« Responder #6 em: Agosto 02, 2007, 06:53:07 pm »
Cutty Sark
Infortúnio do clipper anglo-português
«When the original fabric of the ship is lost, the touch of the craftsman is lost, history is lost. To lose the timbers and iron frame of the ship is to lose not just maritime heritage but part of our national heritage. We must save as much as we can and hopefully the fire has left us much to still conserve»1.
Como foi amplamente noticiado pela comunicação social em todo o mundo, no passado dia 21 de Maio deflagrou um incêndio a bordo da Cutty Sark, o mais famoso clipper do período áureo da navegação à vela. Só pelo facto de mais de 50% da estrutura do navio haver sido previamente retirada, no âmbito do processo de conservação em curso, compreendendo os próprios mastros e todo o aparelho, o casario do convés – onde se incluía a cabine do Comandante –, além de grande parte do respectivo tabuado, os danos não terão atingido maior monta.
Em 1998 um grupo de técnicos concluiu, após análises ao estado das madeiras e à ossada metálica da Cutty Sark, que se nada fosse feito no sentido da sua preservação, o navio poder-se-ia perder, em definitivo, num prazo de dez anos. Dado que a previsão de custos apontava para números quase proibitivos, só no princípio de 2006, ainda que de forma tímida, esta foi finalmente iniciada. No final desse ano, na sequência do protocolo assinado com o Heritage Lottery Fund, o projecto pareceu poder definitivamente avançar. Convém recordar que esta acção de conservação se encontrava orçada em 25 milhões libras (37 milhões de euros), da qual estão actualmente reunidos pouco mais de 18 milhões (27 milhões de euros), sendo que através do respectivo site (www.cuttysark.org.uk) todos os particulares são instados a contribuir com o seu donativo, ainda que modesto.
O propósito desta grandiosa reparação passa por garantir também que não seja necessária qualquer outra acção de grande envergadura nos próximos cinquenta anos, estando igualmente a ser estudada a forma de o navio poder gerar receitas com vista a constituir tanto uma base para os pequenos trabalhos permanentes relativos à sua manutenção, como permitir responder, de imediato, a futuras intervenções mais substanciais, ou seja, tornar a Cutty Sark financeiramente auto-sustentável.
De referir que o denominado Maritime Greenwich, conjunto no qual a Cutty Sark se encontra integrada, foi, em 1997, classificado como património Mundial da Humanidade pela UNESCO (http://whc.unesco.org), sendo que unicamente pela sua parte o navio acolhe, em média, cerca de 6 milhões de visitantes por ano.
Incluída na intervenção actualmente em curso, o plano contempla ainda a construção de um museu no interior da doca onde o navio se encontra.
Para tal, a Cutty Sark será elevada cerca de 3 metros em relação à posição que presentemente ocupa, ficando em grande medida apenas sustentada pelas escoras laterais.
O museu ocupará esse volume deixado vago e os visitantes poderão passear debaixo da respectiva quilha.
No sentido de o isolar dos elementos atmosféricos e permitir a entrada de luz para o interior do novo espaço museológico, a doca será coberta por uma estrutura transparente, colocada ao nível da linha de água do navio, pelo que, visto do exterior, esta simulará as águas onde o navio repousa.
Quando foi lançada à água, a expectativa de vida da Cutty Sark não ia além dos trinta anos. Não admira, pois, face à perda de competitividade provocada pelo advento dos navios-vapor, em grande medida agravada com a abertura do canal de Suez (1869), que o seu armador se tenha disposto a vendê-lo, ao fim de vinte seis anos. Como se sabe, foi compradora a sociedade portuguesa Joaquim Antunes Ferreira & Cª, que de pronto o baptizou como Ferreira, tendo o navio navegado sob bandeira portuguesa até 1922. Numa altura «em que já não pagava o frete», foi adquirido pelo Captain Wilfred Dowman, que lhe dedicou os últimos anos da sua vida e com ele despendeu boa parte dos seus próprios recursos financeiros. Significa isto que o navio navegou com pavilhão inglês entre 1869 e 1895, período ligeiramente inferior aos vinte e sete anos em que arvorou a bandeira portuguesa (1895-1922), embora, como se sabe, tenha sido durante o primeiro ciclo que se consolidou a edificação do mito2. Não se compreende, por isso, a razão pela qual os órgãos de comunicação social, nomeadamente os nacionais, que ao retratarem o infortúnio sofrido pela Cutty Sark, muito poucos tenham referido, a propósito do seu rico historial, o longo passado português deste «nosso» navio.
De referir, que antes do incêndio, ao nível do casco, a Cutty Sark contava ainda com mais de 90% da madeira original, apesar de esta se apresentar em relativo mau estado. Depois desta adversidade, calcula-se que seja necessário um reforço da ordem dos 5 a 10 milhões de libras no orçamento anteriormente previsto, e já de si muito avultado, para restaurar a Cutty Sark.
Não obstante este sério percalço, mantém-se a expectativa da Cutty Sark poder reabrir ao público em 2009, altura em que se celebram os seus 140 anos.
Em 1953, o famoso escritor australiano Alan Villiers escrevia assim: «The last of a glorious era, indeed she is, and one of the noblest of them all. Of all ships, only the Cutty Sark now survives intact as a relic of the wonderful clippers, a worthy example of the great pioneering days of Sail». Verificamos hoje, cinquenta e quarto anos volvidos sobre o seu testemunho, que em boa medida, este, inesperadamente, deixou de traduzir a realidade.
A concluir diremos, que se no longínquo dia 22 de Novembro de 1869 o mundo assistiu ao surgimento do mito, no passado 21 de Maio, parte dele ter-se-á transformado em cinzas, pelo que aos mais cépticos gostaríamos de relembrar que também delas renasceu a Fénix3, outra figura igualmente mitológica…
António Manuel Gonçalves
CTEN
am.sailing@hotmail.com
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Notas
1 Palavras de Richard Doughty, presidente executivo do Cutty Sark Trust.
2 Ver «A Lenda e o Mito – 2. Cutty Sark», Revista da Armada, nº 386, Maio de 2005.
3 A Fénix terá sido uma ave fabulosa oriunda da Etiópia, mas cuja lenda se desenvolveu no antigo Egipto, em estreita ligação com o culto do Sol. Pelo facto de ser o último exemplar da sua espécie, não podia, por conseguinte, reproduzir-se. Ao que consta, quando sentiu chegar o fim da sua existência, reuniu plantas aromáticas e incenso, com as quais construiu uma pira fúnebre, na qual se imolou pelo fogo. Das respectivas cinzas surgiu uma nova Fénix.

Registado
"Ele é invisível, livre de movimentos, de construção simples e barato. poderoso elemento de defesa, perigosíssimo para o adversário e seguro para quem dele se servir"
1º Ten Fontes Pereira de Melo