Iates de luxo made in Portugalpor Carla Amaro. Fotografia de Reinaldo RodriguesHá trinta anos, Fernando Sena saiu de Portugal para construir barcos no mundo inteiro. Mas foi cá, em frente ao Tejo, que montou um estaleiro para desenvolver iates de luxo. Daqueles a que só os milionários podem aspirar.
A indústria naval portuguesa atravessa uma das piores crises de sempre. Por isso, não deixa de ser surpreendente que nos arredores de Lisboa, na pequena localidade de Sarilhos Pequenos, Moita, estejam a ser construídas embarcações de luxo que, se tiverem sucesso no mercado internacional, podem atrair a este estaleiro na margem sul do Tejo clientes milionários de todo o mundo. Talvez não o empresário russo Roman Abramovich, que na lista de milionários da Forbes ocupa a 53.ª posição e é dono de um dos maiores e mais caros iates de luxo do mundo; talvez não o emir do Dubai, Mohammed Bin Rashid Al Maktoum, que se faz passear numa embarcação de recreio de 162 metros; talvez não o sultão de Omã, Qaboos Al Said, que adquiriu um barco de 155 metros. Os clientes VIP que poderão chegar àquela que já foi terra de pescadores e salineiros não são os das torneiras de ouro e os das banheiras de lápis-lazuli, dos heliportos e das piscinas; são os que têm um poder de compra bem mais modesto, ainda que acima da média, mas gostam de gozar o melhor da vida rodeados do máximo conforto, requinte e sofisticação à tona da água.
O estaleiro da empresa portuguesa Trimarine Compósitos tem poucas semanas de atividade e é um velho sonho do construtor naval português Fernando Sena. A ideia começou a germinar em Inglaterra, para onde foi viver e trabalhar há trinta anos, por um «feliz acaso». Acaso ou talvez não. Quis o destino que largasse a meio o curso de medicina e abandonasse uma carreira de vendedor de medicamentos para regressar ao seu «ambiente natural», o mar. «Sou dos Açores, vivi no Faial e no Pico. Talvez por isso, por estar rodeado de água, ganhei queda para os desportos náuticos, especialmente vela, mas nunca enveredei pela competição.»
Foi graças a um amigo que sabia da sua ligação ao mar e do gosto pelos barcos que Fernando começou a questionar o rumo da sua vida profissional como delegado de informação médica. «Como nunca deixei de fazer vela, um amigo velejador pediu-me para supervisionar a construção de uma embarcação de regata que ele queria fazer nuns antigos estaleiros em Pedrouços, os famosos estaleiros Brites.» Fernando aceitou o desafio, mas antes disso ainda foi a Inglaterra, onde a tecnologia estava mais avançada, para se inteirar da dinâmica envolvida na construção naval. «Foi lá que conheci novas tecnologias, novas técnicas, novos materiais chamados compósitos, com que ainda hoje trabalho. São materiais como a fibra de carbono, colas e resinas especiais, que são usadas em aeronáutica e tornam as embarcações mais leves e resistentes.» Quando regressou a Portugal, trouxe os materiais consigo e aplicou-os no veleiro de regata do amigo.
A novidade depressa começou a despertar a curiosidade de «potenciais clientes que vinham aos estaleiros Brites para ver o que estávamos a fazer, que materiais eram aqueles que usávamos, onde os fomos buscar...» A dada altura, o interesse era tanto que começou a comprar compósitos no estrangeiro e a vendê-los em Portugal. Mas nem assim deixou de vender medicamentos: «A propaganda médica era o meu ganha-pão. Os barcos e a vela eram um hobby. Sabe, naquele tempo, quem não nascia numa família de construtores navais dificilmente se tornava um.» Ele tornou-se, depois de um longo caminho.
A paixão pela vela levava-o todos os anos, nas férias, à ilha de Wight, no Sul da Inglaterra, para participar na Cowes Week, um importante evento desportivo. E numa dessas viagens, surgiu outro desafio, de outro amigo: ficar definitivamente em Inglaterra, a trabalhar na construção naval, dando assistência técnica e formação em materiais compósitos. Afinal, capacidade e know-how era coisa que não lhe faltava. «Desde miúdo que gosto de resolver problemas técnicos, substituir umas peças por outras. Era um engenhocas.» Fernando aceitou o novo desafio. Em 1982 mudou-se para Wight. «Passei os primeiros cinco anos de malas na mão, de estaleiro em estaleiro, a treinar e a ensinar os tradicionais construtores navais ingleses a utilizar as novas técnicas e os materiais compósitos. Eles estavam habituados a trabalhar apenas a madeira. E enquanto lhes dava formação, eu próprio estava a aprender.»
Em 1995, Fernando lançou-se por conta própria. Com um sócio francês e outro italiano, criou a Trimarine Advanced Marine Projects, empresa de consultoria e gestão naval, sediada em Inglaterra e com filial em Itália. «Só tínhamos escritórios. Parávamos muito pouco por lá, porque o nosso trabalho é nos estaleiros.» Desde que fundou a empresa, construiu mais de cinquenta embarcações de regata e de luxo, em estaleiros nos Estados Unidos, Dubai, Turquia, Grécia, Brasil, Alemanha, Itália, França, Espanha. Trabalhou com várias celebridades do universo náutico, entre as quais o prestigiado arquiteto naval português Tony Castro, radicado há anos em Inglaterra, e o italiano Andrea Vallicelli, que desenhou o veleiro de cruzeiro Virtuelle, de que meio mundo já ouviu falar por ter sido decorado pelo designer de mobiliário e de interiores Philippe Starck.
O empresário não sabe quantas voltas já deu ao mundo a construir barcos, mas sabe por que razão escolheu Sarilhos Pequenos, em frente ao Tejo, para instalar o seu primeiro e único estaleiro. «É barato, está na orla do rio e permite acesso direto ao mar, o que é muito importante para o transporte de embarcações de determinadas dimensões. Além disso, é um espaço grande, com capacidade para a construção de barcos com vinte, trinta e mais metros, se aparecerem clientes a encomendar iates desse segmento.»
Dos clientes, Fernando não revela muito, ou não fossem requisitos deste negócio a «discrição e o secretismo». É por isso que não diz para quem são os dois barcos, um veleiro e outro motorizado, que estão a ser construídos em Sarilhos Pequenos. «Só lhe posso dizer que são para um cliente europeu. Nem a nacionalidade posso revelar, porque só isso seria dizer muito.»
Uma das embarcações tem 11 metros e está quase pronta. Começou a ser construída há oito meses num estaleiro nos arredores de Paris, em França, e em novembro do ano passado veio para a Moita, quando Fernando e os sócios fundaram a Trimarine Compósitos e o «pequeno» estaleiro de quatrocentos metros quadrados foi alargado para 1500 («tive de alugar o restante armazém»). A embarcação - o nome também é segredo - já foi para o mar fazer os primeiros testes de água. Falta apenas concluir um ou outro pormenor para ficar completamente pronta, dentro de duas ou três semanas. Nessa altura, navegará da Moita para Paris, onde percorrerá os salões náuticos. É um barco de meio milhão de euros.
A outra embarcação, de 12 metros, começou a ser construída de raiz aqui e estará pronta em agosto. É de volta dela, a trabalhar o casco, que estão os carpinteiros portugueses David e João Pedro, e a italiana Chiara Sorrenti, especialista em laminação de materiais compósitos. Enquanto David alisa a madeira com a lixadeira elétrica, sob o olhar atento de João, Chiara aplica a mistura de resina que acabou de preparar na chamada sala limpa. «É uma sala fechada, onde não pode entrar pó nem outros contaminantes, para não comprometer a aderência das colas e das resinas aos materiais», explica a italiana de 24 anos, sem parar um segundo o trabalho que está a realizar. Se parar, «a resina endurece e seca» nas suas mãos.
O que distingue os barcos de Fernando Sena são precisamente os materiais compósitos e o que diferencia o seu estaleiro de outros em Portugal é a mão-de-obra especializada para os trabalhar. E porque não encontrou cá profissionais à altura, foi buscá-los a vários países. «São pessoas com quem me fui cruzando e com quem trabalhei em muitos projetos. São quase todos freelancers. Hoje estão cá, daqui a uns tempos podem estar noutro estaleiro em qualquer parte do mundo. O objetivo é ir fazendo a transferência de know-how, de modo a que dentro de algum tempo possamos ter só trabalhadores portugueses.» Enquanto isso não acontece, as línguas que mais se falam nestes 1500 metros quadrados são o inglês e o italiano, apesar de haver portugueses, russos, brasileiros, italianos, franceses, ingleses. No total, são vinte profissionais, entre carpinteiros, designers de produção, engenheiros de estruturas, pintores, montadores, eletricistas, laminadores e técnicos de materiais. Chiara é uma das especialistas importadas. Está há oito meses em Portugal, e não faz ideia de quanto tempo mais vai estar em Sarilhos Pequenos: «Vou para onde me chamarem. Agora estou aqui, amanhã posso ser precisa na Alemanha.» Antes do estaleiro na Moita, esteve noutros em França, Itália e Espanha.
Menos mundo percorreu o jovem carpinteiro naval João Pedro. Com 20 anos, é o mais novo da equipa e, tal como o patrão, tem uma ligação visceral ao mar. Não podia por isso dedicar-se a uma arte que o obrigasse a estar longe da água. «Nasci no mar. Toda a minha família é de pescadores e de peixeiras. Era puto quando comecei a praticar surf e vela. Sou escuteiro marítimo desde os cinco anos.» E escuteiro marítimo que se preze tem de ter uma embarcação. «Ando a tratar disso. Comprei um barco à vela que já foi classe olímpica e estou a recuperá-lo totalmente. É pequeno, tem apenas cinco metros e meio. Mal posso esperar para o levar para o mar.»
Curiosamente, quem consegue passar bem sem um barco é justamente o patrão. Fernando já teve um, também «pequeno, de seis metros», muito diferente daqueles que constrói. «Não era uma embarcação de regata nem de recreio. Era um simples barco de pesca que comprei há muitos anos nos Estados Unidos, sem qualquer luxo. Servia para o que eu queria, que era a pesca de corrico ao largo dos Açores, nas férias.» Durante muitos anos manteve este costume, até ao dia em que o tempo se tornou cada vez mais escasso para conciliar lazer e negócio. «Tive de o vender.»
As aspirações de Fernando não passam pela posse de um iate de luxo, até porque «só faz sentido ter uma embarcação de um certo segmento se houver disponibilidade para desfrutar dela». Além disso, brinca, «um barco desses é muito caro. Sai mais barato passear nos barcos dos amigos». O que Fernando mais deseja agora é passar mais tempo em Portugal, ainda que pretenda manter a atividade nos estaleiros do mundo inteiro. Continua a regressar frequentemente a Wight, onde tem casa - os filhos nasceram no Reino Unido, um trabalha em Londres, a outra estuda em Bournemouth - mas as exigências do trabalho obrigam-no a ficar muito tempo por cá. Se conseguir começar a produzir em série os dois protótipos que está a construir, este estaleiro tem pernas para andar. No ano passado a empresa faturou dois milhões e meio de euros, para este ano o objetivo mantém-se o mesmo. Depois disso, logo se verá. Otimismo não lhe falta: «Acredito que vamos conseguir produzir sete ou oito unidades por ano.» Era a garantia de ver no mar iates de luxo com assinatura portuguesa.
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