Anglo-lusos eram melhores atiradores Expresso
10:34 Quinta-feira, 15 de Maio de 2008
José Ventura
Se as armas e equipamentos eram semelhantes, por que razão os exércitos que defenderam Portugal entre 1808 e 1814 acabaram por sair vencedores? Olhando para os armamentos, tanto ligeiros como pesados, utilizados pelos dois exércitos na Guerra Peninsular não se descortinam diferenças de maior. Então, como se explica que armas e equipamentos semelhantes se revelassem mais eficazes nas mãos dos britânicos e seus aliados portugueses? A resposta foi dada por Sanches Baena, investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa, na 7ª sessão do Curso Livre de História Militar. É tudo uma questão de treino, disciplina de fogo e pontaria.
Os mosquetes de pederneira, usados desde o séc. XVIII até à Guerra Civil norte-americana (1861-65), eram pouco precisos, não permitiam pontaria a mais de 70 metros e, sobretudo, o seu carregamento era lento e complicado. Entre deitar pólvora na caçoleta, armar o cão, introduzir o projéctil e a pólvora no cano e calcar com a vareta, passava-se quase um minuto até o soldado poder voltar a disparar. Isto se na pólvora não estivesse húmida, a pederneira desse faísca e ... o inimigo não se tivesse, entretanto, aproximado. Fora as vezes em que, com os nervos, o atirador carregava duas e três vezes seguidas o mosquete ou se esquecia de tirar a vareta do cano, o que originava, quase sempre, explosões fatais aquando do disparo. O que também acontecia nas situações de combate próximo, quando alguém apanhava uma espingarda do chão, deixada por amigo ou inimigo, e, por via das dúvidas a carregava...
Nestas condições, mesmo um soldado veterano, dificilmente conseguiria disparar mais de dois tiros por minuto, no máximo três. Ao contrário dos outros exércitos da época, os britânicos treinavam com munição real e faziam-no vezes sem conta, até todos os movimentos do atirador estarem automatizados. Tudo isto obedecendo a vozes de comando e disparando de forma coordenada com os seus camaradas. Desta forma os ingleses combatiam sempre em duas linhas de atiradores que disparavam por companhias e meias companhias e por salvas. Quando uns acabavam de disparar, já os outros tinham carregado e estavam prontos a fazer fogo e assim sucessivamente. Como explicou Sanches Baena, especialista em armamento, "o fogo era contínuo, sem intervalos e extremamente devastador".
Foi esta superior disciplina de fogo que se revelou fatal para as tropas de Napoleão em momentos decisivos da Guerra Peninsular, como nas Batalhas da Roliça e Vimeiro (Agosto de 1808) ou do Buçaco (Setembro de 1810). Mas a verdade é que no caos em que se convertia o campo de batalha de princípios do séc. XIX, com o fumo da pólvora negra a tapar a visibilidade, os canhões a troar e as balas a caírem por todo o lado, "o soldado de infantaria, muitas vezes não tinha possibilidade de disparar mais que um tiro. O confronto com o inimigo acaba por ser à baioneta ou à coronhada". O conferencista citou o relatório de um médico militar após a batalha do Buçaco que referia ter tratado 12 feridos por bala, 28 por golpes de baioneta... e 220 com traumatismos resultantes de coronhadas. "Bem dizia Napoleão que a verdadeira arma do soldado de infantaria era a baioneta..."
A passagem de algumas cenas do filme "O Patriota" ilustrou as amargas lições aprendidas pelos britânicos na guerra de independência norte-americana. Em vez de travarem batalhas em campo aberto, envolvendo formações geométricas, tiveram de enfrentar colonos motivados a bater-se por uma terra e um ideal, conhecedores do terreno e guerrilheiros exímios. E usando, em vez dos mosquetes de grande calibre, carabinas, derivadas das armas de caça, de cano estriado e devastadora precisão. Isto levou a que os exércitos que Wellington comandou em Portugal tivessem, a apoiar as grandes formações de linha equipadas com mosquetes, tropas ligeiras armadas com carabinas de cano estriado. A maior lentidão do carregamento era compensada pela precisão do tiro, dirigido contra alvos selectivos no dispositivo inimigo: oficiais, artilheiros, guardas-avançadas, etc. A carabina Baker era a arma habitual da infantaria ligeira britânica, da qual vieram, para Portugal, entre 1808 e 1814, 2.300 exemplares para equipar os regimentos portugueses congéneres, os Caçadores. Foi uma arma destas que atingiu o general francês Junot em 1811, perto de Rio Maior, causando-lhe um ferimento da cabeça que o viria a fazer perder a razão.
No meio de tudo isto, os portugueses fizeram valer a sua proverbial capacidade de improviso, adaptando o armamento recebido dos britânicos. As espadas de cavalaria, modelo 1798, perderam uma das guardas para não estorvarem o manejo e passaram a ter a ponta afiada em bico, para não resvalarem em pontos mais duros do equipamento do adversário (medalhas, botões, etc). E, como os atiradores portugueses eram, por regra, mais baixos que os seus camaradas britânicos, tinham problemas a disparar eficazmente os mosquetes Brown Bess que eram quase da sua altura. Era uma arma desequilibrada que, ao fim de algum tempo, devido ao cansaço causado nos braços, tendia a ficar apontada par baixo. O esforço de correcção, levava os soldados a fazer pontarias demasiado altas, por sua vez "corrigidas pelos oficiais que, punham as espadas sobre os canos para não os deixar subir demais".