Visita oficial Marcelo, Costa e Santos Silva disfarçam “incidente político” com “país irmão”. Lula não fica para sessão do 25 de Abril
Amigos, amigos (BRIC à parte)
á uma frase de Marcelo Rebelo de Sousa que podia ser de António Costa ou de Augusto Santos Silva e que define na perfeição o entendimento partilhado pelos três órgãos de soberania portugueses perante os percalços que já complicaram a visita de Lula da Silva a Portugal e a sua presença na Assembleia da República, nas comemorações do 25 de Abril.
“Não, não me arrependi de coisa nenhuma” (em causa o convite que ele próprio dirigiu a Lula para vir a Portugal nesta altura), disse o Presidente da República quando confrontado com as bombásticas declarações do Presidente do Brasil, que de visita à China e aos Emirados Árabes Unidos atribuiu “a decisão da guerra” aos “dois países”, Ucrânia e Rússia, e considerou que a União Europeia e os EUA estão a dar “uma contribuição para a continuidade dessa guerra”.
A CÁBULA DE MARCELO: “BRASIL VOTOU CONTRA A RÚSSIA”
Estas declarações incendiaram os ânimos políticos em Lisboa e o maior partido da oposição desafiou o primeiro-ministro a demarcar-se de Lula no que à Ucrânia diz respeito, considerando as suas palavras inaceitáveis. Mas rapidamente se percebeu que, apesar dos desencontros que não escondem interesses geoestratégicos e económicos diferentes entre Portugal e o Brasil, nem o primeiro-ministro, nem o presidente do Parlamento, nem o maior partido da oposição divergem da leitura do chefe de Estado: a visita recomenda-se.
Para António Costa, a realização da cimeira Portugal-Brasil em Lisboa — que será um dos pontos altos do programa oficial, que começa este sábado e se prolonga até terça-feira — é da maior importância, sobretudo após anos de interrupção nestas cimeiras durante o consulado de Jair Bolsonaro como Presidente do Brasil. E o primeiro-ministro não retirou uma vírgula ao que sempre tem dito — que “as relações entre Portugal e o Brasil são, desde há 200 anos, uma prioridade constante da política externa portuguesa” e esta visita é “uma oportunidade extraordinária que o país tem” de “relançar tão rapidamente quanto possível essas relações”. Quanto a Marcelo Rebelo de Sousa, tratou de recordar que o Brasil foi contra a Rússia na ONU e disse esperar para ver se Lula mudou de posição.
Primeiro, avisou que esta visita “não tem nada a ver com a posição sobre a Ucrânia”; depois, recorreu a uma ‘cábula’ que tirou do bolso com as votações na ONU para lembrar que o Brasil — que faz parte do chamado grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) — “votou a favor do não reconhecimento das regiões ocupadas da Ucrânia” e “voltou a votar, ainda no mandato do Presidente Bolsonaro, que a Rússia deve ser responsabilizada pelas violações”, tendo, “já com o Presidente Lula, pedido a retirada imediata das tropas russas da Ucrânia”. Ou seja, a posição brasileira nas Nações Unidas tem sido sempre a mesma: “ao lado de Portugal, da União Europeia, dos EUA e da NATO, contra a Federação Russa”. Marcelo terminou com um aviso de separação de águas: “Se o Brasil mudar de posição em relação ao que foi a orientação de Bolsonaro e de Lula, é uma escolha dele, e Portugal não tem nada a ver com isso, mantém a sua posição, que é muito clara, e não estamos de acordo, ponto final, parágrafo.”
No 25 de Abril, o PR brasileiro foi convidado, mas não fica para a festa
Sem antecipar discursos — seja o que fará no jantar que oferece a Lula no domingo, no Palácio da Ajuda, e onde o Presidente brasileiro também discursará, seja o que tem pensado para o 25 de Abril na Assembleia da República —, o Presidente da República prometeu reiterar a posição de Portugal, alinhada com a UE, os EUA e a NATO, perante Lula e “todos os chefes de Estado que receber”.
“Cada país tem a sua política externa. Se estivermos de acordo, melhor. Eu tenho a esperança de que estejamos de acordo. Veremos, e para isso é que servem as visitas, é para saber qual é a posição”, afirmou esta semana aos jornalistas. “Se não estamos de acordo, não estamos de acordo”, rematou. Diplomaticamente, em Belém (como em S. Bento ou no MNE) a convicção é de que a necessidade de uma estratégia de reafirmação externa do Brasil pós-Bolsonaro está a empurrar Lula da Silva para posições cada vez mais desalinhadas com a Europa e os EUA e cada vez mais próximas das novas potências emergentes do ponto de vista económico, seja a China, a Rússia, a Índia ou a África do Sul (os chamados BRIC), num mundo que se sabe estar a rodar estrategicamente para oriente.
“PORTEM-SE BEM!”
Com a duplicação do foco de protesto anti-Lula — primeiro pela sua presença no 25 de Abril, depois pelas declarações que fez sobre a guerra na Ucrânia e que entretanto emendou, voltando a reconhecer um invasor (Moscovo) e um invadido —, o presidente da Assembleia da República tratou de ensaiar um guião de boas maneiras.
Augusto Santos Silva aproveitou uma entrevista ao podcast de Daniel Oliveira, “Perguntar não Ofende”, para pedir aos vários deputados, sobretudo do Chega, que ameaçam fazer protestos à passagem de Lula pelo Parlamento, para que mantenham a “urbanidade” e “cordialidade” devidas à receção a um chefe de Estado que foi convidado a visitar o nosso país.
Santos Silva reconheceu, no entanto, que esta visita se transformou em “motivo de incidente político”, coisa de que disse “ter pena”. E é indisfarçável a expectativa com que se espera para ver se a fórmula encontrada para minorar danos conseguirá evitar que a visita se transforme num fiasco.
Tudo começou, recorde-se, com o convite de Marcelo Rebelo de Sousa para que Lula da Silva, vindo a Portugal nesta altura para a cimeira bilateral e para a entrega do Prémio Camões a Chico Buarque, participasse na sessão solene comemorativa do 25 de Abril no Parlamento. Hipótese que foi assumida em público como um facto consumado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Gomes Cravinho, antes de ter sido consultada a Assembleia da República, à qual compete organizar os festejos. E logo aí o PSD torceu o nariz, os partidos à sua direita prometeram guerra e a busca de uma solução do tipo ‘do mal o menos’ acabou num figurino que prevê duas sessões contínuas no dia 25 na Assembleia.
Às 10h haverá uma primeira, de receção e boas-vindas ao Presidente do Brasil, onde estará Marcelo Rebelo de Sousa, mas onde só discursam o próprio Lula e o presidente do Parlamento, Augusto Santos Silva. E logo a seguir, pelas 11h30, haverá uma segunda sessão, já sem Lula, onde discursam o presidente do Parlamento, o Presidente da República e todos os líderes parlamentares, como é costume nos aniversários da queda do antigo regime.
Questionadas sobre a razão por que o Presidente brasileiro não fica a assistir à segunda sessão, como Marcelo tinha sonhado e para a qual foi convidado por Santos Silva, fontes oficiais limitam-se a sublinhar que “é melhor assim” para ambos os lados. Porque ninguém sabe até onde poderia ir a imaginação dos que, dentro e fora do Parlamento, estão dispostos a estragar a festa (ver texto ao lado).
MANIFESTAÇÕES NA RUA E NO PLENÁRIO
Apesar da mudança do discurso de Lula da Silva sobre a Ucrânia, ao condenar a violação da integridade territorial do país, o Chega e a Iniciativa Liberal (IL) continuam a criticar a posição do Presidente brasileiro e vão assinalar o seu descontentamento. O partido de Ventura promete a “maior manifestação de sempre” contra um chefe de Estado em Portugal, na manhã de terça-feira, em frente da Assembleia da República (AR), já os liberais só estarão representados no plenário pelo seu líder parlamentar, que usará um símbolo da Ucrânia na sessão com o Presidente brasileiro. “Estamos a ser contactados por milhares de pessoas. São portugueses, brasileiros e ucranianos”, afirma André Ventura ao Expresso. E diz que o chefe de Estado brasileiro tentou retratar-se das suas declarações, “mas sem sucesso”, mostrando a sua conivência com o regime de Putin. Também Rodrigo Saraiva, líder da bancada liberal, insiste que Lula continua no “lado errado da história” em relação à guerra na Ucrânia. “O Presidente brasileiro não se coloca do lado da liberdade, não sendo aceitável recebê-lo no Dia da Liberdade na casa da democracia”, reforça. Já o líder do PSD diz que não se pode confundir o posicionamento do Brasil sobre a Ucrânia e a relação com Portugal, mas aplaude a “aproximação” recente de Lula aos que condenam a agressão à Ucrânia. “Acho que tivemos a posição mais sensata do ponto de vista político-partidário”, diz Montenegro ao Expresso. LILIANA COELHO e HÉLDER GOMES