https://cnnportugal.iol.pt/ue/guerra/um-kit-por-familia-para-sobreviver-72-horas-sem-ajuda-externa-o-guia-de-bruxelas-para-enfrentar-incidentes-e-crises-de-grande-escala-em-que-as-forcas-armadas-necessitariam-de-apoio-civil/20250326/67e3c4ecd34e3f0bae9c1fd1Um kit por família para sobreviver "72 horas sem ajuda externa". O guia de Bruxelas para enfrentar "incidentes e crises de grande escala", em que "as forças armadas necessitariam de apoio civil"
Num conjunto de diretivas a ser apresentado em Bruxelas esta quarta-feira, a Comissão Europeia propõe 30 ações-chave para os governos e os cidadãos da UE estarem preparados para enfrentar eventuais guerras armadas, ciberataques, pandemias e os efeitos extremos da crise climática
A União Europeia tem de estar preparada não apenas para uma eventual guerra mas para as consequências de potenciais ciberataques, pandemias e os efeitos da crise climática. A advertência é feita pela Comissão Europeia num guia com 30 sugestões aos governos e cidadãos europeus a que o El País teve acesso e que deverá ser oficialmente apresentado esta quarta-feira em Bruxelas.
Segundo o jornal espanhol e o Politico, que entretanto também consultou o documento, entre as orientações conta-se a proposta de que cada agregado familiar disponha de um kit com água, medicamentos, pilhas e alimentos suficientes para aguentar 72 horas sem ajuda externa no caso de “incidentes e crises intersetoriais de grande escala, incluindo a possibilidade de agressão armada, que afetem um ou mais Estados-membros”.
Com as tensões geopolíticas a aumentar, e no contexto de uma nova corrida ao rearmamento face à ameaça da Rússia e a aparente aproximação dos EUA ao Kremlin, o executivo comunitário preparou uma estratégia para tempos de crise com orientações a cada Estado-membro para que a população civil e as autoridades estejam preparadas para crises de larga escala, incluindo para enfrentar os primeiros três dias-chave.
O kit de sobrevivência proposto pela Comissão inclui seis garrafas de água potável por pessoa; alimentos não perecíveis, como conservas em lata, arroz e massa; lanternas e pilhas; rádio analógico a pilhas; e um kit completo de primeiros socorros.
“Num contexto de aumento dos riscos naturais e de origem humana e de deterioração das perspetivas de segurança para a Europa, é urgente que a UE e os seus Estados-Membros reforcem a sua preparação”, lê-se no projeto da Comissão, ainda em discussão e futuramente sujeito a alterações. “A preparação e a capacidade de resistência da Europa face à violência armada poderão ser postas à prova no futuro.”
O El País, que consultou o conjunto de orientações em primeira mão, diz que o guia é composto por 30 ações-chave, desde a preparação civil para emergências até componentes mais técnicas, como exercícios conjuntos e cursos especializados para jovens e adultos, por forma a alertar os cidadãos para os potenciais riscos que enfrentam.
"Período inicial é o mais crítico"
A UE “deve ser capaz de mobilizar todos os meios e recursos disponíveis para apoiar os Estados-membros”, o que “pode incluir meios militares disponibilizados pelos países”, adverte a Comissão no relatório, onde ressalta que, “em caso de perturbações extremas, o período inicial é o mais crítico” – e onde sublinha que é precisa uma “mudança de mentalidade” entre os cidadãos.
No relatório, o executivo recomenda uma cooperação mais estreita entre as organizações da sociedade civil e os militares de cada país, prevendo a realização de exercícios regulares e de simulacros para testar a assistência de uns países a outros em caso de ataques ou outras crises. “A Europa não pode dar-se ao luxo de ser um mero observador. Em caso de agressão armada, as forças armadas necessitariam de apoio civil para assegurar a continuidade do funcionamento do Estado e da sociedade”, lê-se na estratégia.
Durante e depois da pandemia de covid-19, que abalou a UE e o resto do mundo em 2020, o bloco preparou ferramentas e normas para a gestão de crises, que incluíam a tentativa de acabar com a dependência de fornecedores externos e armazenar medicamentos essenciais, bem como programas conjuntos de aquisição de vacinas. Mas, refere a Comissão neste guia, a cooperação fronteiriça continua a ser demasiado fragmentada, descoordenada e ineficaz – e os programas e instrumentos já disponíveis são mais “reativos” do que proativos.
“A utilização de instrumentos de previsão estratégica, de antecipação e de alerta precoce é insuficiente. Falta uma avaliação integrada dos riscos, das ameaças e dos seus efeitos em cascata, incluindo os provenientes do exterior da União”, afirma a nova estratégia. Além disso, o “grau de preparação” necessário das famílias, dos cidadãos, das empresas e das instituições da UE deve ser “permanente”, pelo que Bruxelas propõe que seja declarado um dia europeu de preparação, a fim de sensibilizar toda a sociedade para a necessidade de se preparar e de resistir a qualquer catástrofe.
Entre os “múltiplos riscos e ameaças aos pilares da UE”, a Comissão refere que a paz e a estabilidade já não estão garantidas no contexto atual. E não só menciona potenciais episódios de “violência armada” como alerta para outros perigos, nalguns casos já detetados, a que os cidadãos e os governos devem estar atentos, como ciberataques contra infraestruturas essenciais, das redes energéticas aos bancos, a sabotagem de cabos submarinos, gasodutos e oleodutos, e grandes vagas de desinformação para interferir nas democracias europeias.
A par disso, Bruxelas também invoca as consequências e a necessidade de estarmos preparados para episódios climáticos extremos que podem ser sentidos mais de perto pelos cidadãos dos países do sul, como Espanha, Itália e Portugal, como incêndios florestais, cheias e secas – destacando que o continente europeu é o que mais está a aquecer em todo o mundo.
“Se [esta realidade] não for abordada através da melhoria da capacidade estrutural das nossas sociedades para gerir os riscos, os custos humanos, económicos e sociais das alterações climáticas só irão aumentar nos próximos anos, incluindo a pressão crescente do seu impacto negativo noutras partes do mundo, como as perturbações nas rotas comerciais e nas cadeias de abastecimento globais”, diz o documento que o El País consultou.
UE acelera preparativos: a corrida ao armamento
Para além de ajudar a UE a 27 com orientações sobre como lidar com uma catástrofe e ajudar as pessoas a sobreviver até que os serviços públicos sejam restabelecidos, Bruxelas pretende criar uma plataforma digital para fornecer aos cidadãos e aos viajantes informações sobre os riscos e as opções disponíveis (por exemplo, abrigos) em caso de crise – e tenciona igualmente coordenar a nível europeu as reservas estratégicas de produtos farmacêuticos, matérias-primas essenciais, energia e até mesmo alimentos.
Com as secretas de vários países europeus a alertarem para a possibilidade de a Rússia de Vladimir Putin vir a lançar algum tipo de ataque contra a UE nos próximos cinco a dez anos, o guia a ser apresentado hoje é apenas uma peça de um pacote alargado de medidas para preparar as economias, as forças armadas e as sociedades do bloco.
Nesse pacote está incluído o plano para ReArmar a Europa que a Comissão Von der Leyen apresentou na semana passada, sob o qual se pretende investir até 800 mil milhões de euros em armamento e outros equipamentos nos próximos quatro anos – com 650 mil milhões a virem dos orçamentos nacionais e 150 mil milhões de empréstimos com dívida comum garantida pelo orçamento comunitário.
A par disso, já estão também em debate o Plano Europeu de Adaptação às Alterações Climáticas, a Lei dos Medicamentos Críticos e o Pacto para uma Indústria Limpa. E dentro de algumas semanas, adianta o El País, será acrescentada a esta grande estratégia uma outra vertente, mais centrada na preparação das infraestruturas e na preparação para ameaças híbridas, nomeadamente ciberataques de larga escala.
O mesmo jornal adianta que o novo guia para sobreviver a crises externas tem por base um detalhado relatório preparado por Sauli Niinisto, antigo presidente da Finlândia, um país que partilha fronteira com a Rússia e que tem já em vigor uma forte regulamentação e o nível mais elevado do continente em termos de preparação dos cidadãos para crises extremas.
Nesse estudo, publicado em outubro passado, Niinisto apela a que pelo menos 20% do orçamento da UE seja consagrado à segurança e à preparação para situações de crise. Bruxelas ainda não entrou em pormenores sobre os fundos que, tal como no capítulo da defesa, serão alocados no orçamento plurianual da UE para executar este plano.