de utilizador cujas arquiteturas têm décadas, nenhuma delas foi desenhada para a era da IA. Mas várias startups (como a Etched) estão a desenvolver novos processadores de IA. Dentro de cinco anos, seremos certamente capazes de executar bons modelos de IA diretamente no telemóvel, uma evolução que poderá dar origem a sistemas operativos e aplicações radicalmente novos.
A mudança já está em curso. No dia 21 de maio, a OpenAI anunciou a compra da startup io, de Jony Ive, por 6,5 mil milhões de dólares, para desenvolver novos dispositivos móveis com foco na IA, com o objetivo explícito de destronar a Apple. Tenho algumas dúvidas sobre este projeto em particular, mas a disrupção irá certamente ocorrer. Da mesma forma, não há dúvida de que surgirão concorrentes baseados em IA para os computadores de secretária e portáteis, tanto os Mac como os “Wintel”.
As compras online — em particular na Amazon — são outra área que está prestes a sofrer alterações profundas. O poder de mercado da Amazon assenta em dois pilares — os seus sistemas de logística imbatíveis (armazéns, centros de distribuição, camiões de entrega) e um software que permite pesquisar, avaliar e comprar quase tudo. Mas a interface da Amazon é complexa, de uma forma bastante semelhante à do Google Search. E se pudesse, simplesmente, pedir à sua IA para pesquisar na internet, encontrar a loja mais próxima que tiver o produto X, ou o melhor produto do mundo para fazer Y, e depois recebê-lo? Num mundo assim, as vantagens da Amazon desapareceriam rapidamente. Ainda não chegámos a esse ponto, mas muitas pessoas inteligentes estão a trabalhar arduamente para o tornar realidade. A OpenAI já lançou um produto e a Perplexity fez uma parceria com a Shopify para permitir que as pesquisas da Perplexity encontrem e mostrem produtos de lojas online criadas com a Shopify.
A minha impressão é que esta nova geração de disrupções, com a IA a tornar grande parte do atual sector tecnológico obsoleto, poderá ocorrer de forma mais rápida e impactante do que as anteriores, incluindo as transições dos mainframes para os PC, dos telefones fixos para os dispositivos móveis ou da televisão por cabo para os serviços de streaming. A tecnologia de IA está a melhorar a um ritmo alucinante — e é na área da automatização do desenvolvimento de software que essa evolução é mais rápida. O ritmo a que a IA está a transformar a engenharia de software é quase surreal.
Graças a ferramentas de IA como o Cursor, o Windsurf e o Claude Opus 4, o ritmo de desenvolvimento de software em empresas de IA de vanguarda acelerou de forma acentuada; vi e ouvi estimativas que vão desde uma melhoria de 25% até à duplicação da produtividade do software só no último ano. No meu próprio investimento em IA, encontro atualmente, por rotina, startups com apenas alguns funcionários que desenvolveram todo o seu produto em poucos meses — e, por vezes, em poucas semanas. Um tema de conversa divertido mas sério no sector é sobre quando é que veremos a primeira empresa unicórnio fundada por uma só pessoa. Talvez não tenhamos de esperar muito tempo.
Muitas pessoas ligadas à IA acreditam que os engenheiros de software podem desaparecer completamente. Penso que não, mas a profissão vai mudar drasticamente e muitos engenheiros de software mais antigos podem, de facto, ver as suas competências tornarem-se obsoletas. Até os engenheiros de software da Google, um grupo de elite, estão preocupados com a possibilidade de perderem os seus empregos, sobretudo à medida que a disrupção provocada pela IA na pesquisa online começa a afetar as receitas da Google.
A meia-vida dos monopóliosPara muitos observadores, a humilhação dos gigantes da indústria às mãos de um sector de startups de IA extremamente acelerado não poderia chegar tão cedo. Afinal de contas, a vulnerabilidade iminente dessas empresas surge após muitos anos de lucros astronómicos, obtidos através de monopólios, oligopólios confortáveis e “jardins murados”. Vários desses gigantes começaram claramente a explorar os seus utilizadores semicativos, degradando a qualidade dos produtos para aumentar os lucros, um fenómeno que o escritor Cory Doctorow designou por forma vívida como “enshittificação”. (A Google e a Apple são frequentemente citadas.) Ao mesmo tempo que essas empresas enfrentam ameaças potencialmente fatais, também enfrentam processos antitrust e queixas crescentes de fornecedores, programadores de aplicações e consumidores.
Ambos os fenómenos — a ameaça de disrupção e o poder de mercado consolidado — são muito reais. De um modo geral, esta situação não é nova. A história do sector tecnológico é feita de monopólios sucessivos, que a determinada altura acabam por ser eliminados por revoluções tecnológicas, as quais geram novos monopólios. As ações regulamentares ou antimonopólio, por vezes, ajudaram a libertar a inovação — a abertura das telecomunicações de longa distância à concorrência pela Comissão Federal das Comunicações nos anos 70, a divisão da AT&T nos anos 80, o processo antitrust contra a Microsoft nos anos 90 e a prevenção de várias tentativas de aquisição.
Um tema de conversa divertido mas sério é sobre quando veremos o primeiro unicórnio fundada por uma só pessoa. Talvez não tenhamos de esperar muito tempoMas os sistemas antimonopólio e reguladores, nunca céleres e por vezes insensatos, têm sido progressivamente enfraquecidos nas últimas décadas por uma combinação de agravamento da burocracia, obsolescência e corrupção crescente. Tanto na Europa como nos EUA são necessários muitos anos, e por vezes décadas, para resolver os processos de concorrência; empresas como a Microsoft, a Google e a Apple contratam os mais proeminentes especialistas em direito e economia da concorrência, para contestarem e atrasarem tudo. Os réus empresariais nestes casos gastam frequentemente cem vezes mais do que o próprio Estado.
Os incumbentes também beneficiam do facto de as leis antimonopólio e os precedentes legais, alguns deles com mais de um século, serem lamentavelmente inadequados às realidades da moderna tecnologia da informação. Por exemplo, a Google evitou qualquer escrutínio regulador na sua aquisição da Character.AI porque, tecnicamente, não adquiriu a empresa. Simplesmente adquiriu tudo o que era importante na Character.AI — os seus melhores talentos e a sua tecnologia — pagando aos seus investidores e empregados 3 mil milhões de dólares. A Microsoft fez a mesma coisa com outra grande startup de IA, a Inflection AI, pagando 650 milhões de dólares, e a Amazon repetiu o feito, não adquirindo a Adept por pelo menos 439 milhões de dólares.
Há quem defenda que, dada a facilidade com que os sistemas reguladores podem aparentemente ser subvertidos, e tendo em conta que as revoluções tecnológicas acabam por destronar os incumbentes, não deveríamos sequer preocupar-nos com a política antitrust ou reguladora. Talvez fosse mais eficiente, e menos sujeita a influências corruptas, se simplesmente fizéssemos tudo o que fosse possível para apoiar as startups, acelerar a investigação e fomentar a criação de novos concorrentes.
Infelizmente, receio que isso não seja suficiente. Há alturas em que é realmente importante desmantelar uma empresa ou impedir que ela adquira todos os seus potenciais concorrentes. E há sérios riscos associados ao desenvolvimento de uma indústria gigantesca de IA sem uma regulamentação adequada. Com a IA, novas e poderosas tecnologias estão a ser controladas por fundadores que, em alguns casos, são ainda literalmente crianças e, por vezes, comportam-se como tal. Por isso, embora a legislação e os procedimentos antitrust necessitem urgentemente de modernização e reforma, eu não os eliminaria.
Isto levanta a questão de saber o que poderia ser feito para apoiar a inovação e a concorrência na ausência de uma reforma das regras de concorrência séria (e atualmente muito improvável). O ecossistema de startups da Europa está em frangalhos e a disrupção provocada pela IA coloca em grave risco a saúde económica e a segurança militar da Europa. Nos EUA, pelo contrário, o sistema de startups é forte, mas tanto a investigação académica como a governamental estão em perigo. Uma medida política extremamente valiosa seria um aumento substancial do financiamento do ensino das ciências informáticas, da investigação académica e da I&D governamental nos EUA, garantindo um fluxo contínuo de novas ideias e de fundadores não controlados pelos gigantes da tecnologia.
Outra possibilidade seria reforçar o controlo regulamentar das aquisições, incluindo as “aquisições sem aquisição”. A maioria dos especialistas em tecnologia opõe-se a essas restrições, argumentando que as aquisições são pró-competitivas e até necessárias. O argumento aqui é que, uma vez que as ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla em inglês) se tornaram muito raras, as aquisições são vistas como a única forma de ‘saída’ financeira para fundadores e investidores de startups.
Sou ambivalente a este respeito e não gosto certamente da ideia de desistir da política de concorrência. No entanto, reconheço que, neste momento, Silicon Valley está a fazer um trabalho muito melhor para limitar o poder da Google do que o Departamento de Justiça ou a UE alguma vez fizeram.
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