Obama, como comandante-em-chefe, na crise síria
Alexandre Reis Rodrigues
Para vários especialistas e comentadores internacionais, quase todos “pesos pesados” nos jornais e revistas de maior circulação mundial, a Síria constitui hoje um “case study” de como a política externa americana não deve ser conduzida. De facto, o que é conhecido da forma como a administração americana tem lidado com o conflito sírio, incluindo a possibilidade de uma intervenção militar, revela um processo demasiado inconsistente para ser verdade, estando a falar da maior potência mundial.
O assunto é importante porque, no final, é a imagem dos EUA e do seu atual Presidente que sai fragilizada. Falta ver, no entanto, como o político brilhante que é Obama vai conseguir sair do imbróglio em que se deixou envolver e alterar a perceção de líder indeciso e pouco afirmativo, que tem hoje, principalmente aos olhos árabes. Para já conseguiu tornear com sucesso os problemas que tinha para o curto prazo, evitando, pelo menos nos tempos mais próximos, uma intervenção militar que, contra os seus desejos, se estava a tornar inevitável e suspendendo uma votação do Congresso que tinha alta probabilidade de lhe não ser favorável (segundo uma sondagem, na Câmara dos Representantes não se esperavam mais de 203 “sins”, quando o mínimo necessário para a resolução passar seriam 217. No Senado, Obama ficaria mais longe do seu objetivo; conseguiria 22 votos a favor quando precisaria de 50).~
Vamos ter que esperar para ver como vai funcionar na prática o acordo conseguido em Genebra entre Kerry e Lavrov, segundo o qual um grupo de inspetores internacionais procederá, durante o mês de novembro, a uma inventariação de todo o arsenal de armas químicas, a partir de uma listagem inicial a ser facultada pelo regime sírio até 21 de setembro. A destruição de todo o material relacionado, ainda segundo o acordo, deverá estar concluída até meados de 2014. Como será possível concluir esta tarefa num cenário de guerra civil que obrigará garantir a segurança dos inspetores e será, muito provavelmente, interferida pela oposição que esperava
uma intervenção militar dos EUA para enfraquecer o regime? Conseguirá a ONU obter colaboração para reunir o número necessário de inspetores?
São cerca de 1000 toneladas de material espalhadas por mais de 50 locais, alguns dos quais situados em zonas de guerra. Será possível reunir as condições necessárias para que o processo decorra de forma rápida, verdadeira e verificável como Kerry exigia, em declarações iniciais? («It has to be swift, it has to be real, and it has to be verifiable») ou estará os EUA sob o risco de ver mais uma vez as suas exigências ignoradas? Até que ponto estará o regime sírio disposto a encarar as suas obrigações com seriedade? Segundo o general Selim Idriss, líder do Free Syrian Army, as forças governamentais terão começado a mover parte das armas em questão para o Líbano e Iraque, numa tentativa de evitar o seu controlo pelos inspetores das Nações Unidas. Se esta acusação é verdadeira ou apenas uma forma de a oposição síria alimentar o ceticismo que grassa entre os ocidentais quanto à vontade de Assad fazer “jogo limpo” é algo que falta ver.
Para já, o Presidente Putin conseguiu oferecer ao Presidente Obama uma alternativa que evitou a intervenção militar americana. Se vai resultar ou não é assunto que não preocupa Moscovo. Não faltarão bodes expiatórios para apontar como responsáveis pelo falhanço. Se está ou não a contribuir para o prolongamento do conflito também não é assunto relevante. Putin não tem como objetivo principal proteger Assad, muito embora com a sua iniciativa, esteja a ajudá-lo a reforçar a
sua posição e a proporcionar-lhe um sopro de vida na sua capacidade de resistir. O que move Moscovo são interesses estratégicos: regressar ao grande jogo
geopolítico com um estatuto semelhante ao dos EUA, tornar-se indispensável na procura de soluções para o conflito sírio, disputar áreas de influência dos EUA e
dividir os seus aliados, etc.
O mais extraordinário aspeto deste processo é o facto de a ideia de eliminação das armas químicas sírias pertencer a Obama, quando, há um ano atrás na Cimeira do G-20 no México, apresentou uma proposta que Moscovo rejeitou. Não se compreende como os EUA não voltaram ao assunto, na sequência dos ataques empreendidos por Assad em março e agosto, para exigir a colaboração de Putin. Caso Moscovo continuasse a recusar, os EUA teriam uma base mais sólida para intervir militarmente, podendo assim alegar ter esgotado todas as possíveis iniciativas diplomáticas. Acabaram por conseguir a saída por que Obama ansiava mas com o custo elevado de perda de iniciativa a favor de Moscovo, às mãos de quem ficam nos tempos mais próximos no que respeita à Síria. Curiosamente, no dia nove de setembro, em resposta a um jornalista que o interrogava sobre se haveria alguma coisa que Assad pudesse fazer para evitar a intervenção, Kerry respondia do seguinte modo: «Sure. He could turn over every bit of his chemical weapons to the international community in the next week». Mas como esclareceu o Departamento de Estado logo a seguir, Kerry não estava a fazer qualquer proposta. Quem fez a proposta foi Moscovo no dia seguinte! Não se compreende a inépcia dos EUA, a menos que existam factos de bastidores que expliquem este desenlace.
O presidente Obama é quase o oposto do seu antecessor. A imagem de Bush era a de um Presidente que depois de tomar uma decisão nunca voltava atrás e esforçava-se sempre por mostrar não ter dúvidas, mesmo quanto decidiu recorrer ao uso da força, sem consenso internacional nem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Obama conduziu as suas campanhas eleitorais e tem orientado a sua presidência sob uma clara preocupação de se demarcar da postura de Bush. Os seguintes extratos de declarações suas, no passado recente sobre a crise síria, retratam muito claramente o seu pensamento:
«I was elected to end wars, not to start them. I’ve spent the last four and a half years doing everything I can to reduce our reliance on military power as a means of meeting our international obligations and protecting American people».
«My goal is maintain the international norm on banning chemical weapons. I want that enforcement to be real».
«I am not itching for military action … and if there are good ideas that worth pursuing, then I’m going to be open to them».
«I fervently hope that this can be resolved in a nonmilitary way».
Aparentemente, o caminho que traçou é o que a opinião pública americana esperava, em especial no que respeita ao emprego de tropas no terreno em conflitos prolongados e de desfecho incerto. Ao contrário de Bush, Obama mostrasse extremamente relutante em intervir neste tipo de conflitos mas não hesita, de novo em oposição ao que fazia Bush, em envolver-se nas chamadas “guerras secretas” com intervenções em territórios estrangeiros, através do emprego de “drones” armados, que tem conduzido à revelia de vários tipos de escrutínios internos a que se devia ter sujeitado mas que, afinal, tem ignorado.
Esta situação mostra que, ao contrário das acusações que lhe fazem alguns opositores, nomeadamente o senador republicano Bob Corker - um insistente defensor da intervenção militar - Obama não é um comandante-em-chefe que se sente desconfortável no seu papel. Apenas não quer envolver-se em operações de contra-insurreição exigindo prolongados e dispendiosos empenhamentos militares no terreno. Rege-se, sobretudo, por princípios de pragmatismo que também têm pouco ou mesmo nada a ver com preocupações com questões de Direito Internacional ou de obtenção de concordância do Congresso para intervir militarmente. Usou estes expedientes no caso da Síria apenas porque lhe convinha ganhar tempo para a procura de uma saída não-militar. Escudou-se em declarações do general Dempsey, Chefe da Junta de Chefes de Estado Maior, que considerou que a operação não era «time sensitive», isto é, que não precisaria de ser executada imediatamente e tentou passar o ónus da decisão de intervir para o Congresso.
Lamentavelmente, também não foi consistente ao impor “linhas vermelhas” quando não tinha qualquer intenção de intervir. Errou desastradamente na gestão do “bluff” que fez com a questão do emprego de armas químicas pelo regime sírio ao partir do princípio de que era muito baixa a probabilidade de Assad tomar qualquer iniciativa que pudesse desencadear uma intervenção externa. Pôs em causa a credibilidade dos EUA e não conseguiu evitar que entre os seus mais diretos colaboradores, em especial, os Secretários de Estado e da Defesa, deixassem transparecer para o exterior flagrantes diferenças de discurso. Pode, em teoria, argumentar que foi graças à pressão militar que fez que acabou por conseguir uma saída diplomática. Mas o que fica é uma imagem negativa de uma postura apenas reativa e levada ao extremo de se deixar “empurrar” por Moscovo para uma solução que deveria ter explorado.
Extrato de algumas opiniões de especialistas e comentadores
Fareed Zakaria, num comentário para a CNN antes do ponto de viragem que levou à suspensão da ideia de uma intervenção em função da proposta russa, considerava que o Presidente Obama tinha acabado por perder-se numa retórica que o deixou sem qualquer saída senão intervir, malgrado a sua evidente relutância em recorrer ao uso da força. A questão da “linha vermelha” que estabeleceu para a hipótese de virem a ser usadas armas químicas, logo que se começou a aventar essa possibilidade, transformou-se numa espécie de “armadilha” criada por si próprio. Deixou-o sem qualquer saída senão intervir se o limite imposto fosse violado, o que acabou por acontecer. Há dois anos, Obama tinha declarado que Assad deveria abandonar o poder mas nada fez diretamente dirigido a esse objetivo. Na verdade, nunca mostrou ter uma estratégia desenhada para esse fim. (Comentário do autor: A credibilidade da sua postura começou a ser posta em causa ainda antes do 21 de agosto, a data dos ataques que alegadamente mataram mais de 1400 pessoas, quando em março houve um primeiro ataque de menor dimensão. Por essa altura, torneou o problema com a promessa de apoio em armamento à oposição, mas essa promessa só começou a concretizar-se há apenas duas semanas.)
Richard N. Hass, também muito crítico do caminho seguido por Obama, realça, em especial, dois aspetos: 1. O facto de o Presidente não estar a garantir que o que anuncia em público é para ser acreditado por todos, amigos e inimigos; 2. A falta de uma estratégia clara, tendo em conta que não fazer nada é uma opção política com sérias implicações. Hass considera que a estratégia a seguir não pode limitar-se à questão da intervenção militar mas que esta, a verificar-se tem que ser mais do que simbólica; tem que ter em custo para Assad que o desencoraje a repetir.
Kenneth Pollack, tem uma posição em parte semelhante quanto à necessidade de uma intervenção minimamente robusta. Se for para fazer algo muito limitado, como anunciou o Presidente, então será preferível não fazer nada («Go big or stay home»). Pollack chamava também a atenção para o facto de o Presidente estar a querer tudo ao mesmo tempo mas sem passar de meias medidas que afinal o estavam a envolver cada vez mais no conflito sem lhe permitirem avançar o que quer que seja. (Comentário do autor: Algumas declarações do Secretário da Defesa e outras notícias vindas a público por essa mesma altura, referindo que o Pentágono estaria a rever os seus planos para garantir que a intervenção não será apenas simbólica, foram associadas à necessidade de desfazer a perceção que entretanto se tinha instalado sobre a natureza limitada e pontual da intervenção.)
Elliott Abrams abordava, em especial, a decisão de submeter ao Congresso um projeto de resolução a autorizar formalmente uma intervenção militar. Chamava a atenção para a inconsistência de o Presidente não ter dado esse passo por ocasião da intervenção na Líbia, em Março de 2011, caso em que estiveram empenhados doze navios de guerra, 75 aviões, incluindo bombardeiros B-2, possivelmente mais do que então se calculava irem ser empregue na Síria. Abrams considera que não pode tratar-se de uma questão de princípio, à luz do processo de decisão seguido no caso da Líbia. (Comentário do autor: É preciso reconhecer que há uma diferença importante que Abrams não referiu. A intervenção na Líbia foi coberta por uma Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que não acontecerá no caso da Síria, mesmo que houvesse um consenso relativamente amplo sobre a responsabilidade do regime).
Jornal Defesa