Mali. Uma primeira reflexão
Alexandre Reis Rodrigues
Não fosse a França decidir intervir militarmente, sem mais hesitações, no Mali, provavelmente, Bamako, a capital, a estas horas, já estaria sob o controlo dos militantes jihadistas dos três grupos que controlavam o norte do País, uma área cuja dimensão equivale à da França e da Espanha juntas. Quatro dias antes, a 7 de janeiro, a cidade de Konna tinha caído nas suas mãos, na sequência de uma ofensiva para sul, aparentemente para ganhar profundidade territorial e começar a ameaçar diretamente a capital. Tratou-se, obviamente, de um muito sério agravamento da situação e, em especial, da segurança da capital. Konna tem um aeroporto militar nas proximidades e fica perto de Markala, onde a respetiva ponte sobre o rio Níger, seria o obstáculo restante para o assalto final à capital.
Com um Exército incapaz de se opor à continuação do avanço, por impreparação, falta de coesão e vontade de lutar, não restou ao Presidente do Mali, Dioncounde
Traore, senão pedir ajuda à França. Felizmente que havia da parte desta suficiente capacidade de atuar rapidamente para pôr a capital a salvo e parar qualquer nova
tentativa de progressão da insurreição. Felizmente, houve também da parte dos EUA capacidade de disponibilizarem transporte aéreo estratégico com alguns voos de C-17 para transporte de pessoal e material, não obstante não se ir verificar o seu envolvimento direto no conflito, na linha da estratégia de Defesa aprovada pelo Presidente Barack Obama no início de 2010. Cobriram, pelo menos, uma lacuna que os europeus ainda não conseguiram resolver e, que nas atuais circunstâncias era a mais premente.
A resposta insólita veio do lado da União Europeia, com o anúncio - já estava em curso a intervenção francesa – de convocação de uma “conferência de dadores”, para obter ajuda financeira (embora não esteja à vista quem a possa localmente utilizar com um mínimo de seriedade), e de abertura de uma delegação para o estabelecimento de uma missão de treino, que se espera ficar instalada em meados de fevereiro, mas que não será envolvida em operações de combate. Esta missão estava autorizada há já algum tempo pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, prevendo o envio de 250 efetivos militares para treino do Exército do Mali, mas ficou suspensa, em março de 2012, sem se ter sequer iniciado, devido à prisão do Primeiro-ministro do Mali, na sequência de um golpe militar levado a cabo por jovens oficiais, liderados pelo capitão Amadou Sanogo.
Na altura em que foi previsto, este apoio da União Europeia fazia bom sentido; depois de passada a crise será também bem-vindo. Neste momento, não é propriamente o que o Presidente do Mali precisa e muito menos o que seria expectável quando estão em causa muitos interesses europeus e não se espera que a NATO se interesse pelo assunto, não estando presentes os EUA. Foi precisamente para este tipo de circunstâncias que foi decidido desenvolver a Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) e, em 2007, se avançou com a iniciativa de criar uma capacidade de resposta militar a situações de crise. Os apoios europeus que a França tem recebido (ou lhe foram oferecidos), da parte do Reino Unido, Bélgica, Dinamarca e Itália, surgiram numa base bilateral que não substitui o papel que caberia à União Europeia desempenhar.
A intervenção militar em curso encontrava-se aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas desde 20 de dezembro de 2012 (Resolução 20854) mas apenas prevista para ser concretizada em setembro/outubro deste ano, conforme anunciado pelo responsável pelas operações de paz das Nações Unidas, Hervé Ladsous (UN undersecretary for peacekeeping operations), no final de 2012. Não se esperava que fosse possível organizar antes a constituição da força africana em que deveria basear-se a resposta a dar. Perante este quadro, os líderes da insurreição fizeram o que era óbvio. Aproveitar a oportunidade de se anteciparem à prevista intervenção, ganhando mais algum espaço e consolidando posições. Estiveram perto de o conseguir; foram obrigados a recuar pela intervenção francesa mas a ameaça que representam está longe de erradicada, como é fácil de calcular.
Como poderá a situação evoluir no futuro é a questão com que se debate a França. Em declarações, mostra ter esperanças em que a colaboração africana vai avançar
com colaborações já previstas da Nigéria, do Chade e do Níger, entre outras. É no que Paris tenta confiar quando anuncia que a sua presença militar na região é para se manter apenas por algumas semanas e não meses, muito menos anos. Foi também sob este pressuposto que os EUA iniciaram as intervenções no Iraque e Afeganistão mas que acabaram por ter o desfecho que todos conhecemos. Veremos se vai ser como anunciado mas as perspetivas, como é evidente, não permitem otimismos, não obstante a recuperação das zonas sob controlo dos rebeldes esteja a progredir muito bem. Segundo as notícias de hoje, os três principais centros populacionais da região norte (Timbuktu, Gao e Kidal) já deixaram de estar nas mãos dos islamitas, num caso pelo menos, com a ajuda dos tuaregues.
O que se espera é que a insurreição recuse qualquer confronto direto e vá passando, conforme necessário, à luta de guerrilha. Em caso extremo, os seus militantes procurarão “santuários” nas imediações que lhes sejam mais familiares, enquanto não puderem regressar. Esta possibilidade vai levar os vizinhos a colocar como primeira prioridade impedir infiltrações e tentar melhorar a segurança interna, o que, por si só, já vai representar um grande esforço militar, difícil de conciliar com o reforço de que o Mali precisa enquanto não tiver as suas Forças Armadas à altura da situação.
A Argélia, que encarou com reservas a intervenção francesa, precisamente por receio de “contaminação interna” com a infiltração de militantes em fuga, sentiu o
primeiro impacto, seis dias depois da chegada das tropas francesas, quando um conhecido terrorista argelino identificado como tendo ligações com a al Qaeda, Mokhtar Belomokhtar, lançou um novo grupo terrorista, criado em dezembro passado (“Those who sign in blood”) num ataque às instalações argelinas de produção de gás em Tigantourine. O seu propósito era fazer reféns a usar em subsequentes negociações sobre a presença militar estrangeira no Mali e na obtenção de resgates, uma das suas fontes de financiamento. O Exército argelino conseguiu pôr termo à situação, recuperando o controlo das instalações mas com o preço elevado: 37 reféns foram mortos, não se sabe exatamente se às mãos dos terroristas, se em resultado direto da ação militar, por insuficientes medidas para evitar danos colaterais.
O que se perspetiva é mais uma complexa situação de instabilidade e de ameaça a interesses importantes europeus que não se vai resolver brevemente. Para já, evitou-se o problema de curto prazo. Se a insurreição tivesse conseguido chegar à capital e tomar o poder, o revés seria grande para a já precária situação de segurança no Sahel e para a defesa dos interesses europeus, pelo previsível alargamento da sua influência a países vizinhos. Como ficou comprovado pelo ataque de 16 de janeiro, um dos primeiros alvos seria a Argélia, onde uma combinação de vários fatores torna muito difícil a luta que o Estado vem mantendo, há duas décadas, contra o islamismo radical: fronteiras porosas, elevado número de estrangeiros a trabalhar em instalações de extração de petróleo e gás, cujo número(são mais de duzentos) e localização dispersa tornam a sua proteção simultânea impossível de garantir, não obstante os 150.000 efetivos do Exército argelino. Ainda ontem, três guardas, a quem competia vigiar um gasoduto a cerca de 120 quilómetros a sudeste da Argel, foram mortos por um grupo terrorista que visava fazer explodir a conduta. Possivelmente relacionado com este incidente e, sobretudo, com o receio de novos raptos, 250 trabalhadores estrangeiros abandonaram a exploração de gás em que trabalhavam.
A Argélia tem a segunda maior reserva de produtos energéticos, logo a seguir à Nigéria, e o dobro da que tem a Noruega. Esta está a assegurar, de momento, 19% do consumo europeu mas esta posição alterar-se-á em breve com o declínio de produção que se espera a partir de 2015. Perante a reduzida confiança que continua a merecer a Rússia, malgrado os esforço que Moscovo tem feito em dar garantias, a necessidade de diversificar vai levar certamente a uma maior aposta nos recursos petrolíferos da Argélia, que já se posiciona como o terceiro maior exportador para a Europa.
O Níger e a Mauritânia seriam também alvos prováveis, como evidencia o mapa ao lado que mostra a área de influência de grupos islamitas radicais na África do Norte
e Ocidental, alguns ligados diretamente à al Queda (Al Qaeda in the Islamic Maghreb – AQIM). Estes dois países têm sido alvos de alguns ataques pontuais da al Qaeda,10 ataques que certamente se intensificariam no quadro atrás previsto. O Níger tem uma importância destacada pelas suas reservas de urânio, de que a França depende para o reabastecimento das suas centrais nucleares.
Como se poderá combater a intranquilidade em que vive o Mali e, em geral, a região do Sahel e que prioridade e esforço lhe deve atribuir a Europa é uma questão que não pode deixar de interessar e envolver os europeus mas é preciso, como primeiro passo, tentar compreendê-la.
Existe a tentação - que se compreende - de comparar o Mali com o Afeganistão. A administração Obama chegou a comparar o norte do Mali com a situação do Afeganistão na década de noventa, antes do derrube do regime talibã. São ambos Estados falhados, na aceção de que não controlam a totalidade do território e não conseguem assegurar o normal funcionamento das suas instituições, algumas das quais são incipientes. No entanto, fora este ponto comum, existem diferenças importantes. O Afeganistão já foi um santuário da al Qaeda, mas, entretanto, deixou de ser graças à intervenção externa. O Mali está sob o risco de vir a ser um próximo santuário, se não tiver a assistência de que precisa. O Afeganistão esteve exclusivamente refém da al Qaeda e da sua agenda global. O Mali está refém de duas componentes. Uma de natureza ideológica, ligada à al Qaeda e com uma agenda política com objetivos islamitas de longo prazo, e uma outra associada à criminalidade transnacional organizada e a funcionar mais em termos de oportunidades do que objetivos. Esta última será, aliás, a que tem, presentemente, maior peso. Mokhtar Belomokhtar - também conhecido por “senhor Marlboro” pelo seu envolvimento no comércio ilegal de tabaco, ligações ao tráfego de drogas, obtenção de resgates para libertação de reféns, etc. – é uma das figuras que melhor personaliza a segunda componente.
Estamos, portanto, perante um problema regional que se constitui como fonte direta de duas importantes vertentes de risco para os europeus: instabilidade em zonas de que vários países têm dependência energética e agravamento de algumas das ameaças não convencionais que hoje dominam grande parte do espetro de segurança europeu. Estou a referir-me ao tráfico de drogas, proveniente da América do Sul e que faz da zona um centro de trânsito para a entrada na Europa, e o crime transnacional organizado que frequentemente lhe está associado.
O que será necessário fazer para responder a esta situação parece transcender o que a França pode acionar no âmbito da defesa direta dos seus interesses mais
imediatos. Também não parece poder ficar sob a exclusiva responsabilidade dos africanos, segundo o princípio, de que os problemas de África são para os africanos resolver, princípio que gostam de invocar mas a que têm frequentemente faltado com argumentos para os honrar. Recorda-se que a situação no Mali tem estado sob agravamento continuado desde março de 2012, mas apesar disso, a intervenção africana, concebida para ser concretizada pela ECOWAS, só estava prevista, como
se disse atrás, para o Outono deste ano.
A operação que está presentemente em curso, precisa de um apoio militar externo que vai além, em vários aspetos, do simples envio de uma missão para treino do Exército do Mali e tudo indica, por razões compreensíveis, que a França não irá, isoladamente, assegurar prolongadamente toda a ajuda necessária. Veremos se há sensibilidade e empenho para reconhecer que estão em jogo importantes interesses de segurança da Europa.
Jornal Defesa