Um grupo de portugueses mantém vivo o lema "Olivença é nossa", apesar da indiferença de quem lá vive.
Ramón Rocha: O alcaide não tem dúvidas sobre a soberania espanhola.
"Acusam-nos de sermos lunáticos, tontos, mas esquecem que o fundador do Grupo de Amigos de Olivença (GAO) era oliventino", desabafa Paulo Fernandes, futuro licenciado em gestão, de 29 anos, um dos 700 sócios do Grupo. António Marques, da direcção do GAO, mostra-se siderado com o número de portugueses que desconhecem a questão de Olivença. "Mas todos conhecem o problema de Gibraltar, que opõe espanhóis e ingleses há 300 anos", lamenta.
"Tudo isto é anedótico", contesta, por seu lado, um oliventino de gema, Gregório Torres Gallego, que, na espiral de publicações sobre o tema surgidos de um lado e do outro da fronteira, se viu forçado a estudá-lo e a editar mais uma "Historia de Olivenza".
Quem entra em Olivença através de Elvas, pela ponte nova da Ajuda - inaugurada em 2000 e construída apenas com dinheiros portugueses - não percebe que continua, segundo a posição oficial portuguesa, em terras lusas. Mesmo antes de se confrontar com a placa azul onde se lê "Espanha", logo no fim da ponte que atravessa o Guadiana, o visitante recebe as boas-vindas das operadoras espanholas de telemóveis. Chega ao centro da cidade e respira-se Espanha, apesar da proximidade da fronteira. O pessoal dos cafés e os empregados dos restaurantes, onde se servem as típicas tapas do país vizinho, as crianças que brincam nas ruas, as mulheres que trocam dois dedos de conversa a caminho de casa, os homens que se juntam na praça principal para passar o tempo - todos falam castelhano. Os toldos das lojas e o anúncio das "fiestas" apresentam-se na língua de Cervantes. E até as ruas têm nomes castelhanos. "Isto foi tudo "castelhanizado". O apelido Vieira passou a Viera, o Gonçalves a Gonzales, e por aí fora", frisa Carlos Luna, do GAO. "A mudança de toponímia foi um dos instrumentos para apagar o passado", acusa.
"Temos duas mães"
Mas uma visita pelo "casco viejo" (a zona antiga) revela uma vontade de manter viva a História. Em declarações ao EXPRESSO, o alcaide de Olivenza diz que foram gastos milhões na recuperação dos monumentos herdados dos portugueses. "Temos duas mães, duas culturas. Por isso, tanto as crianças como os universitários aprendem o português. Não renegamos o passado", diz, peremptório Ramón Rocha Maqueda, à frente dos destinos de Olivenza desde 1979. "Temos quase cem portugueses a viver e trabalhar no concelho". O alcaide anuncia o número com vaidade, depois de um telefonema para a secretária, a quem pergunta: "Além do teu marido, quantos portugueses temos aqui?"
O autarca não tem dúvidas sobre a soberania espanhola de Olivença. E, para as reforçar, anuncia: "Até ao final do ano, terminaremos as obras de recuperação na metade (espanhola) da ponte velha. Os portugueses, se quiserem, que deixem a sua parte com está, em ruínas".
"A restauração da ponte significa que foi recuperado entre os dois lados do Guadiana algo que estava rasgado", defende Gregório Torres Gallego, para quem a questão de Olivença não tem sentido - entre outros motivos, porque Portugal, desde meados do séc. XIX, nunca fez nada para reivindicar a devolução da cidade. Esta tese, que pode ser sintetizada no ditado "quem cala, consente", é também defendida na obra "La cuestión de Olivenza a la luz del derecho internacional publico", editada o ano passado, por Carlos Fernández Liesa, um catedrático de Direito Internacional. "Eles não podem restaurar a ponte porque é património nacional", frisa Carlos Luna, um descendente de bascos e de oliventinos, que sente todas as iniciativas espanholas como tentativas para apagar a presença portuguesa em Olivença. Dá-se, por isso, ao trabalho de produzir constantemente instrumentos de divulgação da cultura e história portuguesas. Isto porque, alega, as crianças da margem esquerda do Guadiana aprendem que Olivença ficou sob tutela espanhola devido ao dote de uma princesa ou em troca de Campo Maior. O próprio alcaide afirma que, depois da invasão do Alentejo, Espanha devolveu "o que não interessava" e ficou com Olivença.
Cerca de 400 oliventinos, numa população de 11 mil habitantes, já ouviram os originais de Zeca Afonso, Vitorino, António Barroso e Delfins. Tudo graças a Carlos Luna, que, pela calada da noite e quase como que numa actividade clandestina, oferece aos jovens de Olivença cassetes em português, com música ou com a história de Olivença. "As pessoas têm medo de ser vistas connosco", diz. As cassetes reproduzem também a voz de Luna, lendo textos de iniciação ao espanhol traduzidos para português.
"Muy pesados"
Mas será que o interesse pelas raízes históricas pode ir além da mera curiosidade? Afinal, os oliventinos têm, bem perto de casa, hospitais, escolas, uma universidade, comércio. Ganham salários mínimos superiores ao português e pagam a gasolina mais barata do que em Portugal.
"Achamos possível o regresso de Olivença a Portugal. Propomos uma administração conjunta de 30 a 40 anos, seguida de um referendo, e em que fique estabelecido que a população não perde regalias", defendem os Amigos de Olivença. Até lá, é provável que repitam manobras como a do Verão passado, no início da "Vuelta" em bicicleta em Olivença. Mal souberam da iniciativa, os "amigos" portugueses (ou "inimigos", como gosta de os classificar o alcaide) de Olivença, rumaram em direcção ao ponto de partida e distribuíram bandeiras portuguesas e panfletos, com frases do género: "Por que não começar a Vuelta no País Basco ou na Catalunha?" A Guardiã Civil foi chamada a intervir e a manter sob a sua alçada os "subversivos". "Son muy pesados", descreve um oliventino, quando lhe vêm à memória as "estocadas" dos Amigos de Olivença. "Chatos", em português.
O QUE DIZ A HISTÓRIA
Apesar das pretensões portuguesas sobre Olivença, a verdade é que o reino de Espanha assentou arraiais nesta vila raiana em 1801 e nunca mais saiu. Olivença tornou-se portuguesa de facto e 'de jure' em 1297, através do Tratado de Alcanizes celebrado entre D. Dinis, de Portugal, e Fernando IV, de Castela. Sob os reinados portugueses, tornou-se uma praça contra o inimigo espanhol, com a fortificação templária e a torre de 40 metros sobre o castelo. Em 1509, começa a construção da ponte sobre o Guadiana (hoje em ruínas) e mais tarde são erigidas a igreja da Madalena e a Misericórdia.
Em 1801, durante a invasão do Alentejo pelas tropas espanholas apoiadas pelos franceses, Olivença e outras vilas rendem-se. Nesse ano, Portugal vê-se obrigado a assinar um acordo com Napoleão Bonaparte e Carlos IV, de Espanha, a que se dá o nome de Tratado de Badajoz, e no qual Portugal perde para os espanhóis "a praça de Olivença, o seu território e os povos desde o Guadiana", que passa a constituir a fronteira entre os dois países. O artigo IV tem, no entanto, uma ressalva que sustenta as pretensões lusas: o acordo tornar-se-ia nulo se um dos seus pontos fosse violado. E foi. Em 1807, franceses e espanhóis invadem Portugal, obrigando a Família Real a refugiar-se no Brasil. Em 1808, no Brasil, o Príncipe Regente D. João publica um manifesto considerando sem efeito o Tratado de Badajoz. Na perspectiva portuguesa, fica claro que o famoso artigo 105º obriga os espanhóis a devolverem Olivença. Os espanhóis fazem uma leitura diferente e do dito artigo dizem que é uma declaração de intenções.
(Mónica Contreiras)
EXPRESSO, 25-03-2005