https://cnnportugal.iol.pt/guerra/ucrania/como-putin-atirou-a-russia-para-um-desastre-demografico-com-a-invasao-da-ucrania/20250223/67b86a17d34e3f0bae9ac1a6TRÊS ANOS DE GUERRA || O número de baixas não para de aumentar no campo de batalha e isso começa a ter implicações reais para o Kremlin
Ainda antes de invadir a Ucrânia, Vladimir Putin já sabia que o seu país corria perigo. Desde que chegou ao poder, o presidente russo insiste que a crise demográfica que a Rússia atravessa é “o seu maior desafio”. Agora, três anos depois de lançar a maior invasão em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial, onde centenas de milhares de jovens russos morreram ou ficaram feridos, os especialistas alertam que a Rússia está a alimentar uma explosão demográfica que pode levar o país a perder mais de metade dos seus habitantes até ao final do século.
"A guerra do Presidente russo, Vladimir Putin, garantiu praticamente que, nas gerações vindouras, a população da Rússia será não só mais pequena, mas também mais velha, mais frágil e menos instruída. Será, quase de certeza, etnicamente menos russa e mais diversificada em termos religiosos. Embora alguns possam ver a diversidade como um ponto forte, muitos russos não a veem dessa forma", afirma Harley Balzer, professor emérito de Governo e Relações Internacionais da Universidade de Georgetown, que publicou um estudo sobre o "desastre demográfico" russo.
As origens da crise demográfica russa vão muito além da guerra na Ucrânia, mas a intensidade do conflito está a tornar o futuro da Rússia num verdadeiro pesadelo. Segundo os serviços de informações britânicos, a Rússia já perdeu mais de 850 mil soldados na frente de batalha, entre mortos e feridos, nos últimos três anos. Perto de metade dessas baixas, cerca de 427 mil, aconteceram em 2024, quando as forças russas se focaram numa estratégia de atrito, que, apesar de custar mais vidas, surtiu efeito na conquista de território.
O número de vítimas da guerra, particularmente a faixa etária dos 18 aos 35 anos, tem um triplo efeito negativo para o problema russo. Por um lado, não só diminui a população russa e aumenta o fosso entre óbitos e nascimentos, como também retira ao país homens em idade de criar família e de ter mais filhos, exacerbando ainda mais o problema. Mas torna a Rússia um dos países com mais mulheres do que homens. Em 2023, existiam 78,3 milhões de mulheres na Rússia para apenas 68 milhões de homens.
"A Rússia é um país extremamente envelhecido e que tem um fortíssimo desequilíbrio entre homens e mulheres. Já o tinha antes das guerras e explica-se com práticas que levam a uma maior mortalidade entre os homens como o consumo de álcool e o facto de ser uma sociedade extremamente violenta", explica Teresa Rodrigues, professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, especialista em migrações e estudos demográficos.
Todos estes problemas colocam pressão sobre o Índice Sintético de Fecundidade (ISF), que mede o número de nascimentos por mulher e é utilizado para tentar compreender se um determinado país está a ter um número de nascimentos que lhe permite manter a população. Para que um país seja capaz de assegurar a substituição da sua população com novas gerações, o ISF tem de ser de 2,1. É preciso recuar a 1988 para recordar a última vez que a Rússia atingiu esse valor. De acordo com dados do Banco Mundial, a Rússia regista agora um ISF de 1,4, um valor baixo demais para os objetivos russos.
Não é só o número de mortos na guerra que está a aumentar o fosso populacional russo. Segundo Harley Balzer, o próprio ambiente de incerteza gerado pela guerra faz com que muitas famílias não queiram ou adiem ter filhos, aprofundando ainda mais o problema. Isto fez com que o ano de 2024 fosse o ano com a taxa de natalidade mais baixa desde que Vladimir Putin subiu ao poder na Rússia, no ano 2000.
A própria agência de estatísticas estatal russa, a Rosstat, afirma que a população russa está a encolher meio milhão de pessoas por ano, desde 2021. Mas agora as suas estimativas são mais pessimistas e acreditam que, caso a situação não seja invertida, a população russa pode cair dos atuais 140 milhões de habitantes para 130,6 milhões, em 2045. Esta queda representaria a perda de 11% da população, para valores que não são vistos na Rússia desde o ano de 1970. As Nações Unidas projetam que a população da Rússia, atualmente em 146 milhões, cairá para 74 a 112 milhões em 2100. Isto representa um declínio de 25 a 50%, comparado com a queda de 20% estimada para a população global.
Ao mesmo tempo, agravando ainda mais a situação, cerca de um milhão de jovens, grande parte com educação superior, e várias famílias abandonaram o país no início do conflito, de acordo com estimativas dos serviços secretos norte-americanos. Muitos acabaram por voltar, mas outros fugiram definitivamente da Rússia de Putin. Ainda assim, um êxodo populacional desta dimensão é suficiente para ser sentido em qualquer economia, mas atinge com particular gravidade uma economia em declínio populacional.
"A Rússia já estava a perder população há muito tempo, mas agora intensificou-se e é um dos países com um dos cenários mais sombrios. Vai começar a faltar gente para fazer atividades que ninguém quer fazer ou que são vistas como pouco atrativas. Além de uma perda de influência internacional e de um menor dinamismo interno, a economia vai ser afetada", explica Teresa Rodrigues.
Para piorar, a guerra está a ter também um impacto na imigração, outrora uma das soluções encontradas pelo Kremlin para lidar com a perda de população. A anexação da Crimeia em 2014 já tinha reduzido significativamente a imigração ucraniana, mas a invasão da Ucrânia em 2024 levou a que os migrantes das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central acabassem por evitar rumar para a Federação russa.
E a Rússia sabe que isto é uma bomba prestes a explodir. Vladimir Putin fala do assunto como sendo um problema existencial e anuncia novas medidas com regularidade. Em dezembro deste ano, o Kremlin anunciou uma nova iniciativa para fazer frente a uma crise que se agrava cada vez mais. A estratégia de Putin passa por recorrer a um dos seus veículos de ação favoritos: recorrer aos meios de comunicação para propagar e promover “o estilo de vida da família”. Para isso, o presidente russo anunciou a criação da “Estratégia de Ação”, um departamento chefiado por Valentina Matvienko, que será responsável por “proteger, apoiar e defender a família como base da sociedade russa”. O objetivo deste novo programa do Kremlin é aumentar o ISF de 1,42 para 1,6 até 2030, aumentando esse valor para 1,8 até 2036.
Só que esta iniciativa não é a primeira e certamente não será a última. Meses antes, a Rússia já tinha aprovado legislação para punir aqueles que promovam um estilo de vida “livre de crianças” com multas que oscilam entre os quatro mil euros para cidadãos e até aos 51 mil euros para entidades. No passado, o Kremlin anunciou incentivos fiscais para as famílias mais numerosas e um programa chamado "Capital de Maternidade", que atribuía pagamentos de quase 7 mil euros por cada filho. Mas os resultados não chegaram para contrariar a tendência e o ISF continuou a
Este não é um problema exclusivo da Rússia. Muitas das antigas repúblicas soviéticas registam quedas abruptas do número de nascimentos por mulher. Vários países da europa ocidental, como Portugal, Espanha ou Itália também sofre de um ISF insuficiente para repor a população. No entanto, todos estes países possuem uma combinação de longa esperança média de vida, baixa mortalidade infantil e níveis de imigração que permitem manter um saldo populacional positivo. E, acima de tudo, não estão a participar ativamente num conflito armado que todos os anos mata e incapacita centenas de milhares dos seus habitantes.
Esta tendência é particularmente grave para a economia russa, numa altura em que atravessa severos problemas, devido às sanções impostas pelo ocidente em resposta à invasão russa da Ucrânia e à reorientação do país para uma economia de guerra. Essa alteração levou a Rússia a concentrar grandes quantidades de recursos em aumentar a produção militar, expandindo as fábricas existentes, construindo novas infraestruturas e investindo em setores completamente novos para a economia russa. Todo este esforço exigiu uma grande quantidade de mão-de-obra, inicialmente colmatada pelo Kremlin com trabalho de migrantes. Atualmente 10,5 milhões de migrantes, maioritariamente da Ásia Central, trabalham na Rússia.
Mas o ataque ao centro comercial Crocus City Hall por um grupo de migrantes do Tajiquistão mudou tudo. A onda de indignação perante um dos piores ataques terroristas da história do país, que tirou a vida a 144 pessoas e feriu 551, levou o Kremlin a propor nova legislação para limitar a imigração no país. As leis adotadas pelo parlamento russo dão poder à polícia para decidir se os migrantes devem ser deportados e permite que essas deportações aconteçam dentro de 48 horas. E o resultado foi imediato, apenas em 2024, o número de deportações na Rússia disparou para 80 mil, o dobro do ano anterior, de acordo com estatísticas estatais russas citadas pela TASS.
"Quando morrem mais pessoas do que nascem, os países ficam dependentes de saldos migratórios positivos para garantir o funcionamento de vários setores fundamentais ao funcionamento do estado. Com a Rússia a deixar de abrir as portas à imigração, o impacto no saldo populacional russo vai ser bastante negativo e acentuar as perdas de população que têm vindo a ser registadas", alerta Teresa Rodrigues.
Estas restrições à imigração ameaçam colocar ainda mais pressão na situação demográfica, acentuando a queda anual no número de habitantes, e na economia russa, numa altura em que a inflação continua em alta. Em 2023, o Banco Central da Rússia (BCR) informou que 60% das empresas enfrentavam uma escassez de trabalhadores (a maioria dos quais especialistas qualificados) e mais de 75% das empresas tiveram de aumentar os salários para manter os trabalhadores. Mais tarde, o próprio vice-governador do BCR, Alexei Zabotkin, admitiu que “a capacidade de produção disponível” está esgotada.
Só que não é apenas nas fábricas e nos escritórios que esta mão-de-obra é necessária. A prioridade para o Kremlin continua a ser na linha da frente, onde milhares de soldados são lançados contra as posições defensivas ucranianas, umas vezes com sucesso, outras nem por isso. Passados dois anos, as necessidades de soldados não diminuíram, muito pelo contrário. O exército precisa de 30 mil novos soldados por mês. Para os convencer a entrar no exército voluntariamente, o governo oferece uma combinação de elevados salários, mais benefícios e prémios de assinatura de contrato.
Invadir a Ucrânia, enfrentando um desafio demográfico catastrófico, parece ter sido uma enorme loucura para o Kremlin. A arrogância baseada numa espantosa falha dos serviços secretos pode explicar o erro de cálculo. Outra explicação possível é que Putin compreendeu que os desafios económicos e demográficos da Rússia significam que o país não estará em condições mais favoráveis nas próximas décadas", sugere Harley Balzer.