Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️

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Derrota convencional ou resposta nuclear?

Desde a sua fundação a NATO confiou em armas nucleares como dissuasão face ao avassalador poderio convencional soviético.  A primeira resposta nuclear foi assegurada por 32 bombardeiros B-29 Superfortress do SAC (Strategic Air Command) em bases na Inglaterra no verão de 1949.  Desde então, várias doutrinas de uso foram implementadas, descartadas, repensadas ou substituídas, desde “retaliação maciça” a “resposta flexível”, potenciadas por alterações políticas e/ou desenvolvimentos tecnológicos.  O conflito na Ucrânia voltou a despertar medos, e muitos dos mesmos dilemas quanto ao emprego de armas nucleares, por isso, poderá ser útil relembrar, de forma breve e telegráfica, alguns dos problemas e desafios envolvidos em vencer uma guerra onde o inimigo, segundo algumas opiniões, é a própria guerra...   

A superioridade material do Pacto de Varsóvia em termos de tanques, artilharia e infantaria mecanizada era inalcançável para as forças convencionais da NATO.  Não era por acaso que os russos mantinham a confiança de alcançar o rio Reno em 7 dias.


Se recuarmos aos finais dos anos 60 e princípios dos anos 70, as opções nucleares na Europa abrangiam 3 categorias essenciais;

Curto-alcance (até 200km); projécteis de artilharia de tubo, alguns tipos de foguetes e mísseis (como o Lance americano ou FROG russo) e aviação táctica (principalmente pelo lado da NATO).
Médio-alcance (até 1000km); mísseis como o poderoso SS-12 Scaleboard russo ou a aviação de interdição da NATO armada com bombas de gravidade em missões “só de ida”.
Longo-alcance (mais de 1000km - por vezes referidas como armas “Euroestratégicas”); envolviam mísseis balísticos lançados de submarinos no Mar do Norte ou Mediterrâneo até IRBMs como os SS-4 Sandal e SS-5 Skean.

Uma das primeiras questões a considerar é a custódia das armas.  No Pacto de Varsóvia as armas nucleares, armazenadas em território Russo, Polaco ou na Alemanha Oriental, eram controladas pela União Soviética.  Ponto.  Na NATO as coisas eram (e continuam a ser) um pouco mais… complicadas.  Um dos esquemas era conhecido como controlo de “chave dupla” (dual key).  Neste conceito, a propriedade das ogivas permanece sob autoridade americana mas o mecanismo de disparo, seja uma peça de artilharia, míssil ou aeronave, recai sob a nação anfitriã.  Acordos bilaterais deste tipo existiram com o Reino Unido, Alemanha Ocidental, Itália e outros.  Outro problema mais agudo envolvia o “timing” do uso dessas armas.  Se a União Soviética decidisse “aquecer” a guerra fria e soltasse, em massa, as suas forças blindadas e mecanizas nas planícies da Alemanha, a NATO iria se defender, numa primeira fase, também com meios convencionais.  Daí a presença de substanciais formações blindadas na Alemanha (desde o BAOR inglês até ao 3º Corpo de Exército Americano).  Mas se essa resposta convencional falhasse ou não fosse suficiente, armas nucleares tácticas seriam usadas para neutralizar as vanguardas Soviéticas ou atrasá-las o suficiente até que os reforços americanos pudessem ser deslocados para o teatro.

A estratégia convencional da NATO assentava na defesa e contenção das linhas durante o maior período de tempo possível enquanto aguardavam por reforços americanos.  O primeiro embate russo poderia (talvez) ser contido mas as grandes reservas da segunda linha dificilmente seriam detidas.  A questão não era “se” a NATO iria recorrer a armas nucleares mas quanto tempo demorariam a fazê-lo.


No exercício Wintex em 1983, que replicava um ataque russo deste género, a NATO foi forçada a usar armas nucleares logo no sexto dia.  Mas a natureza crítica dessa escalada – a NATO seria a primeira a recorrer ao nuclear – exige uma estrutura de comando e controlo com processos e procedimentos consultivos com as várias nações.  Além disso, as características de curto alcance destas armas tácticas exigem a sua localização avançada, relativamente perto das linhas da frente, o que adiciona mais problemas a esta já muito complexa equação.  Teoricamente, todas as nações da NATO deveriam ser consultadas quanto ao uso de armas nucleares, pelos menos, quanto ao decisivo “first strike” mas, na prática, as coisas, inevitavelmente, poderiam decorrer de forma diferente.  Vamos pensar num exemplo.  Uma divisão blindada americana, 20km a Norte de Frankfurt, está prestes a ser flanqueada por várias formações russas e pede, urgentemente, um ataque de artilharia nuclear para deter os tanques inimigos.  Esse pedido terá de seguir toda a cadeia de comando; primeiro para o Corpo de Exército correspondente e depois para o…

CENTAG (Central Army Group),
AFCENT (Allied Forces Central Europe),
SHAPE (Supreme Headquarters Allied Powers Europe) e
SACEUR (Supreme Allied Commander Europe).

Daqui o pedido seria direccionado para Comando Nacional Americano e para o Presidente, que teria de decidir, junto com os Chefes do Estado Maior e depois de (tentar) consultar o Chanceler Alemão  - afinal a explosão nuclear seria no seu “quintal”.  Toda esta operação poderia levar 24 horas, sem contar com a confusão, caos e dificuldades de comunicação próprias em tempo de guerra.  Enquanto isso, os soldados da divisão americana esperavam sentados… provavelmente num campo de prisioneiros de guerra soviético.

Este seria um dos cenários da NATO para o uso defensivo de armas nucleares.  O próximo passo seria usar armas de médio alcance para atacar as reservas, bases aéreas e centros de comando russos – seja em resposta a ataques inimigos ou pela pressão militar esmagadora.  Isto coloca a NATO na ofensiva.  Mas a questão agora seria; qual seria a resposta soviética?...

Nesta foto vemos dois oficiais, um americano e outro inglês, a armar a ogiva (de treino, claro) de um míssil táctico Lance.  O conceito de “dual key”, com efeito, um sistema electrónico e mecânico de segurança, prevenia o uso não autorizado por indivíduos “dementes ou aberrantes”, citando a documentação oficial.  Este sistema também garantia a coordenação e cooperação política e militar entre as duas nações.  Será que funcionaria na prática?

Talvez as primeiras armas nucleares a ser usadas pela NATO; projécteis como os M422 de 203mm para peças de artilharia M110.  Com um alcance entre os 15-20km, rendimento de 10-20kt, altamente manobráveis no campo de batalha e de resposta rápida, armas como estas seriam o “gatilho” psicológico para as tropas na linha da frente caso a pressão das forças russas fosse demasiado forte para suportar.  Mas a decisão para o seu uso não seria determinado por essas tropas mas sim por uma série de escalões de comando superiores.
 
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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #1 em: Abril 04, 2025, 06:04:22 pm »
Está bonito.

No entantos eu diria que  inimigo maior das nacões  são os warmongueiros  que só conseguem enxergar armas e destruição.





 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #2 em: Abril 07, 2025, 08:43:02 pm »
Resposta soviética – SS-4 Sandal e SS-5 Skean

Nesta altura a NATO elencava 3 tipos de resposta nuclear; retaliação directa, escalada deliberada ou resposta nuclear geral.  Um dos problemas destas doutrinas, por muito bem estruturadas e delineadas que sejam, é que podem ser rapidamente ultrapassadas pelas acções inesperadas do oponente.  Seria confortável que o inimigo reagisse proporcionalmente aos ataques mas o perigo da resposta ser “desproporcional” era muito real e potencialmente devastadora.  Mas vamos retomar o ponto anterior; a política de “first-use”, ou “first-strike”, da NATO.  Perante a incapacidade de conter um ataque mecanizado Soviético a NATO iria usar armas nucleares tácticas – projécteis de artilharia e mísseis Lance  - com ogivas de muito baixo rendimento, mas devastadoras para as formações blindadas Russas.  Qual seria a resposta?  A doutrina do Pacto de Varsóvia vertia o seguinte;

Citar
A guerra seria resultado do “aventureirismo” da NATO (onde já ouvimos isto?...).  A ofensiva Russa maciça por terra e ar iria empurrar esta agressão da NATO, penetrar em profundidade no território inimigo e destruir as suas forças no processo.  A velocidade do avanço seria crucial para capturar as armas nucleares tácticas e enevoar ao máximo as linhas da frente – restringindo o uso dessas mesmas armas.  Caso o inimigo (NATO) recorra a armas nucleares, de forma localizada ou a nível de teatro de operações, as restrições quando ao uso de armas nucleares será removida.  Estas armas tornam-se os meios legítimos, e mais importantes, para destruir o inimigo em batalha – aliás, qualquer hesitação iria desperdiçar a vantagem da iniciativa.

O SS-4 Sandal (acima) e SS-5 Skean (abaixo) serviam tanto como ameaças veladas ás grandes cidades europeias como símbolos do poder militar Soviético.  A destruição que uma ogiva de 2 magatoneladas provocaria numa cidade como Londres ou Berlim era (e é) inimaginável e iria resultar, certamente, numa resposta com ICBMs dos EUA ou, em menor escala, no uso de mísseis Polaris lançados de submarinos Ingleses contra cidades Russas.  Por outras palavras, a confirmação da doutrina MAD (Mutual Assured Destruction).


Portanto, o Pacto de Varsóvia iria responder imediatamente com o mesmo tipo de armas nucleares de curto e médio-alcance; artilharia, foguetes (FROG) e ataques aéreos tácticos.  Mas os Russos dispunham de outras opções, mais devastadoras e muito mais preocupantes; nomeadamente, os mísseis balísticos SS-4 Sandal (R-12 Dvina) e SS-5 Skean (R-14 Chusovaya).  Vamos analisar com algum detalhe para perceber do que realmente são capazes.  O Sandal foi um MRBM (Medium-Range Ballistic Missile) de bastante sucesso, famoso pela crise dos mísseis de Cuba, e produzido em grande escala.  Tinha um alcance de cerca de 2000km e uma ogiva de 1 a 2 megatoneladas.  Conforme vemos na simulação no mapa, este alcance permitia-lhe cobrir praticamente toda a Europa Ocidental (lançado de bases na Letónia ou Lituânia, por exemplo).


Mas convém realçar outras duas características; primeiro, era um míssil que usava combustível liquido, o que significa que poderia demorar entre 30 minutos a 3 horas para ficar pronto a ser lançado – dependendo do nível de preparação.  Isto é relevante porque torna o Sandal um míssil de retaliação (ou “second strike”) e não uma arma de resposta rápida.  Outro aspecto importante é o fraco CEP (Circular Error Probable); por volta de 2-3km, útil apenas para atacar alvos de “countervalue”. 
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #3 em: Abril 09, 2025, 01:47:11 pm »
Uma pequena tangente para explicar a diferença entre “counterforce” e “countervalue”.  O primeiro envolve o ataque a alvos directamente relacionados com as forças nucleares inimigas; silos de mísseis balísticos, bases aéreas de bombardeiros estratégicos, portos de mar (SSBN), postos de comando nacional, etc, enquanto os alvos de “countervalue” não são militares mas preciosos, e também estratégicos, para o adversário (grandes centros populacionais e estruturas civis industriais).  Mas o que os diferencia em termos operacionais?  Essencialmente, a precisão dos mísseis.  Alvos de “counterforce” são, geralmente, pequenos e muito bem protegidos – silos reforçados com vários metros de betão ou centros de comando subterrâneos – que exigem ogivas de grande potência e/ou precisão.  A letalidade de um míssil é uma função do rendimento da ogiva, composição do solo, integridade estrutural do alvo e da precisão da ogiva. 


Destes, a precisão é o mais importante.  O diagrama acima ajuda a entender; para garantir a destruição (com 90% de probabilidade) de um silo construído para resistir a 1000psi, um míssil com uma ogiva de 10 megatoneladas tem de acertar a, no máximo, 550m de distância.  Se a precisão por melhorada em 50% (para 275m), uma megatonelada será suficiente. 

Assim sendo, o Sandal, com um CEP de 2-3km, não era capaz de ser usado contra alvos militares reforçados.  Era, para citar um general Inglês, um “city-killer”, uma arma útil apenas para eliminar grandes cidades.  Quanto ao SS-5 Skean, era uma evolução directa do Sandal mas com o dobro do peso, cerca de 80t.  O precisão era um pouco melhor ao contrário do alcance, que quase dobrou, para 3700km – alargando a ameaça até á Gronelândia, Norte de África e Médio Oriente.  Com este aumento de alcance o Skean entrava na classificação de IRBM (Intermediate-Range Ballistic Missile).

Estas armas mantinham toda a população da Europa refém e poderiam fazer a NATO pensar duas vezes antes de usar qualquer tipo de arma nuclear.  São estes os ténues equilíbrios das doutrinas nucleares, das respostas e das inevitáveis, e imprevisíveis, contra-respostas.  Estes equilíbrios, reais ou imaginários (o bluff e a dissimulação fazem parte do jogo), são positivos porque o medo das contra-respostas influenciam muito o ângulo e o âmbito das decisões e das estratégias.  Mas, no final dos anos 70, este muito frágil equilíbrio foi posto em causa por uma nova arma russa.  Uma arma que colocou a NATO à beira de um ataque de nervos…

 
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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #4 em: Abril 18, 2025, 03:40:14 am »
SS-20 Saber, a “Ameaça Vermelha”

Em 1976-1977 surgiram fotos de reconhecimento de satélite da NATO a revelar pequenos contingentes de veículos transportadores-lançadores em Gomel e Vitebsk, na Bielorrússia, e na fronteira com a China.  A CIA já tinha avisado, desde 1973, e com algum detalhe, que os Russos estavam a desenvolver um poderoso tipo de míssil balístico de médio/intermédio alcance.  Agora estava confirmado.  Mas, mesmo assim, as capacidades desta nova arma, designada SS-20 Saber pela NATO (e RDS-10 Pioneer pelos Soviéticos) fizeram disparar os alarmes na Europa Ocidental.  Pior que isso, esta arma ameaçava destruir o delicado equilíbrio nuclear entre a NATO e o Pacto de Varsóvia.  Porquê?

A forma mais contundente de explicar as capacidades do SS-20 é por compará-lo com os seus antecessores SS-4 Sandal e SS-5 Skean;

Mobilidade :arrow: Ao contrário do Sandal e Skean, que eram lançados de silos fixos, o Saber podia ser lançado e disparado de um impressionante camião MAZ-547A 12x12, o que diminuía muito a vulnerabilidade face a um ataque preliminar.  (Só uma nota em relação aos Sandal/Skean; no post anterior vemos estes mísseis a serem transportados nos desfiles da Praça Vermelha mas essa não é uma capacidade operacional.  Os tractores e atrelados servem apenas para transportar os mísseis para manutenção e posicionamento)  As baterias de SS-20 estavam equipadas com todo o equipamento necessário para se dispersarem rapidamente e disparar autonomamente e sem demora (e com recargas).  Claro que todo o processo de introdução de alvos e perfis de navegação teria ser actualizado no computador e os (vários) locais de lançamento previamente designados e sincronizados.

Uma das primeiras ilustrações do DoD a surgir em fontes públicas.  Toda a bateria era constituída por veículos todo-o-terreno de grande mobilidade; além do transportador-lançador, os veículos com recargas e o posto de comando partilhavam o mesmo chassis MAZ.  Cada bateria era também acompanhada por um pelotão de Spetsnaz fortemente armado para protecção e reconhecimento dos locais de lançamento.

Alcance :arrow: O Saber aumentou o alcance para mais de 5000km, um enorme melhoramento face ao SS-4 (2000km) e SS-5 (3700km).  Os mais atentos saberão que o Sandal media 22m de comprimento, largura de 1,6m e pesava cerca de 40 toneladas enquanto o Skean acusava quase o mesmo comprimento (24m) mas era muito mais largo (2,4m) o que aumentava o peso para o dobro.  Mas como é que o SS-20, com 16m de comprimento, 1,8m de largura e umas frugais 37 toneladas, conseguia alcançar 5000km?  Bem, o Saber representou um enorme avanço geracional na tecnologia de mísseis Soviética, seja em termos de materiais, miniaturização de componentes e desenvolvimento de novas tecnologias.  O mérito de muitos desses avanços deveu-se ao brilhante engenheiro Aleksandr Nadiradze, uma personagem mítica das Forças Estratégicas Soviéticas.  Um dos seus projectos mais ambiciosos ficou conhecido no Ocidente como SS-16 Sinner, mas muitas destas tecnologias ainda eram demasiado imaturas para serviço operacional – aos quais se juntaram também alguns problemas metalúrgicos e interferências políticas para afundar o projecto.  O SS-20 beneficiou de muitos dos predicados desse desenho e simplificou outros, particularmente na propulsão.  Um dos grandes saltos na capacidade destes mísseis foi o uso de combustível sólido e dois estágios independentes (três no Sinner).  Visto de relance poderia ser fácil concluir que estágios com motores-foguete independentes seriam mais pesados (e mais complexos) que os motores-foguetes singulares dos Sandal/Skean.  É verdade, em parte.  Mas a (enorme) vantagem de um míssil multi-estágios é que cada estágio, depois de consumido todo o combustível, é ejectado, o que reduz muito o “peso-morto” do conjunto, não faz oscilar tanto o CG e diminui o arrasto aerodinâmico.  Além disso, os combustíveis sólidos são, geralmente, mais densos e potentes e ocupam menos volume do que os combinados líquidos.     

   
Para a NATO, tentar encontrar meios para detectar e destruir os lançadores de SS-20 tornou-se uma obsessão.  Com centenas de locais de lançamento disponíveis, desde pequenas clareiras na Bielorrússia até parques de estacionamento na RDA, os Saber seriam tão (ou mais) difíceis de encontrar como os famosos Scud Iraquianos em 1991.   
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #5 em: Abril 19, 2025, 03:06:05 pm »
Tempo de reacção  :arrow: Este ponto está directamente relacionado com o anterior – o uso de combustível sólido.  Enquanto que o Sandal e Skean necessitavam de ser reabastecidos (um processo moroso, delicado e perigoso), mísseis como o Saber são entregues lacrados e prontos para usar, com uma “validade de armazenamento” de vários anos.  E porque não pode um míssil de combustível líquido ficar abastecido e em alerta o mesmo tempo?  Porque estes combustíveis são mais instáveis e sujeitos a maior degradação – além de, em alguns casos, devido á sua natureza extremamente corrosiva e ácida, literalmente “comerem” a estrutura interna e os vedantes.  Assim, depois de um período de alerta de uns 30 dias o combustível tem de ser retirado (um processo ainda mais moroso, delicado e igualmente perigoso…).  Foi também o uso do combustível sólido que facilitou a grande mobilidade e fácil deslocação dos mísseis para fora do “conforto” dos silos.     

Ogiva :arrow: E ainda não tocamos no ponto mais fulcral e mortífero do SS-20; a ogiva.  Pior, “as” ogivas.  A grande insuficiência da dupla Sandal e Skean era a fraca precisão da ogiva unitária, o que os definia, firmemente, como armas de retaliação (countervalue).  O Saber surgiu inicialmente também com uma ogiva singular de 1MT mas foi rapidamente substituída por um “bus” com 3 MIRV de 150KT e uma precisão de 400 metros.  Isto não era uma mera evolução, melhoramento ou aperfeiçoamento técnico – foi um choque tecnológico e táctico que transformou, de um dia para o outro, o cenário nuclear na Europa.  Uma das capacidades da ogiva tripla seria atacar alvos separados de forma independente – dentro de um raio de 100km, aproximadamente, dependendo do perfil – com a doutrina Soviética a preferir ataques concentrados a alvos de grande valor militar (counterforce), como bases de mísseis, portos de mar em Inglaterra (para dificultar a chegada de reforços dos EUA), bases aéreas estratégicas, depósitos de armas nucleares e concentrações blindadas.  Em 1983 os Soviéticos já dispunham de 315 sistemas SS-20 no activo com 945 ogivas, um terço na Europa, outro terço no Extremo Oriente e um terceiro nos Urais (prontos a serem rapidamente deslocalizados para onde fossem necessários).   

Em maior detalhe nesta foto, o chamado PBV, do inglês “Post-Boost Bus”, e as três ogivas, cada uma com 175Kt, mais que suficiente para devastar uma cidade média.  A maior parte dos mísseis deste género utiliza uma cobertura aerodinâmica para proteger as ogivas mas o SS-20 prefere ter tudo “á mostra”.  A pintura amarela e vermelha não é operacional, provavelmente foi adicionada para propósitos de exposição.


Em resumo, o Saber podia não só ser usado como arma de retaliação como os seus antecessores (embora com muito maior precisão) mas, mais do que isso, permitia aos Soviéticos esboçar um devastador “first-strike”.  Como vimos nos posts anteriores, a NATO previa ser forçada a usar armas nucleares de baixo rendimento para contrariar a enorme superioridade convencional Soviética.  Por sua vez, a contra-resposta nuclear da Rússia poderia envolver o uso de mísseis Sandal ou Skean contra cidades Europeias (countervalue).  Mas a rapidez de resposta do SS-20 (poucos minutos), mobilidade e precisão das múltiplas ogivas, oferecia aos Soviéticos uma fortíssima, e tentadora, opção de “first-strike”.  Por outras palavras, antes da ofensiva por terra e ar, os Russos lançariam uma chuva de centenas de ogivas contra alvos militares na retaguarda da NATO (incluindo a eliminação das suas armas nucleares) e castrar completamente a capacidade de resposta da Aliança – as bases aéreas dos F-111 e depósitos de mísseis Lance, assim como postos de comando e centros de comunicações, por exemplo. 

Nos seus dias, o SS-20 provocou um dos maiores calafrios á NATO e a herança tecnológica desta arma persiste até aos dias de hoje.  O actual SS-25 Topol (Sickle), desenhado pelo mesmo Alexander Nadiradze, pode ser comparado a um SS-20 com um terceiro estágio.


Neste cenário, a NATO ficaria sem grandes soluções e sem meios para uma resposta “flexível”.  Restariam os SLBM da USN com mísseis Poseidon e os Polaris da Royal Navy no Mar do Norte e no Atlântico – duas armas de “countervalue”, sem precisão para atacar alvos tácticos.  A última e derradeira resposta seria um ataque maciço de ICBMs lançados dos EUA, convidando a inevitável chuva de ICBMs Russos em sentido contrário.  A questão era; arriscariam os EUA fazer isso ou ponderariam limitar a guerra nuclear a uma Europa mergulhada num forno radioactivo? 

Os Europeus precisavam urgentemente (ou desesperadamente?) de uma resposta perante a ameaça dos SS-20.  E encontraram…duas.
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #6 em: Abril 24, 2025, 04:51:33 pm »
Se querem ler um bom livro sobre a temática, aconselho:

 :arrow: https://www.wook.pt/livro/guerra-nuclear-annie-jacobsen/31354379
Contra a Esquerda woke e a Direita populista marchar, marchar!...

 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #7 em: Abril 28, 2025, 04:47:53 am »
Citar

No entantos eu diria que  inimigo maior das nacões  são os warmongueiros  que só conseguem enxergar armas e destruição.

Especialmente aqueles que invadem países vizinhos sem qualquer provocação ou justa causa.
слава Україна!
“Putin’s failing Ukraine invasion proves Russia is no superpower".
"Every country has its own Mafia. In Russia the Mafia has its own country."
"L'union fait la force."
https://www.paypal.com/donate?campaign_id=STAHVCFBSB66L
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #8 em: Abril 30, 2025, 11:00:49 pm »
BGM-109G Gryphon, o “Xeque-mate” da NATO

A NATO necessitava de uma nova geração de armas de longo alcance – e rápido.  Foi proposta uma nova versão “esticada” do F-111 (F-111H) e um pequeno míssil balístico com 1600km de alcance, chamado inicialmente “longbow”, e projectado pela DARPA, como forma de reequilibrar a dissuasão com os Soviéticos.  Mas não era assim tão simples.  Para os Europeus a resposta nuclear “flexível” sempre foi ambígua, dependendo do lado do Atlântico onde cada membro da NATO se situava.  Para os Americanos as armas nucleares estacionadas na Europa eram uma segunda linha de defesa, atrás das divisões blindadas, prontas a ser usadas consoante a escalada de uma potencial invasão Russa – e sem arriscar território Americano.  Em contraste, para os Europeus, qualquer resposta ou contra-resposta nuclear, mesmo que limitada, seria um desastre total.  Nesse sentido, todas as novas armas nucleares de precisão e rápida resposta, que podiam incentivar um uso “limitado”, quer da NATO ou Pacto de Varsóvia, eram um perigo iminente.

O BGM-109G Gryphon (“Glick-em” para os amigos) teve uma carreira operacional curta mas provou ser um eficaz adversário face ao SS-20 Saber Soviético.  Conforme o Coronel Doug Livingston, antigo comandante de umas das baterias, “foi uma das armas chave que nos ajudaram a ganhar a Guerra Fria”.


Deste “caldo” diplomático surgiram duas opções tecnológicas que aproveitaram ao máximo sistemas já disponíveis e de rápida implementação.  Vamos abordar o primeiro, o GLCM (Ground Launched Cruise Missile) ou, para usar o nome oficial, o BGM-109G Gryphon.  Mas ninguém usava estas designações.  Quando muito era conhecido como “Tomahawk Terrestre” ou, simplesmente, “Glick-em”.  Ao contrário de um míssil balístico, como o SS-20, um míssil de cruzeiro mantém um perfil de voo atmosférico suportado pela sua propulsão e sustentação aerodinâmica.  Foi uma solução muito experimentada nos anos 50 e 60 para o transporte de armas nucleares mas revelou-se demasiado desajeitada e pouco precisa.  Mas nos anos 70 novas tecnologias prometiam revolucionar as capacidades dos mísseis de cruzeiro; pequenas e eficientes turbinas, avanços na electrónica de navegação e miniaturização das ogivas.  Outras vantagens eram o baixo custo (comparado com mísseis balísticos) e a flexibilidade de lançamento.  Por outro lado, a baixa velocidade (850-900km/h) significava um voo de 3 horas para atingir alvos perto do alcance máximo de 2600-2800km, o que diminuía a capacidade de “first-strike”. 


O “Glick-em” em modo de voo; asas, entrada de ar (no ventre) e estabilizadores estendidos.  Dois dos “segredos” desta arma eram a turbina (turbofan) F107 produzida pela Williams e a ogiva W84, 150-200Kt, duas obras-primas de engenharia e miniaturização.  Atrás vemos o “booster”, que lançava o míssil para fora do contentor e era descartado em menos de 5 segundos.


Mas a extrema precisão, qualquer coisa como 30-60 metros, tornava-o altamente valioso e perigoso.  O BGM-109 Tomahawk original foi pensado e desenvolvido para a US Navy no inicio dos anos 70, com modularidade e mobilidade em mente, para facilitar o armazenamento e disparo de navios e submarinos.  Aliás, uma das sugestões iniciais envolvia basear mísseis Tomahawk a bordo de submarinos de ataque (SSN) no Mar do norte e Mediterrâneo como resposta ao poderio nuclear Soviético.  Mas havia um problema.  Os submarinos não eram suficientemente “visíveis”.  Este era (e continua a ser) um aspecto importante do equilíbrio nuclear; por um lado deseja-se que os sistemas de armas tenham capacidade de sobrevivência - difíceis de detectar e destruir - mas, ao mesmo tempo, é também crucial que o inimigo saiba da existência dessas armas e das suas capacidades (reais ou apenas bluff!).  É um elemento da dissuasão e de credibilidade da ameaça.  Não é por acaso que os Russos faziam questão de demonstrar certas armas nos seus famosos desfiles militares.


O terceiro “segredo” do sucesso desta arma era o sistema de controlo e navegação TERCOM (Terrain Contour Matching), que actualiza o perfil de voo do INS com leituras do radioaltímetro em zonas pré-programadas.   Em cada leitura o míssil compara com o perfil na memória e corrige qualquer erro e repete o processo até chegar ao alvo.  Isto significa que a rota tem de ser previamente construída com imagens recolhidas por satélite ou aeronaves de reconhecimento.  Também significa que o “Glick-em” não perde precisão com o passar do tempo e distância – importante para um míssil com um tempo de voo de 3 horas.


Adaptar o BGM-109 Tomahawk para o lançamento em terra seria relativamente fácil – ou assim se pensava.  Os engenheiros da General Dynamics descobriram rapidamente que não bastava colocar os mísseis em cima de um atrelado e dar um rádio portátil ao motorista.  Desenvolver o veículo transportador-lançador (TEL – Transporter Erector Launcher) e toda a estrutura associada aos sistemas de controlo e comunicações seguras foi mais moroso do que o imaginado.  Mas o resultado final compensou largamente a demora.  O excelente camião MAN escolhido para a tarefa, a pesar cerca de 35 toneladas, carregava 4 “Glick-em” protegidos numa estrutura de alumínio, com as asas, entrada de ar e “barbatanas” perfeitamente recolhidas – uma herança do Tomahawk ser projectado para ser disparado de tubos de torpedo padrão de 21 polegadas (533mm).  Os TEL e veículos de apoio ficariam protegidos em bunkers específicos e, em alturas de maior tensão ou em exercício, dispersados para áreas previamente escolhidas (e bem camufladas) num raio de 80-100km da base.  Cada bateria era composta por 4 camiões TEL (16 “Glick-em”), 2 veículos de controlo e comando no mesmo chassis (LCC – Launch Control Center), embora só um fosse necessário para designar alvos para toda a bateria, o segundo era uma reserva para emergências ou em caso de falha mecânica.  Com veículos de apoio e segurança, a bateria totalizava 22 veículos e 69 homens.  Uma força minúscula tendo em conta o poder de fogo que lhes era confiado; 16 ogivas W-84 com 150Kt cada - um total de 2,4 megatoneladas, ou 160 vezes o poder destrutivo largado sobre Hiroshima…       
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #9 em: Maio 07, 2025, 09:06:09 pm »
BGM-109G Gryphon, o “Xeque-mate” da NATO (cont.)

O processo de lançamento de um míssil de cruzeiro GLCM envolvia alguns passos pré-determinados.  Imaginemos um episódio de grande tensão política em meados dos anos 80.  Entre várias medidas de dissuasão, a NATO dispersa baterias de “Glick-em” para áreas remotas, mas fortemente protegidas.  Uma das baterias, localizada na base de Florennes, na Bélgica, desloca-se durante a noite para uma área 40km a Noroeste da cidade de Charleroi.  Numa primeira fase, o impressionante comboio de veículos move-se por entre as apertadas estradas secundárias da província Belga debaixo do olhar de admiração e apreensão dos muitos civis despertos pelo roncar rouco dos camiões MAN 8x8.  A dada altura os camiões abandonam a estrada e mergulham na escuridão de um bosque perto de Perwez - os condutores, equipados com óculos de visão nocturna, não necessitam de faróis nem de iluminação artificial.  Além do mais, já conhecem bem a zona, resultado dos inúmeros treinos e exercícios conjuntos.  Um jeep civil, inadvertidamente ou não, tenta seguir o mesmo caminho – talvez apenas um agricultor a regressar á sua quinta – mas é imediatamente barrado por vários soldados das forças especiais Belgas, que surgem sem aviso por entre os arbustos.  Os quatro TEL espalham-se por entre as árvores, conectados por fibra óptica ao LCC – o segundo LCC aguarda a 1500 metros de distância, em caso de necessidade.

O camião MAN M1013, de 10t e tracção ás oito rodas, era o veículo padrão das baterias de GLCM, não só usado como base para os veículos lançadores (TEL) e postos de comando (LCC) mas também como veículo de manutenção e reparação.  Muito apreciado pelos americanos que confessavam, nunca abertamente claro, ser muito superior aos veículos fabricados nos “States”, especialmente em conforto, facilidade de condução e qualidade de suspensão.


Ao passar das 2h00 da manhã, a bordo do LCC, dispara um aviso mensagem de satélite, directamente do SACEUR.  Os dois oficiais, sentados á frente de um teclado, aguardam nervosamente enquanto o computador descodifica e autentica a ligação.  Não é uma mensagem de voz mas um texto pré-gravado, ou Emergency Action Message (EAM).  O alvo não é mencionado por nome, apenas por código, neste caso Strike Package 36.  As coordenadas e o perfil de voo já estão introduzidas no computador, apenas é necessário actualizar os dados meteorológicos mais recentes e introduzir os códigos de lançamento para cada “Glick-em” – processo que demoraria menos de 20 minutos.  O alvo é o Quartel-General da Frota Soviética do Báltico em Krondstadt, São Petersburgo.  Estas armas são propriedade dos EUA e, apesar de localizadas na Bélgica, não existe acordo de “dual key”.  Aos dois oficiais a bordo do LCC apenas resta introduzir o código de seis letras e pressionar os dois botões “execute” em simultâneo.  Existe, no entanto, um acordo vago que, em caso de guerra, o lançamento de armas nucleares deve ser decidido junto com a nação anfitriã.  No entanto, a autorização para o disparo de “Glick-em”s significaria que a guerra nuclear total já estaria em andamento e as comunicações estariam severamente danificadas – e, mais importante, o tempo das gentilezas diplomáticas já se teria esgotado.  Felizmente, tal cenário nunca se tornou realidade.

Nestas duas imagens vemos uma bateria de “Glick-em” no seu habitat natural.  Na foto acima, á esquerda, um dos veículos transportadores-lançadores (TEL) e o posto de comando (LCC) á direita.  Na foto abaixo, dois dos soldados que asseguram a segurança da bateria posam para a fotografia armados com espingardas M16A1 (o da direita com lançador de granadas M203) – a nostalgia dos anos 80 e 90 é incontornável...



Outra questão de grande discussão no seio da NATO foi a distribuição e quantidade, das baterias de GLCM na Europa – um balanço difícil entre a credibilidade da dissuasão e as sensibilidades diplomáticas de cada membro da Aliança.  A Inglaterra já era uma potência nuclear e a Noruega e Dinamarca recusaram armas nucleares no seu território.  Turquia e Grécia?  Demasiado instáveis.  A Itália aceitou participar, assim como a Holanda e a Bélgica, mas com muita relutância.  Depois de infindáveis discussões finalmente chegou-se a uma decisão em Dezembro de 1979 – mais ou menos.  Os Belgas pediram mais seis meses para decidir se saiam e os Holandeses mais 18 meses (?) para decidir se ficavam…  O esquema final, provisório, foi este;

Alemanha Federal (Wuschheim) - 96 GLCM (6 baterias / 24 TEL transportadores-lançadores),
Holanda (Woensdrecht) - 48 GLCM (3 baterias / 12 TEL transportadores-lançadores),
Itália (Comiso) - 112 GLCM (7 baterias / 28 TEL transportadores-lançadores),
Bélgica (Florennes) - 48 GLCM (3 baterias / 12 TEL transportadores-lançadores),
Inglaterra (Molesworth) - 64 GLCM (4 baterias / 16 TEL transportadores-lançadores),
Inglaterra (Greenham Common) - 96 GLCM (6 baterias / 24 TEL transportadores-lançadores). 

Feitas as contas, eram 464 mísseis de cruzeiro, com alcance mais que suficiente para atingir Moscovo e com a precisão para entrar pela porta da frente do Kremlin.  E o “Glick-em” não era a única arma nuclear de reacção rápida da NATO com que os Soviéticos tinham de se preocupar.  Nem sequer a mais assustadora…

Mapa com a localização aproximada das bases de mísseis GLCM na Europa.
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #10 em: Novembro 09, 2025, 03:11:43 pm »
Pershing 2, o “sniper nuclear” da NATO

Como já analisamos, a resposta da NATO á ameaça do SS-20 Saber foi dupla.  Uma foi o míssil de cruzeiro BGM-109G Gryphon, que mais não era do que a adaptação terrestre de uma arma já existente, o famoso Tomahawk.  A segunda resposta, curiosamente, também resultou de um aperfeiçoamento radical de outra arma, o míssil balístico de curto-alcance MGM-31 Pershing.  Este míssil era capaz de atingir um alvo a cerca de 700km de distância com uma ogiva W50 de 400Kt com precisão de 400 metros – “not great, not terrible”.  O problema é que esta potente ogiva dificilmente poderia ser usada num contexto Europeu sem provocar baixas civis assustadoras e impensável destruição nos centros populacionais e industriais – não esquecer que uma das funções destas armas era deter as divisões mecanizadas Soviéticas, o que implicava o seu uso perto das fronteiras ou mesmo em território Alemão.  Além do mais, o SS-20, com os seus 5000km de alcance, 3 MIRV com precisão semelhante e grande mobilidade, era uma ameaça incontornável.  Era necessária uma resposta mais credível.     

Lançamento de um Pershing 2 de teste em 1983.  Perfeitamente identificáveis os dois estágios e o RV (Reentry Vehicle) com o cone dieléctrico na extremidade frontal – “transparente” para as ondas de radar do sistema de comparação terminal mas suficientemente resistente para suportar o calor da reentrada atmosférica.


A Martin Marietta fez aquilo que muitos (irritantemente) gostam de apelidar “pensar fora da caixa”.  Para melhorar o alcance, e sem alterar as dimensões do míssil, os dois estágios dos motores foram profundamente redesenhados e melhorados, principalmente o “booster”.  Foi também utilizado um novo combustível sólido de maior energia e densidade (cortesia do míssil terra-ar Patriot) e, para criar mais espaço, toda a estrutura dos depósitos foi construída com Kevlar.  O resultado foi um aumento radical do alcance para 1800km (os Soviéticos acreditavam que era de 2500km), apesar de manter as mesmas dimensões e utilizar os mesmos veículos de transporte e lançamento.  Mas o maior avanço tecnológico não era esse.   A ogiva W50 de 400Kt foi substituída por uma W85 de potência variável entre 80Kt e uns “míseros” 5Kt.  Qual seria a utilidade de uma ogiva nuclear de tão baixo rendimento?  Bem, conforme já vimos nos textos anteriores, a lei do inverso do quadrado demonstra que uma ogiva com maior precisão necessita de (muito) menor potência para atingir o mesmo resultado.  Um dos exemplos mostrava que um melhoramento de 50% na precisão (550m para 275m) permitia a redução da ogiva numa proporção de 10 (1Mt em vez de 10Mt).  E foi isso que a Martin Marietta conseguiu, encolheu os respeitáveis 400 metros de precisão do Pershing (semelhante ao SS-20) para uns míseros 30 metros!  A forma como esta precisão foi conseguida é melhor demonstrada no diagrama abaixo;

O que a Martin Marietta conseguiu criar no Pershing 2 foi agregar ao habitual sistema de navegação inercial (comum nos mísseis balísticos, como o Saber) um sensor guiado na fase terminal.  Depois de esgotados os dois estágios de propulsão o RV, ou veículo de reentrada, alinha a ogiva durante a fase de médio-curso (onde atinge Mach 12) e prepara a reentrada na atmosfera.  Na fase terminal, a cerca de 15000 metros de altitude, o RV executa uma manobra para reduzir a velocidade e activa o radar de mapeamento do terreno.  O radar realiza varrimentos sucessivos em intervalos programados, o computador compara essas leituras com as imagens do alvo guardadas na memória e ajusta constantemente a trajectória até que ambas coincidam.


Este nível de precisão, aliada ao curto tempo de reacção e velocidade (apenas seis minutos de voo para atingir um alvo a 1800km), transformava o Pershing 2 numa arma particularmente temível pelos Russos.  Permitia ataques devastadores de “decapitação” nos centros controlo e comando (e políticos) do Pacto de Varsóvia.  E isto preocupava seriamente os líderes Russos, dada a centralização de poder e das linhas de comando extremamente rígidas e burocráticas das estruturas militares comunistas.  Esta velocidade - de voo e de reacção - tornavam-no também numa excelente arma para eliminar alvos que exigiam um tempo de resposta imediato, como formações blindadas em movimento, bases aéreas, bunkers e até navios e submarinos (particularmente os SSBN) ainda ancorados.

O alcance de 1800km exigia que todos os 108 Pershing 2 fossem localizados na Alemanha Federal, o mais perto possível das fronteiras do Pacto de Varsóvia.  Especificamente, 36 (mais 4 sobressalentes) em Schwaebisch-Gmeund, 36 (mais 4) em Neu Ulm, 36 (mais 4) em Waldheide-Neckarsulm e mais 12 de reserva em Weilerbach.


As capacidades conjuntas dos 464 mísseis de cruzeiro “Glick-em” e dos 108 mísseis balísticos Pershing 2 ofereciam á NATO enorme capacidade de dissuasão, credibilidade na resposta e flexibilidade de opções.  Por um lado, o grande alcance dos mísseis de cruzeiro permitia que ficassem baseados longe das fronteiras (o que aumentava a sobrevivência) mas a velocidade relativamente baixa traduzia-se num voo que podia chegar a 3 horas.  Por outro lado, o míssil de cruzeiro é a arma nuclear “stealth” por excelência; o lançamento discreto e o voo a altitude muito baixa tornam a detecção particularmente difícil – ideal para ataques surpresa.  Em contraste, o menor alcance do míssil balístico Pershing 2 significava que ficaria localizado em zonas de maior risco mas compensaria pela enorme velocidade, entre Mach 10-12 na fase de médio-curso, que dificultaria (ou impossibilitaria?…) qualquer tentativa de intercepção.  Em oposição aos mísseis de cruzeiro, os balísticos são tudo menos “stealth”.  O lançamento e trajectória balística denunciam imediatamente estas armas perante radares especializados (alguns em satélites) de longo alcance.

O RV, com a ogiva W85 a bordo, a milissegundos do impacto.  A precisão demonstrada nos testes superou as expectativas mais optimistas embora o sistema de reconhecimento por radar exigisse alvos com forte eco electromagnético.       


Conforme Harold Brown, Secretário de Defesa dos EUA; “a entrada em serviço da dupla mista míssil de cruzeiro/míssil balístico protege contra qualquer limitação ou falha de um dos sistemas, oferece a flexibilidade de escolha da melhor arma para cada missão e complica enormemente o planeamento inimigo.”  Os “Glick-em” e os Pershing 2 representavam também a superioridade tecnológica da NATO.  Tecnologia que os Soviéticos eram incapazes de duplicar; particularmente os sofisticados sistemas electrónicos de navegação e aquisição de alvo destas armas.  Assim sendo, qual seria a resposta Russa perante esta ameaça? 
« Última modificação: Novembro 09, 2025, 03:13:31 pm por Apone »
 

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Re: Conflito nuclear NATO vs Pacto de Varsóvia – Tácticas e Dilemas ☢️
« Responder #11 em: Novembro 16, 2025, 08:22:22 pm »
“As mulheres contra-atacam!” - Protestos anti-nucleares

Outubro de 1983.  Base de Greenham Common, Inglaterra.  Mensagem urgente para a 501st Tactical Missile Wing.  Alarmes soam e ecoam por entre os muros de betão dos bunkers enquanto soldados, técnicos de mísseis e forças especiais correm para os seus veículos – duas baterias de “Glick-em” recebem ordens para sair imediatamente.  Cada segundo conta.  Pode ser um treino.  Mas também pode ser o derradeiro início de um conflito nuclear entre o Pacto de Varsóvia e a NATO.  È imperativo que a bateria saia de Greenham o mais rápido possível – um SS-20 Saber russo pode estar a caminho.  O primeiro veículo a chegar ao portão da base é um HMMWV, mais conhecido por “Humvee”, seguido de um veículo blindado e vários lançadores-transportadores.  Mas o impressionante comboio de veículos não avança muito.  Milhares de mulheres bloqueiam a estrada, cantam e tocam buzinas numa acção de protesto contra a presença dos malvados “imperialistas americanos”.  Centenas de protestantes deitam-se na estrada, bloqueando totalmente a passagem.  Nenhum militar sai dos veículos, a pouco invejável responsabilidade de desbloquear a situação está nas mãos da policia inglesa, que faz o melhor para retirar individualmente cada protestante – uma tarefa tão ingrata como impossível.  Um jovem soldado americano, motorista de um camião MAN 8x8 de 10t, comenta jocosamente (ou talvez não) com o seu superior, sentado á sua direita;

- Sir, I could just run over them…

- Stand fast Private, stand fast – responde o Tenente num tom muito pouco convincente….


Protestos como este bloqueio de estrada em Inglaterra fizeram parte de um movimento que ganhou considerável força nos anos 70-80.  Em alguns países Europeus a pressão foi tão grande que fez vários líderes políticos hesitar em receber armas nucleares no seu território por receio de protestos semelhantes e perda de apoio popular.


Protestos como este tornaram-se comuns desde que um “acampamento da paz” improvisado foi criado á porta da base Inglesa.  Os residentes deste campo, quase exclusivamente composto por mulheres, pertenciam ao crescente movimento anti-nuclear que florescia na Europa Ocidental.  O objectivo destes protestos?  Forçar a NATO a abandonar os planos de localizar as baterias de BGM-109G Gryphon na Europa – bem como os Pershing 2.  Curiosamente, ou talvez não, estes zelosos activistas não viam necessidade de exigir o mesmo às autoridades Soviéticas, ou seja, o abandono dos mísseis balísticos SS-20 Saber apontados ás cidades Europeias...  Bruce Kent, um dos líderes do movimento afirmou sobre os “Glick-em”; “Não acrescentam nada á nossa segurança, mas aumentam a nossa insegurança”.   Na realidade, os “Glick-em” (e seus os primos estratégicos, os Pershing 2) não desestabilizavam a NATO.  Pelo contrário, criavam instabilidade na direcção contrária – na União Soviética.  Estas armas eram uma demonstração de força do Ocidente, mostrava que não iria ceder perante os Russos e convenceram o Kremlin que a NATO não se iria intimidar com ameaças. 

Este tipo de protestos políticos tornaram-se comuns nos anos 80, não só na base de Greenham Common como também nas restantes bases que acomodavam os “Glick-em” na Bélgica, Holanda e Alemanha.  Apenas as baterias baseadas na base de Comiso na Sicília, uma localidade relativamente isolada dos centros populacionais, escapou á atenção dos activistas. 


E foi esta realização que abriu caminho ao início de conversações sérias sobre o acordo INF (Intermediate-range Nuclear Forces – Tratado de Armas Nucleares de Médio-alcance) que iria, eventualmente, remover toda uma classe de armas nucleares dos arsenais das super-potências.  Essas conversações, que se iniciaram em 1981, só começaram a ganhar corpo a partir do momento que os “Glick-em” surgiram operacionalmente na Europa.  A posição da administração de Ronald Reagan era simples; “zero-zero” – eliminação total de todas as armas nucleares de médio-alcance, NATO e Pacto de Varsóvia.  Moscovo concordava com a primeira parte… mas nem tanto com a segunda.  Sugeriram limitar o número de ogivas a 300, mas incluindo a França que nem era sequer membro da NATO.  Outra proposta cínica foi a de basear os mísseis SS-20 Saber para lá dos Montes Urais – só que a mobilidade dos lançadores permitia a rápida deslocalização em tempos de tensão.  Nem pensar.  Enquanto estas discussões continuavam a pressão dos protestos anti-nucleares em vários países Europeus (alguns desses grupos patrocinados por Moscovo) aumentava e os Soviéticos acreditavam que o tempo estava do lado deles.  Mas a NATO manteve-se firme e em 1983 a quase totalidade das baterias de “Glick-em” e Pershing 2 estava operacional.  Perante isto, os Russos “amuaram” e abandonaram as conversações no final de 1983 e durante todo o ano de 1984 não deram sinal de vida. 

Não deixa de ser irónico reflectir sobre as sinceras preocupações destes activistas.  Mas acabam por protestar contra as únicas armas que os protegiam de um ataque nuclear Russo.  Não foram estes protestos que convenceram o Pacto de Varsóvia a destruir as suas armas nucleares de médio alcance – foi a presença dos “Glick-em” e dos Pershing 2 que os obrigou a isso.


Eventualmente, Moscovo cedeu e concordou em regressar á mesa de negociações em 1985.  Sem entrarmos em muitos detalhes sobre os avanços e recuos das diferentes propostas apresentadas nos meses seguintes, o importante é que em Fevereiro de 1987 Gorbachev aceitou a proposta americana “zero-zero”.  Isto incluía desmantelar dos “Glick-em” e Pershing da NATO bem como os SS-20 Saber, os SS-4 Sandal, SS-5 Skean, SS-12 Scaleboard e SS-23 Spider do Pacto de Varsóvia.  E mais.  Os Russos concordaram com um protocolo de verificação sem precedentes, que incluía verificações mútuas da destruição das armas.  Talvez a situação económica periclitante na União Soviética tenha sido determinante para este desfecho assim como a determinação de Ronald Reagan de injectar milhares de milhões de dólares no programa SDI (Strategic Defence Initiative – o famoso “Star Wars”), que os Soviéticos não podiam acompanhar, seja em termos tecnológicos ou económicos. 

O sarcasmo dos Americanos no seu melhor.  De facto, a melhor forma de garantir a paz foi a determinação da NATO em não ceder perante o crescente poderio nuclear Russo nos anos 70.


Este acordo também validou a estratégia da NATO de implantar os “Glick-em” e Pershing na Europa.  Demonstrou de forma convincente a seriedade do compromisso americano com a segurança dos parceiros da NATO e a solidez da solidariedade da Aliança.  O acordo INF foi assinado em 1987 e, a partir daqui, as coisas aceleraram rapidamente, especialmente após a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética.  Em Maio de 1991 todas as armas nucleares de médio alcance – que durante muitos anos amedrontaram milhões de pessoas - estavam reduzidas a um grande monte de (muito cara) sucata.

Infelizmente, o tratado INF foi sendo lentamente esvaziado nos últimos 15 anos e acabou por ser completamente ultrapassado por eventos recentes. 

Mas isso será história para outro dia.