As lições esquecidas na defesa de BakhmutNuno Félix
Ex-membro das Forças de Operações Especiais do Exército (CTOE), ex-consultor da Wikistrat.
A operação “Market Garden” decorreu entre 17 e 27 de Setembro de 1944, nos Países Baixos e na Alemanha. O seu objectivo principal era criar uma saliência de cerca de 100 km em território da Alemanha Nazi. Para isso, pára-quedistas tinham como objectivo capturar pontes sobre o Reno (Market) para, de seguida, forças terrestres (Garden) estabelecerem contacto e cruzarem o rio. Mesmo tendo libertado cidades como Eindhoven, a operação falhou e resultaram mais de 15 mil baixas aliadas.
Pergunta-se quem lê qual a relevância de uma batalha da Segunda Guerra Mundial, ocorrida há 79 anos, para a defesa de uma cidade do leste da Ucrânia, em 2023?
Tal como a Operação “Market Garden”, a opção de continuar a defender Bakhmut representa uma lição em assumir risco operacional.
De facto, ao dia de hoje, Bakhmut não tem nenhum valor militar significativo. Em Maio de 2022, tinha bastante valor do ponto de vista estratégico, pois permite ameaçar Slovyansk e Kramatorsk, que, na altura, poderiam ter caído para o domínio russo. É impossível consolidar o leste da Ucrânia sem tomar estas cidades.
Ao dia de hoje, mesmo se as forças ucranianas abandonassem Bakhmut, não existiria nenhuma consequência militar imediata para o teatro de operações. E não, o exército Russo não iria marchar vitorioso sobre o leste da Ucrânia.
Então, porquê defender Bakhmut a todo o custo? Foi um risco operacional do Comando Ucraniano e foi uma decisão política do Presidente Volodymyr Zelensky para negar uma vitória política à Rússia. E aqui reside, na minha humilde opinião, uma lição esquecida, até para a NATO.
Num conflito convencional de grande dimensão, algumas vezes, conscientemente, é preciso trocar vidas e material por tempo e atrito do inimigo.
Tal como o comando aliado na Segunda Guerra Mundial, com a Operação “Market Garden”, o Comando Ucraniano arriscou defender Bakhmut, com o objectivo de fixar e degradar as forças russas, utilizando o mínimo de reservas e de material possível, utilizando essencialmente forças de defesa territorial em rotações de três semanas e não utilizando as unidades que prepara para operações futuras.
É arriscado? Sim. É uma decisão fria e calculada? Sim. Têm consciência das pesadas baixas? Sim.
Mas o que é certo é que, ao dia de hoje, a Federação Russa teve de reforçar a companhia militar privada Wagner com elementos de manobra das unidades aero-transportadas (VDV) e de elementos do exército regular russo, a fim de manter a acção ofensiva. Bakhmut resiste, fixa e degrada unidades de manobra russas, que possuem um dispositivo limitado e com uma linha de contacto de mais de 1000 kms. Até agora, o risco compensa.
Tal como Mariupol e Severodonetsk, trocam-se forças por tempo e atrito, mas agora em prol de um objectivo estratégico maior e por objectivos políticos. Tal como o Presidente da Ucrânia sublinhou, tomar Bakhmut seria uma vitória que Vladimir Putin e a sua máquina de propaganda venderiam à comunidade internacional.
Sacrificam-se vidas e material por objectivos políticos? Se fosse um bom colunista iria citar e filosofar sobre Karl von Clausewitz, mas não vou fazê-lo.
Fica apenas uma lição esquecida da arte da guerra: alguns serão sacrificados conscientemente por objectivos maiores. É bom que nos lembremos.
https://onovo.pt/opiniao/as-licoes-esquecidas-na-defesa-de-bakhmut-CA14720727