https://cnnportugal.iol.pt/guerra/ucrania/como-a-ucrania-revolucionou-a-sua-industria-da-defesa-estando-em-guerra-e-ja-vende-armamento-aos-aliados/20250223/67b8bc1dd34e3f0bae9ac84aComo a Ucrânia revolucionou a sua indústria da Defesa estando em guerra e já vende armamento aos aliados
TRÊS ANOS DE GUERRA || A Ucrânia encontrou num antigo amigo americano a arma para combater a invasão russa
Quando o exército russo invadiu o território ucraniano, em fevereiro de 2022, o pânico instalou-se. A intensidade dos confrontos, logo nas primeiras semanas, deixava claro que até mesmo as colossais reservas de guerra soviéticas seriam insuficientes. Os líderes ucranianos sabiam que era preciso mais armamento, de todos os tipos, mas o seu orçamento era apenas um terço do do invasor. Era preciso fazer algo com urgência e Kiev não hesitou. A resposta ucraniana foi uma autêntica revolução, que fez disparar a produção e a inovação de equipamento militar no país, e agora apresenta-se como uma esperança para a recuperação económica no pós-guerra.
"Para derrotar a Rússia, nós não podemos fazer o que eles fazem. Eles vão ter sempre mais dinheiro. Eles vão ter sempre mais fábricas. Por isso, nós vamos ter de depender dos nossos empreendedores e da inovação", afirmou recentemente Mykhailo Fedorov, o jovem ministro da Transformação Digital ucraniana, responsável pelo desenvolvimento tecnológico da indústria da Defesa ucraniana.
Kiev compreendeu cedo que é irrealista competir com a quantidade de equipamento que a Rússia é capaz de produzir, uma vez que esta indústria opera com um cheque em branco do orçamento russo. Confrontada com a gigantesca capacidade de produção militar do inimigo, herdada da União Soviética, a Ucrânia apostou todas as fichas numa mudança radical, abandonando a indústria controlada diretamente pelo Estado para um modelo que coloca a inovação nas mãos dos privados. O governo ucraniano decidiu encorajar os empresários com um misto de baixos impostos, subsídios governamentais, desburocratização e simplificou os processos de aquisição de armamento.
E a decisão está a dar resultados: pouco mais de dois anos depois de aplicar mudanças estruturais, a Ucrânia duplicou a capacidade de produção de armamento e já fabrica 40% de tudo aquilo que precisa no campo de batalha, de acordo com o presidente Volodymyr Zelensky. Apesar de ainda depender do apoio militar norte-americano e europeu, Kiev domina a produção de drones aéreos, navais e terrestres, sistemas de inteligência artificial para uso militar, veículos blindados, sistemas de artilharia, munições de artilharia de todos os calibres e até um surpreendente programa de mísseis de longo alcance.
A Ucrânia já produz muitas munições, já produz munições de 155mm e já consegue ser autossuficiente nas munições de morteiro de 120 mm. Dentro de um ano, muito possivelmente vai ser capaz de produzir o armamento convencional mais comum. A Ucrânia tem-nos vindo a surpreender com uma brutal capacidade de se adaptar às realidades da guerra e produzir aquilo de que necessita”, explica à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira.
A face mais visível desta revolução é a produção de drones. E não é para menos. Se a Ucrânia está a conseguir conter os avanços de um inimigo com muito mais recursos, isso deve-se a esta tecnologia. Os comandantes ucranianos na linha da frente estimam que estes sistemas tenham sido responsáveis por 80% das baixas russas na linha da frente, no último ano. Um número que, entre mortos e feridos, atingiu 427 mil soldados, de acordo com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas, Oleksandr Syrskyi. Atualmente, os drones kamikaze representam “quase metade” de todos os disparos do exército ucraniano e são responsáveis por mais de dois terços dos blindados russos destruídos. E a tendência é para aumentar.
No início da invasão russa, a produção de drones na Ucrânia era praticamente inexistente. Agora, nas principais cidades da retaguarda ucraniana, dezenas de fábricas e de oficinas produzem mais de quatro milhões de drones por ano. Muitas delas são autênticas startups, começadas em garagens nos primeiros dias da guerra, que acabaram por desenvolver os seus próprios produtos e a entregá-los diretamente na linha da frente às unidades que mais precisam. Esta ligação direta com os militares permite que estas empresas tenham feedback quase imediato dos seus produtos, permitindo pegar na informação obtida e melhorar os seus drones, adaptando-os às necessidades reais do campo de batalha.
Para acelerar o processo de captação de capital e ajudar as empresas ucranianas a acelerarem o ritmo de inovação e de investimento, o governo ucraniano criou um fundo chamado Brave1. O objetivo é ligar os investidores diretamente aos empresários. Este modelo contrasta com o do outro lado da linha da frente. Na Rússia tudo está nas mãos de um enorme monopólio estatal, que responde apenas ao Ministério da Defesa, que encomenda tudo aquilo que necessita. Esse modelo permite aos russos produzir enormes quantidades de equipamentos militares, mas retira-lhes a agilidade e a capacidade de inovar que a indústria ucraniana está a atingir.
m exemplo da capacidade ucraniana de inovar é o desenvolvimento do Palianytsia, um drone a jato de longo alcance, capaz de voar centenas de quilómetros a alta velocidade até atingir o alvo com precisão. Estas armas, bem mais complexas do que outros tipos de drones que a Ucrânia produz, demorou 18 meses a desenvolver e custa um milhão de euros por unidade. Mas outras empresas produzem alternativas mais baratas, que a Ucrânia tem utilizado com grande eficácia para atingir as refinarias no interior da Rússia. O presidente Zelensky afirmou que o grande objetivo da Ucrânia para 2025 é produzir, pelo menos, 30 mil destes drones até ao final do ano.
Mas a nova indústria militar ucraniana está a inovar noutros campos de batalha. Um exemplo desse sucesso chegou às águas do Mar Negro, onde os drones navais têm anulado quase por completo a frota russa. Depois de ter afundado várias embarcações, a marinha russa é obrigada a operar de portos mais longínquos. Equipados com centenas de quilos de explosivos, um detonador, câmaras e um sistema de controlo remoto, estas pequenas embarcações têm um preço de 250 mil dólares por unidade. Agora, começam a aparecer inovações nestes sistemas. Nos últimos meses, Kiev divulgou um ataque a uma plataforma petrolífera russa, onde um destes dispositivos navais lançava drones aéreos durante um ataque.
“A capacidade de produção de drones ucraniana não tem rival. E já não são só os pequenos drones kamikaze. A Ucrânia já começa a ter drones capazes de atacar a retaguarda do inimigo a centenas de quilómetros”, destaca Isidro de Morais Pereira.
Mas tudo isto acontece com enormes desafios para os empresários que arriscam investir na construção de oficinas de drone. Os constantes ataques à rede elétrica ucraniana fazem com que a eletricidade vá abaixo várias vezes. Isto obriga as fábricas e as oficinas a comprar geradores de eletricidade a combustível, o que aumenta os custos de forma significativa. E, além disso, não é fácil arrendar um espaço para montar uma pequena oficina de drones. Estes locais são, para todos os efeitos, um alvo militar atraente para o Kremlin e muitos proprietários temem ter a sua propriedade destruída devido às atividades dos inquilinos. Muitos preferem jogar pelo seguro ou cobrar um extra.
O que é impressionante na transformação da indústria ucraniana não é apenas a rapidez com que Kiev aumentou a sua capacidade de produção, mas também o facto de a indústria ucraniana ter começado a produzir do zero uma variedade de sistemas que o seu exército nem sequer utilizava no início da invasão. Um exemplo importante disso é a produção de munições de artilharia de grande calibre. Antes da invasão, a Ucrânia operava apenas artilharia de calibre soviético, no entanto, depois de o Ocidente ter enviado milhares de milhões em ajuda militar, Kiev começou a transição para o padrão da NATO. Atualmente, o setor de defesa da Ucrânia conta com mais de 200 novas empresas, responsáveis pela produção de uma ampla gama de produtos, desde cartuchos de munição até explosivos
A Defesa Nacional é uma das funções de soberania do Estado. É o garante da independência e integridade de um país e também da liberdade das pessoas. Logo é o Estado que assume, e que terá de continuar a assumir, o papel principal. Agora, o Estado pode e deve apoiar mais as empresas nacionais que atuam no setor da economia da defesa, principalmente numa realidade geopolítica que se está a tornar cada vez mais desafiante", explica o economista Ricardo Ferraz, professor no ISEG e na Lusófona.
A Ucrânia não só se tornou capaz de produzir munições, como também desenvolveu sistemas para as disparar. Um exemplo de sucesso é o 2S22 Bohdana, um sistema de artilharia sob rodas capaz de atingir alvos a 50 quilómetros de distância, que já está a ser exportado para a Dinamarca. Este canhão desempenhou um papel crucial na reconquista da Ilha da Serpente, na costa de Odessa. Em junho de 2022, militares ucranianos utilizaram este sistema para destruir as defesas aéreas inimigas que existiam no local, levando à retirada do exército russo.
Este sucesso motivou o Ministério da Defesa a iniciar a produção em massa deste veículo. Para isso, foi necessário encontrar o paradeiro da equipa original que desenvolveu o Bohdana. Alguns destes engenheiros encontravam-se a servir na frente de batalha e tiveram de ser retirados para ajudar a criar novas linhas de produção. No final de 2023, a Ucrânia produzia apenas seis unidades. Atualmente, a produção anual de Bohdanas aumentou para 240 no final de 2024, um aumento significativo considerando que o país tinha apenas duas unidades no início da guerra.
A revolução na indústria de defesa ucraniana não se limita ao campo de batalha e está a abrir portas para um futuro económico promissor, com potencial para transformar a Ucrânia num jogador relevante no mercado de armamento. A capacidade de inovar rapidamente e de produzir equipamentos a custos competitivos já atraiu a atenção de nações parceiras. Um exemplo concreto é o acordo de exportação assinado com a Dinamarca para o fornecimento do 2S22 Bohdana. Este contrato, firmado em 2024, marca o início de uma nova fase em que a Ucrânia não é apenas um recetor de ajuda militar, mas também um exportador de tecnologia testada em combate, o que reforça a sua credibilidade no mercado internacional.
Além disso, a entrada de conglomerados ocidentais no cenário ucraniano está a consolidar esse potencial de negócios. Empresas como a alemã Rheinmetall e a francesa KNDS assinaram acordos para construir fábricas em território ucraniano, focando-se inicialmente na reparação de veículos blindados e na produção de sistemas de artilharia e defesa antiaérea. A Rheinmetall, por exemplo, anunciou em meados de 2024 um investimento inicial de 150 milhões de euros numa unidade de produção de blindados Lynx, com planos para expandir a operação em 2025. Já a KNDS está a colaborar com empresas locais para fabricar munições compatíveis com padrões NATO, aproveitando a mão de obra qualificada e os incentivos fiscais oferecidos pelo governo ucraniano. Estes acordos não só fortalecem a capacidade de produção local como também posicionam a Ucrânia como um hub estratégico para a indústria de defesa europeia.
E é difícil ignorar as implicações a longo prazo que estas movimentações podem vir a ter para o país. Com a infraestrutura industrial a adaptar-se aos padrões ocidentais e uma reputação crescente dos drones e mísseis ucranianos, o país pode explorar mercados emergentes na África e na Ásia, onde a procura por armamento acessível e eficiente é cada vez maior. O sucesso dos drones kamikaze e navais, que provaram a sua eficácia contra um adversário poderoso como a Rússia, pode atrair clientes interessados em soluções de baixo custo e alto impacto. Além disso, a experiência em tempo de guerra dá às empresas ucranianas uma vantagem rara na indústria de defesa: a capacidade de oferecer produtos testados em condições reais com sucesso demonstrado.
A Ucrânia continua, no entanto, limitada pela sua capacidade de atrair capital para acelerar a produção e desenvolver novas soluções. Apesar de ser capaz de produzir mais de 40% das suas necessidades - e tudo indica que esta percentagem voltará a aumentar em 2025 - o material ainda é insuficiente para travar os avanços russos no campo de batalha, que têm conseguido importantes conquistas no último ano, apesar do elevado preço pago por Moscovo. Ainda assim, o modelo "hipercapitalista" escolhido por Kiev foi eficaz o suficiente para assegurar a sobrevivência da Ucrânia durante a invasão russa. Resta saber se será resiliente o suficiente para aguentar o possível fim do apoio militar norte-americano.