Conseguiremos ter eletricidade 100% renovável?Miguel PradoJornalista
18 MAIO 2023 12:58
Bom dia.
Enquanto lê este texto provavelmente não se questionará sobre se, neste instante, a eletricidade que mantém o seu computador ligado à corrente é totalmente verde, ou de onde virá, daqui a umas horas, a energia de que precisará para recarregar a bateria do seu smartphone. Dentro de uns anos, para os mais otimistas, ou dentro de umas décadas, para os mais conservadores, a questão já nem se colocará, pois toda a eletricidade que consumirmos será verde. Será?
O Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) para 2030 não aponta ainda o horizonte para um sistema elétrico 100% renovável em Portugal, embora o Roteiro para a Neutralidade Carbónica fixe essa fasquia no ano 2050. Mas o PNEC está em revisão (ainda esta quarta-feira a secretária de Estado da Energia e Clima, Ana Fontoura Gouveia, foi a Silves para a segunda assembleia participativa desse processo de atualização). E essa reformulação ajudar-nos-á a perceber quão perto ou longe estamos afinal de um sistema elétrico 100% verde.
A questão é complexa. O PNEC atualmente em vigor estabeleceu o objetivo de em 2030 Portugal ter pelo menos 80% da sua eletricidade proveniente de fontes renováveis, mas entretanto o Governo já assumiu que irá trabalhar com o objetivo de que os 80% sejam alcançados já em 2026 (vale a pena lembrar que em 2022, um ano de seca, as renováveis ficaram pelos 57%, segundo a REN, ou pelos 61%, na contagem da Direção-Geral de Energia e Geologia seguindo os critérios da diretiva comunitária 2018/2001).
Para essa antecipação da meta de 80% para 2026 contribui, naturalmente, a perspetiva de aceleração das instalações de projetos de energia limpa pelo país fora, o que está, de facto, a acontecer, quer com a entrada em operação do complexo hidroelétrico do Tâmega, quer com a construção de grandes centrais solares, quer ainda com o forte interesse pelas soluções de autoconsumo fotovoltaico, e ainda por alguns projetos de reforço de potência de parques eólicos já operacionais.
Mas construir um sistema elétrico 100% renovável é desafiante, sobretudo em sistemas de maior dimensão e que foram desenhados para viverem interligados com outras redes elétricas de mercados vizinhos. Não é impossível conceber sistemas totalmente assentes em energias limpas. A Islândia, que o primeiro-ministro visitou há dias, tem praticamente toda a sua eletricidade proveniente de fontes renováveis (cerca de 70% hídrica e 30% geotérmica). Mas, sendo uma ilha, a total exposição a estas duas fontes tem uma implicação: em alguns momentos críticos a rede elétrica tem de ativar as opções de curtailment, isto é, de interrupção do abastecimento a determinados consumidores.
Gerir uma ilha de 380 mil habitantes é bem diferente de administrar um sistema elétrico que serve 10 milhões de pessoas. E há diferenças relevantes entre operar uma rede assente em duas fontes de produção de eletricidade e um sistema que explora três ou quatro recursos de referência, com uma crescente penetração da produção descentralizada e a perspetiva de poder vir a recorrer ao uso de baterias em larga escala.
Há dias, o protesto “Parar o gás”, em Sines, defendeu que Portugal abandone a utilização de gás natural, propondo (ou exigindo) 100% de eletricidade renovável em 2025. Para tal, o movimento apoia-se numa proposta da iniciativa Empregos pelo Clima que reduz a zero a produção de eletricidade a partir do gás, mas também as importações (de Espanha), compensando-o com um aumento da produção eólica (de 13 para 25 terawatt hora, TWh, por ano) e da produção fotovoltaica (de 3 para 19 TWh). Para tal, os autores da proposta estimam a necessidade de adicionar ao sistema elétrico 3300 megawatts (MW) de potência eólica e 9000 MW de potência fotovoltaica face às capacidades que existiam em 2021. E assumem como possível fazê-lo até 2025.
Na última década e meia Portugal fez uma caminhada assinalável na incorporação de renováveis na eletricidade, passando de menos de 30% em 2006 para cerca de 60% atualmente.
Conseguiremos ter eletricidade 100% renovável?
Este crescimento foi fruto de uma aposta centrada nas eólicas (de que resultou, vale a pena lembrar, um cluster industrial que ainda hoje existe e exporta componentes para vários mercados) e nas hídricas. O investimento mais recente em centrais solares de larga escala é o próximo grande salto na quota das renováveis, a que se poderá seguir, após 2030, o arranque das eólicas offshore. Mas pensar em 100% de eletricidade verde dentro de dois anos é irrealista.
Um dos pontos críticos (e que inviabilizam, na prática, a ambição de 100% de eletricidade renovável em 2025) é a difícil realidade do desenvolvimento de projetos de energia de larga escala: nem por sombras o licenciamento de grandes centrais solares e parques eólicos será tão rápido que permita num par de anos (leia-se: um estalar de dedos no setor energético) instalar os volumes de capacidade previstos como necessários para eliminar o recurso ao gás natural. A verdade é que qualquer licenciamento de uma central fotovoltaica de grande dimensão é ainda moroso (mesmo depois da aprovação do chamado Simplex Ambiental), sendo o mesmo verdade para um projeto eólico.
O projeto fotovoltaico Fernando Pessoa (inicialmente designado The Happy Sun is Shining) deve ficar pronto em 2025, segundo a projeção dos promotores (a Iberdrola e a Prosolia), disponibilizando ao sistema elétrico a maior central solar da Europa, com 1,2 gigawatts. Mas para trás, mesmo assumindo que aquela previsão se cumpre, fica um trabalho de sete anos, desde que, em 2018, os promotores iniciaram os estudos ambientais (só no início de 2023 a Agência Portuguesa do Ambiente emitiu a declaração de impacto ambiental favorável, e condicionada).
Pensar num sistema elétrico 100% renovável e livre de geração fóssil ou de importações de outros países é um exercício complexo. Não basta calcular o número médio de horas de produção de uma determinada potência fotovoltaica e de uma certa capacidade eólica para encontrar o número mágico de megawatts verdes de que o sistema elétrico precisará para deixar de recorrer a centrais de ciclo combinado alimentadas a gás natural.
Embora o histórico da produção eólica em Portugal nos ofereça um volume de energia sem grandes variações de ano para ano, a verdade é que essa geração apresenta uma elevada volatilidade, não apenas de mês para mês, mas de dia para dia e também numa base intradiária. Por seu lado, a produção fotovoltaica oferece um perfil de produção razoavelmente previsível desde o raiar ao pôr do sol, que permite projetar o volume de energia que uma determinada central solar poderá produzir ao longo do ano, no inverno, no verão, seja para suprir diretamente um ponto de consumo ou para injetar energia na rede.
Mas a instalação de nova capacidade solar e eólica levará a que em muitos momentos o país seja excedentário em eletricidade renovável (sendo conveniente ter baterias para armazenar essa energia ou centrais hidroelétricas com bombagem reversível para a aproveitar) e a que em muitas outras horas o sistema seja deficitário (e aí ou tem baterias e água suficiente ou importa da vizinha Espanha… ou, ainda, poderá ter capacidade de geração alimentada com gases renováveis ou hidrogénio, em alternativa ao gás natural).
Quanto maiores e mais diversificados (na oferta e na procura) forem os sistemas elétricos, mais desafiante se tornará o objetivo de os tornar 100% verdes.
Um estudo publicado em 2017 por investigadores da Austrália e dos Estados Unidos da América manifestava o seu ceticismo quanto à exequibilidade de alcançar os 100%. “Embora muitos modelos tenham sido publicados alegando provar que um sistema elétrico 100% renovável é alcançável, não há prova empírica ou histórica que demonstre que tais sistemas são de facto exequíveis”, pode ler-se na introdução do trabalho, que analisou 24 outros estudos, concluindo que nenhum dava provas de passar em quatro critérios-chave que, no entendimento dos autores, seriam estratégicos para concluir pela viabilidade de 100% de renováveis.
Os critérios assentavam na consistência com as previsões de evolução da procura, simulação de oferta em diferentes períodos horários e sujeita a eventos climatéricos extremos, identificação detalhada dos requisitos da rede de distribuição e transporte de eletricidade e ainda a consideração de serviços de sistema (serviços técnicos que podem ser prestados por produtores e consumidores para assegurar flexibilidade e ajudar o operador da rede elétrica a manter a continuidade e estabilidade do abastecimento).
Mais recentemente, no final de 2021, um outro trabalho académico simulou uma pequena rede para uma cidade do Texas, nos Estados Unidos da América, projetando a sua capacidade para operar exclusivamente com eletricidade eólica e solar e com baterias, e funcionando isolada da rede da região.
Tem havido ao longo dos anos e pelo mundo fora abundante investigação sobre este tema. É o caso de um projeto financiado pelo programa Horizon 2020, envolvendo mais de uma dezena de investigadores (incluindo de Portugal) no estudo das necessidades de desenho de mercado para um sistema elétrico quase 100% renovável. É que, ainda que possa ser tecnicamente viável (com a combinação certa de fontes como a eólica e solar, de armazenagem hídrica e de baterias, entre outros recursos), a total descarbonização da eletricidade irá requerer condições regulatórias e económicas para poder acontecer.
Esse projeto, denominado TradeRES, é liderado pelo LNEG – Laboratório Nacional de Energia e Geologia, e já publicou, entre outros documentos, um relatório que pode ser consultado aqui, e que chama a atenção para as diferentes dimensões que devem ser consideradas para viabilizar a aposta em sistemas 100% renováveis, desde os períodos de contratação de curto prazo no mercado grossista, passando pela gestão de constrangimentos na rede de transporte, pela estratégia de preços e incentivos para produtores e consumidores, e pelos esquemas tarifários que ajudem a gerir melhor as redes de distribuição, além de uma reforma dos serviços de sistema.
Agora será ainda necessário que, da academia para a indústria, das ideias para a realidade, seja percorrido o caminho para que efetivamente a visão de um sistema elétrico 100% renovável possa concretizar-se.
Quanto custará ter capacidade excedentária de painéis solares para cobrir um maior volume de consumo durante o dia? Qual o preço a pagar pelas baterias de lítio que armazenarão o excesso de eletricidade face à procura num dado período? Valerá a pena converter centrais a gás para queimarem apenas hidrogénio verde? Ou as baterias e as albufeiras das barragens serão suficientes para garantir segurança de abastecimento? E quão disponíveis estamos, enquanto consumidores, para aceitarmos ficar sem eletricidade durante um par de horas, para que a rede elétrica como um todo não tenha um apagão? E será que o desenvolvimento de parques eólicos offshore com uma potência de 10 gigawatts (GW), quase metade da capacidade de geração atual do sistema elétrico nacional, pode ter um papel decisivo para ajudar a garantir uma eletricidade 100% renovável em Portugal?
São muitas perguntas, que sinalizam a amplitude do desafio de equacionar um sistema totalmente assente em fontes renováveis. O caminho para lá chegar promete não ser fácil.
DESCODIFICANDO
Curtailment. No setor elétrico designa o ato de reduzir ou interromper a produção de determinadas unidades de geração quando há demasiada eletricidade a ser injetada na rede face ao consumo nesse momento (ou, inversamente, de reduzir o consumo quando há uma escassez de capacidade de produção). O curtailment, determinado por questões técnicas (e não pela mera gestão comercial que leva o dono de uma central a produzir mais ou menos a cada hora porque o preço é mais ou menos atrativo), pode ser mais frequente para produtores eólicos ou solares, quando a sua geração de energia é excecionalmente elevada e não consegue ser absorvida pela procura nem escoada pelas interligações existentes com os países vizinhos.
A ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Públicos colocou em consulta pública (até 20 de junho) o plano decenal da REN – Redes Energéticas Nacionais para as infraestruturas de gás natural, para o período de 2024 a 2033. O novo plano, que resumimos aqui no Expresso, contempla quase 600 milhões de euros de investimentos ligados ao hidrogénio verde. O documento, que pode ser consultado aqui, tem informação detalhada sobre os investimentos que a REN propõe realizar e como irão onerar os consumidores de gás, caso sejam aprovados pelo Estado.
https://expresso.pt/newsletters/expresso-energia/2023-05-18-Conseguiremos-ter-eletricidade-100-renovavel--0795c2e2