Artigo muito interessante (excepto o delírio do iberismo do autor: Arturo Pérez-Reverte):
Arturo Pérez-Reverte: "Não há interesse em conhecer o discurso do dissidente, só em calá-lo" A Península que gostava de ver unida. O desinteresse pelo passado, o futuro "pessimista" e o efeito das redes sociais. Entrevista com o escritor espanhol a propósito do novo "Uma História de Espanha".Pérez-Reverte é um dos mais afamados romancistas espanhóis contemporâneos. As suas histórias aventurosas, cheias de intrigas e ação, piratas e excêntricos, talvez já pudessem fazer prever um empreendimento destes, que resultou no novo livro Uma História de Espanha, contada pelo seu lado mais espalha-brasas. Ainda assim, não é vulgar vermos um romancista refletir sobre o seu país e expressar, mesmo que de uma forma chocarreira, preocupações com as raízes da sua identidade e com as grandes questões do seu mundo. Foi sobre os pilares de Espanha e sobre a forma como moldaram o carácter ibérico que falámos com o escritor.
Porquê uma História de Espanha agora, para mais nesta forma talvez um pouco gozona?
Informal, com humor. Bem, eu interesso-me muito pela História, sou leitor de História desde sempre, mas o principal neste caso é que há um problema em Espanha. Um problema que vem dos planos de Educação, e que aliás é mais europeu do que espanhol, mas que em Espanha está a provocar consequências gravíssimas: a eliminação da memória e da História dos programas escolares para as novas gerações. Ora, uma geração que não conhece a História fica indefesa diante de manipuladores, oportunistas e demagogos. Há muitos jovens que já não têm conhecimento nenhum da sua História, e isso permite que haja em Espanha uma grande manipulação histórica por interesses partidários. Esta pareceu-me uma boa forma de contar então a História. De uma forma subjetiva, apolítica mas também amena e divertida, para que as pessoas se possam interessar e passar depois aos livros sérios. Serve para estimular, digamos.
A imagem de Espanha que surge no livro é a de uma Espanha cheia de violência, de projetos pouco pensados…
Sim, a Península Ibérica sempre foi um lugar crítico, por ser um sítio de fronteira, de transição e de grandes paixões e intercâmbios culturais. Isso criou uma série de tensões que marcaram muito o caráter dos Espanhóis. A guerra contra os muçulmanos, sobretudo, e depois a Inquisição e o azar com as monarquias – sobretudo com o final dos Áustrias e com os Bourbons –, tudo isso criou uma série de tensões que, agravadas pelas circunstâncias históricas, criaram uma grande instabilidade e grandes problemas políticos. A Espanha é um país com muito azar histórico. Como Espanhol custa-me que tenhamos tido um monte de ocasiões perdidas. A História de Espanha é a História de um monte de ocasiões perdidas. Para mim, aliás, uma das grandes ocasiões perdidas foi quando estivemos unidos a Portugal durante 60 anos e perdemos a ocasião de renunciar ao centralismo castelhano, quando poderíamos pôr a capital em Lisboa e juntar um grande império Ultramarino, que nos faria um império muito mais importante. Ainda hoje penso que uma união — não digo uma união nacional e política, que seria impossível, mas uma espécie de Federação ou uma união ao género da que houve nos anos 50 e 60 – nos faria muito mais poderosos numa Europa que volta e meia nos olha com desprezo. A separação que existe entre Espanha e Portugal, mais culpa de Espanha do que de Portugal, parece-me um erro. Nesse sentido sou iberista, como Saramago.
Vemos noutros países, em França, por exemplo, que os condados medievais se unificaram sem grandes problemas de identidade como em Espanha. O que é que se passou em Espanha para que as identidades nacionais sejam tão fortes?
Em Espanha houve um grande problema: é que enquanto em países como França houve uma Revolução, em Espanha nunca houve uma mudança de regime que eliminasse o peso da Igreja da vida social e política espanhola. Nunca houve uma revolução que eliminasse nenhum tipo de privilégios, nem os da nobreza, nem os do Rei, nem os fueros regionais. Daí que em Espanha mantenhamos os velhos vícios da modernidade nunca conseguida. Boa parte dos problemas que há em Espanha, de divisão e falta de solidariedade social, vêm precisamente destes velhos males nunca curados.
Ainda assim, fala-se no livro de uma “velha Espanha”, como alguma coisa de comum às várias regiões. Qual seria então o fator que daria a unidade a Espanha, o princípio comum que daria a Espanha uma identidade?
Bom, eu não sou um cientista político nem um historiador. Sou um escritor, que viajou, que leu e agora escrevo. Nesse sentido, nem sequer sou um intelectual, pelo que as minhas respostas a isso podem ser muito parciais. Dito isto, para mim Espanha é um lugar. Não é sequer Espanha, é Ibéria. Um lugar em que aconteceram coisas muito boas e outras muito más. Trágicas e maravilhosas, belíssimas e horríveis, fascinantes e incríveis. As gentes da Ibéria percorreram o mundo e isso não aconteceu com mais nenhum país. Por razões históricas complexas, Portugal ficou desgarrado de Espanha, ou Espanha desgarrada de Portugal, mas para mim gosto de considerar a Península Ibérica como um lugar, e um lugar em que se juntaram paixões generosas, guerras, povos, ideias, religiões num todo muito complexo. É isso que a faz tão fascinante. Poucos lugares têm uma História tão fascinante como a da Península. Espanha para mim, neste sentido, é um lugar em que convivem muitas línguas e ideias que nos fazem tão interessantes como trágicos.
A História de Espanha tal como aparece neste livro é uma História aventureira, romanesca…
Mas imagina o que seria se os americanos, os ingleses ou os alemães tivessem uma História como a espanhola ou a portuguesa? Os filmes, os romances, a quantidade de histórias heroicas, trágicas, apaixonantes, de aventuras, viagens, descobrimentos, que seriam feitos num país que se respeitasse a si mesmo? Nós, porém, descuramos este património, arremessamo-lo uns aos outros, e é isso que é ao mesmo tempo terrível e fascinante em Espanha.
Há um lado interessante no livro relacionado com as ideias políticas. Parece que em Espanha elas andam ao contrário do mundo. Quando na Europa o nacionalismo e o progressismo se assemelham, com ideias de autodeterminação, os fueros estão com o Carlismo; quando o nacionalismo passa a ser visto como reacionário temos a reação espanhola a combater os nacionalismos dentro de casa, parece que se anda ao contrário.
Isso acontece porque a nossa História criou umas disfunções terríveis. Aqui há um aspeto que para mim é fundamental. A religião católica e o cristianismo são fundamentais na cultura ocidental, e acho que devem ser estudados para entender a cultura Ocidental; mas dito isto, parece-me que em Espanha a Igreja adquire um papel fundamentalmente negativo. A Igreja faz-se com o controlo moral do poder, impõe uma série de comportamentos, de medos, uma insegurança, uma espécie de ditadura moral, que criam efeitos psicológicos terríveis nos espanhóis. Durante muitos séculos a Igreja opõe-se a todo o progresso que escapa ao seu controlo, e isso cria uma série de disfunções e separações. Até a ETA nasce em seminários, o separatismo catalão também se apoia em sacerdotes separatistas; no século XX a Igreja ainda tem atuação política em Espanha. Ainda que tenha perdido o comboio da História há muito tempo, mantém uma tendência para não separar o divino do Humano. E tudo isso, a juntar à geopolítica espanhola, à invasão francesa, às guerras da Flandres, tem impedido os espanhóis de viverem em harmonia. Mesmo depois do milagre maravilhoso da transição estamos outra vez a pôr em causa as estruturas de convivência social. E isso é repetir a nossa triste história, quando já não podemos culpar os reis nem a Igreja, só a nós.
Como é possível, então, que um país tão fragmentado consiga fazer uma transição pacífica?
Há uma coisa importante. A guerra civil estava muito presente e a guerra civil foi colossal. Os nossos pais lembravam-se perfeitamente dela e todos sabiam que não se podia repetir uma coisa daquelas. É por isso que todas as forças, à direita e à esquerda, concordaram com uma solução que permitisse afastar o fantasma do confronto. O problema, agora, é que quem conheceu a guerra civil já morreu. As gerações que chegaram e que não têm memória da guerra civil nem uma força intelectual que permita discutir de forma razoável são gerações muito sectárias. Não deixam falar, proíbem, a Espanha está a descapitalizar-se intelectualmente. Por isso é que estão a querer destruir a difícil obra da transição.
O que é que se pode então fazer para voltar a capitalizar intelectualmente um país?
Não sei. Eu sou pessimista, e por uma razão muita clara. Acho que o único mecanismo de salvação existente é a cultura. E isso constrói-se nas escolas, criando cidadãos interessados, sérios, tolerantes e dispostos ao diálogo. A perceber o adversário. Não se deve calar aquele que não está de acordo connosco, deve-se fazê-lo falar. Agora o que se quer é tapar-lhe a boca. Ora, a batalha da educação perdeu-se. Não por culpa de Espanha, acontece por toda a Europa à conta desses analfabetos que estão em Bruxelas a ditar normas de educação para toda a Europa sem fazerem a menor ideia do que estão a fazer. Estão a desmantelar os mecanismos humanísticos e culturais e a criar gerações de jovens analfabetos, incapazes de debater e raciocinar. Isto já não vai melhorar. Eu já estou velho, para mim já é um bocado indiferente, mas tenho pena pelos jovens. É triste. Eu digo sempre: imaginem que amanhã vem o Hitler à Universidade; quando acabar, que o julguem, que o enxotem, que o matem; mas oiçam-no. É importantíssimo conhecer o mal. Agora a ideia é ao contrário. Eu quero saber, quero saber de onde vem o mal. Agora em Espanha não se quer os inimigos convencidos, quer-se os inimigos vencidos. Isso é terrível. Tenho muitos amigos pouco recomendáveis, que não pensam como eu. Mercenários, prostitutas, e aprende-se com todos. Do bem aprende-se bondade, mas do mal aprende-se vida. Tudo isto se está a tirar da educação dos jovens, e assim claro que saem absolutamente estúpidos, incapazes de pensar com lucidez, que se tornam presas muito fáceis para gente pouco escrupulosa que os maneja com quatro tweets e quatro frases básicas. Em Espanha isto está mais acelerado, mas em Portugal também há de acontecer.
Isso é curioso, e é contrário à previsão iluminista. O que é que faz com que, depois de trazida a liberdade, se escolha ir contra ela?
Antes, a liberdade consistia num exercício intelectual. Agora o que se quer é fazer parte de um grupo. É um assunto complexo. Agora não há ideologia, há ofensa. Há trinta ou quarenta anos um jovem queria ser individualmente livre e lutava pela sua individualidade. Agora o que o jovem quer é fazer parte de um grupo. Encontrar gente que pense como ele, evitar o debate e a discussão. “Há que salvar as baleias”, “há que respeitar os homossexuais”… Sentem-se confortáveis nas atuações coletivas. Não há debate interior, quer-se que tudo seja homogéneo, é impossível a dissidência. O dissidente é logo fascista, machista, homófobo, antianimalista, o que seja. Não há interesse em conhecer o discurso do dissidente, só em calá-lo. As redes sociais mataram o indivíduo, tornaram-no mal-visto. E isto é terrível porque sem indivíduos as sociedades tornam-se rebanhos auto satisfeitos.
https://observador.pt/especiais/arturo-perez-reverte-nao-ha-interesse-em-conhecer-o-discurso-do-dissidente-so-em-cala-lo/