https://cnnportugal.iol.pt/defesa/portugal/fui-representante-de-portugal-na-nato-e-o-que-ouvia-de-outros-paises-nao-era-agradavel-portugal-faz-uma-chico-espertice-para-evitar-gastar-mais-em-defesa/20250327/67e4405cd34e3f0bae9c28d1"Fui representante de Portugal na NATO e o que ouvia de outros países não era agradável": Portugal faz "uma chico-espertice" para evitar gastar mais em Defesa
Enquanto a dimensão das ameaças enfrentadas pela NATO cresce, uma regra da a aliança permite mascarar a fragilidade das defesas de alguns dos seus membros. É o que faz Portugal, mas até há casos piores, como o de Espanha
Quando a Rússia invadiu e anexou a Crimeia, em 2014, muitos temeram o pior. Vladimir Putin mostrava-se cada vez mais ousado e a postura agressiva do Kremlin fez soar todos os alarmes nos países de leste, onde a memória da ocupação soviética ainda está viva. A NATO respondeu com a recomendação do aumento dos gastos da Defesa para, pelo menos, 2% do PIB, de forma a devolver à aliança as capacidades que vinha a perder ao longo de anos de desarmamento. Só que o acordo não encontrou uma definição rígida do que constitui um "gasto em Defesa", deixando margem a interpretação e permitindo aos líderes políticos de vários países europeus "inflacionar contabilisticamente" os seus gastos em Defesa.
Portugal, que pertence ao grupo de membros da NATO que menos gasta em Defesa em relação ao PIB, não é uma exceção. Em 2023, o nosso país declarou à aliança um gasto de 1,48% do PIB em Defesa, aproximadamente 3,9 mil milhões de euros, de acordo com um documento da Aliança Atlântica. No entanto, o gasto real nos três ramos das Forças Armadas é inferior. Apesar de não aumentarem a capacidade das forças armadas, os dados enviados à NATO incluem as despesas do país com a Guarda Nacional Republicana (GNR) e com as pensões dos militares, o que inflaciona as contas portuguesas em 1,6 mil milhões de euros, praticamente metade do gasto total. Em 2024 a percentagem de despesa aumentou para 1,55%, sendo que o aumento do suplemento de risco pago à GNR - 200 euros mensais a mais para cada guarda - teve uma forte contribuição.
Eu fui representante de Portugal na NATO e sei perfeitamente aquilo que ouvia de outros países e que não era agradável. Se queremos ser levados a sério não podemos andar com artifícios para tentar enganar os nossos parceiros. Esse artifício tem de acabar de uma vez por todas. A incorporação das contas da GNR nos gastos da Defesa é uma chico-espertice", afirma o major-general Isidro de Morais Pereira, analista de Defesa e antigo representante de Portugal na NATO, referindo-se a uma prática que é permitida pela Aliança Atlântica, e que países como Espanha, com a Guardia Civil, ou França, com a Gendarmerie, também fazem.
Isto significa que, retirados estes gastos, Portugal gastou pouco mais de 1% do PIB em modernização e investimento das Forças Armadas. Algo que acontece porque o compromisso com a NATO permite contabilizar como gastos em Defesa forças paramilitares, desde que tenham uma função militar e estejam sob o comando militar em cenários de guerra, que é o caso da GNR, apesar de estar sob a tutela do Ministério da Administração Interna, de onde sai o dinheiro para as despesas desta força. Em caso de guerra, a GNR passaria a estar sob a alçada do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.
"Não é correto incluir os gastos de pessoal da GNR no orçamento da Defesa. Mesmo em Portugal, nas contas públicas, a GNR recebe o seu orçamento do Ministério da Administração Interna. Se não vem do orçamento da Defesa em termos internos em Portugal, porque é que há de ser orçamento da Defesa quando enviamos os números para a NATO?", questiona Isidro de Morais Pereira.
Mas Portugal está longe de estar sozinho no que toca à inflação dos seus gastos de Defesa perante a NATO. A 13 de março, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, anunciou uma nova abordagem para impulsionar os gastos da Defesa do país sem aumentar necessariamente o investimento em mais equipamento militar. Sánchez entende que é irrealista para um país como Espanha, que percentualmente ainda gasta menos que Portugal, preparar o seu exército para combater tanques russos, que jamais seriam capazes de atravessar os Pirineus. Para o primeiro-ministro espanhol, a ameaça russa "é híbrida". E é por isso que o governo de Madrid quer preparar uma estratégia "360 graus" que pretende incorporar os esforços para reduzir emissões de carbonos, resposta às alterações climáticas, cibersegurança e combate ao terrorismo como sendo gastos em Defesa.
A medida permitiria a Espanha, que gasta apenas 1,28% do PIB em Defesa - é mesmo o país da NATO que tem a percentagem mais baixa -, aumentar significativamente os seus gastos em Defesa sem, na prática, aumentar os gastos em Defesa, numa altura em que os membros da aliança já não encaram a meta de 2% estabelecida em 2014 como suficiente para contrariar a ameaça russa no flanco leste. A expectativa é mesmo que a NATO aumente para 3% do PIB o gasto de Defesa mínimo já na próxima cimeira de junho, em Haia. Um número que obrigaria quase todos os países a acelerarem os gastos - em 32 Estados-membros, só Polónia (4,12%), Estónia (3,43%), Letónia (3,15%), Grécia (3,08%) e Estados Unidos (3,38%) gastam acima disso em 2024.
Itália, que não chegou aos 1,5% do PIB em Defesa em 2024, também tem uma parte significativa dos seus gastos ligados à existência da sua polícia armada, os carabinieri. No entanto, a vasta maioria dos 32 mil milhões de euros que Itália tem para o orçamento da Defesa são gastos em salários de pessoal e pensões. A par de uma situação financeira mais restrita, com a dívida pública bastante elevada, o executivo de Georgia Meloni sugeriu incorporar medidas de estímulo à competitividade económica na contabilidade dos dados de Defesa reportados à NATO.
"Não vale a pena andar a encontrar artifícios. Os portugueses e os europeus têm direito a ter um aparelho militar credível. Os países têm de colocar a indústria a funcionar e constituir reservas de guerra, para comprar os equipamentos que, neste momento, não temos", insiste Isidro de Morais Pereira.
Aumento da produção
Para criar uma capacidade de Defesa capaz de dissuadir potenciais inimigos da Europa, investimentos em polícias, alterações climáticas e em competitividade económica não são suficientes. Para isso, é preciso entregar às Forças Armadas de cada país as capacidades necessárias para fazer frente às ameaças que se aproximam, colocando encomendas às empresas europeias, de forma a que a indústria militar seja capaz de responder às necessidades dos países da União Europeia.
E as principais empresas da indústria europeia, que desde 2021 viram a sua capitalização bolsista aumentar 64%, estão dispostas a expandir a capacidade de produção, mas insistem que para isso têm de receber encomendas e contratos a longo prazo que justifiquem os investimentos de vários milhares de milhões em abrir novas fábricas e novas linhas de produção. Armin Papperger, CEO do gigante industrial alemão Rheinmetall, afirmou que a empresa já investiu centenas de milhões de euros por conta própria, mas alertou que o ritmo depende dos pedidos de compras
"O fim da Guerra Fria levou-nos a abandonar a indústria militar, que foi obrigada a aplicar uma lógica de duplo uso, produzindo para o mercado civil e militar. Só que nenhuma indústria de Defesa sobrevive se não tiver encomendas para o fornecimento. Se esse cenário se mantiver, vamos continuar a ter uma capacidade de resposta muito curta", defende o major-general Agostinho Costa.
Algumas áreas específicas da indústria militar europeia têm demonstrado um forte progresso. A produção de munições de 155mm, por exemplo, que estava praticamente paralisada no início da invasão russa, é um desses casos. Empresas de pólvora aumentaram significativamente a sua capacidade de produção e as fábricas de produção de projéteis passaram de produzir cerca de 250 mil munições por ano para 1,5 milhões de unidades em 2025.
Uma outra área onde a indústria europeia tem demonstrado capacidade em subir a capacidade de produção é na produção de sistema de defesa antiaérea de curto alcance, como é o caso do modelo da empresa alemã Diehl Defence, o IRIS-T SLM. O gigante industrial é agora capaz de produzir aproximadamente 500 mísseis interceptores por ano. A vasta maioria destes projéteis são enviados para a Ucrânia. Sistemas que têm provado a sua utilidade no campo de batalha, como as armas antitanque NLAW, AT4 e Carl Gustaf produzidos pelos suecos da Saab, também viram a sua produção disparar, sendo capazes de fabricar 400 mil unidades por ano.
Noutros casos, a indústria não foi mesmo capaz de se adaptar sem o aumento real dos gastos da Defesa dos países europeus. A produção de mísseis de longo alcance é uma das áreas onde o continente está mais atrasado. O único país europeu que produz estas armas é a França, que tem o conglomerado MBDA a produzir os mísseis SCALP (também conhecidos como Storm Shadow na variante britânica). No entanto, a sua produção é bastante reduzida quando comparada à capacidade de produção russa. Estima-se que França produza apenas entre 50 a 100 mísseis por ano. Moscovo produz uns estimados 1.200 mísseis cruzeiro por ano.
Só que os custos para recuperar as capacidades são significativos. De acordo com uma análise do think tank belga Bruegel, os países europeus precisam de recrutar mais 300 mil soldados e de gastar mais 250 mil milhões de euros por ano para poder colmatar a ausência do apoio norte-americano, em caso de um conflito de larga escala. Estes valores seriam o suficiente para adquirir os 1.400 tanques e os dois mil veículos de infantaria necessários para recompor os exércitos europeus
Atualmente a capacidade de resposta não responde aos níveis de ambição. Quem conhecer bem a estrutura militar percebe que nós temos de parar para pensar. Isto vai obrigar-nos a mudar de estrutura. A ter outra logística e a pensar noutro tipo de recrutamento militar", refere Agostinho Costa.
Para os especialistas, inverter esta tendência depende quase exclusivamente de vontade política. No entanto, para países como Espanha, Itália e França, a decisão de aumentar significativamente o investimento em Defesa coloca ainda mais pressão no orçamento de Estados que já contam com níveis de dívida pública e défices orçamentais elevados. A juntar aos elevados níveis de endividamento, soma-se o facto de estes países já terem taxas de impostos bastantes altas, reduzindo ainda mais a margem para obter mais financiamento para gastos em Defesa.
Em Espanha, por exemplo, a dívida pública está projetada para chegar aos 101% PIB em 2026 e o défice do país poderia ultrapassar os 4%, se aumentarem os gastos com Defesa em 1% do PIB. Itália também está a operar no limite da sua capacidade financeira. O governo italiano é aquele que mais sofre do endividamento, com a dívida pública a atingir os 138% em 2024 e com um défice de 3,4% no mesmo ano. França não está muito melhor. Nem mesmo uma das mais elevadas cargas fiscais da Europa é suficiente para tapar o défice orçamental francês, que atingiu 6,1% do PIB em 2024, ou para tapar o buraco da dívida francesa, que está projetada chegar aos 114,7% do PIB este ano.
Portugal, depois de anos mais complicados com valores bem acima dos 100% de dívida, tem um cenário mais folgado que estes países. O governo português atingiu um excedente orçamental de 0,7% do PIB em 2024, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística. No mesmo sentido, a dívida pública portuguesa tem vindo a diminuir progressivamente, baixando de 112,4% do PIB em 2022 para 95,9% em 2024. Ainda assim, a subida da meta da NATO para 3% poderia obrigar o próximo governo português a ter de voltar a endividar o país ou a fazer cortes noutras áreas.
Qualquer aumento da despesa em Defesa poderia exigir cortes nas áreas "sagradas" das democracias europeias, como a Saúde, Educação e Segurança Social. A decisão de cortar nestas áreas é considerada por muitos decisores políticos como algo "politicamente sensível" ou até mesmo arriscado. Só que face à dimensão da ameaça e ao esforço conjunto feito por quase todos os países europeus, esse esforço tem de ser partilhado por todos.
Basta ver o que disse o ministro das Finanças nesta mesma quarta-feira, na sequência da apresentação dos resultados. É que a Comissão Europeia quer avançar com um plano que prevê a possibilidade de os Estados-membros da União Europeia ativarem a cláusula de salvaguarda nacional até abril (para poderem gastar sem correrem o risco de ter procedimentos por défice excessivo) e adotem rapidamente o regulamento relativo ao reforço do armamento e do fabrico europeus
Questionado se Portugal tinha, na sequência desse mesmo plano, mais margem para investir na Defesa, Joaquim Miranda Sarmento salientou que o plano orçamental de médio prazo que foi entregue em Bruxelas "prevê um crescimento da despesa com Defesa até 2% do PIB até 2029".
"Naturalmente que há alguma margem para poder antecipar, até porque as regras orçamentais vão ser flexibilizadas e portanto Portugal poderá também beneficiar", admitiu o ministro das Finanças, salientando que "haverá em junho uma nova reunião da NATO para a atualização dos planos de cada país".
"Os nossos países andaram focados em missões de paz e direcionados para a segurança. O cenário internacional mudou. E agora os países europeus começam a perceber que estão subdimensionados para o cenário mais provável, que é um conflito de alta intensidade. Neste momento, a nossa capacidade de resposta está em causa. Temos de repensar toda a estrutura militar, mas para isso é precisa coragem política para tomar medidas difíceis", alerta o major-general Agostinho Costa.