Porque quer a Coreia do Norte ser uma potência nuclear? Qual a dimensão da sua ameaça? Alexandre Reis Rodrigues 
Especula-se muito, mas quase nunca acertando, sobre as possíveis evoluções da postura internacional da Coreia do Norte. Por exemplo, quando se esperava que aproveitasse a disponibilidade da administração Obama para dialogar foi tomar precisamente o caminho que, pelo menos nos tempos próximos, mais a afasta dessa possibilidade e da hipótese de converter o actual armistício que pôs fim à Guerra da Coreia num Tratado de Paz. Estranhamente, não quis tirar partido da oportunidade, que poderia estar próxima, de negociar directamente e de igual para igual com os EUA - uma exigência que marcou todo o período das conversações no âmbito do Grupo dos Seis.
Por alguns anos, durante as administrações Clinton e Bush, considerou-se que o seu programa nuclear era, sobretudo, um instrumento de negociação, visando a obtenção das ajudas necessárias para evitar a entrada do regime em colapso. Agora, não obstante as carências se manterem, em vez das cedências que lhe dariam acesso a outras ajudas, opta por consolidar o estatuto de potência nuclear. É sob essa perspectiva que se encara o teste nuclear de 28 de Maio que parece querer tirar dúvidas aos que tinham considerado pouco credível o rebentamento de 2006, dada a sua baixa potência.
É necessário perceber a lógica da insistência no desenvolvimento de um arsenal nuclear à custa de manter a população a passar fome, sob uma implacável ditadura e em regime de total isolamento com o exterior. Há algumas perguntas a que importa tentar responder. Por quanto tempo calcularão os principais responsáveis pelo regime coreano conseguir manter esta situação que só não é de colapso graças ao apoio da China, aos programas de ajuda alimentar das Nações Unidas e outras ajudas obtidas por manobras de extorsão? Que ambições político-militares espera a Coreia do Norte satisfazer ou que garantias de segurança vê na posse de um arsenal nuclear? O que pode levar a Coreia do Norte a seguir por um caminho que a China – o país de quem depende – não aprova, desautorizando e humilhando a sua condição de potência regional emergente?
Uma ameaça tem duas componentes; a capacidade militar que lhe está subjacente e a intenção política de a utilizar. A capacidade, geralmente, pode ser avaliada em termos razoavelmente objectivos; a intenção tem, habitualmente, que ser deduzida ou, quando possível, ponderada a partir das declarações dos principais responsáveis políticos.
Para avaliação da primeira vertente, no caso da ameaça nuclear da Coreia do Norte, temos, no passado recente, dois testes de rebentamento nuclear, dos quais o primeiro, embora geralmente considerado inconclusivo, foi mesmo assim aproveitado para o regime reclamar o estatuto de potência nuclear. Existem, porém, muitas dúvidas de que essa condição tenha sido atingida, por falta de capacidade de miniaturização de um engenho nuclear para tornar possível a sua instalação na cabeça de um míssil, o que é muito mais complexo do que fazer um rebentamento.
O registo dos resultados com os testes de lançamento de mísseis revela também diversas vulnerabilidades, não obstante os progressos feitos. Os dois lançamento de um Taepodong 2, supostamente com um alcance entre quatro e seis mil quilómetros, em 1998 e no passado dia cinco de Abril, ao que consta destinados a colocar um satélite no espaço, não conseguiram o objectivo proposto; pior do que isso, o segundo andar do míssil lançado em Abril caiu a centenas de quilómetros da zona de perigo que o regime tinha alertado internacionalmente como área de possível impacto. A precisão, que a Coreia do Norte não tem tido forma de avaliar, é outra grande incógnita a afectar a credibilidade do sistema. EUA e USSR, enquanto não tinham garantias de precisão, apostavam na disponibilidade de um maior número de ogivas; a Coreia do Norte não pode seguir por esse caminho por apenas dispor de uma quantidade de material nuclear muito limitada.
A segunda vertente é mais difícil de julgar porque implica conhecer as razões de fundo - muitas vezes não são as declaradas - em que o regime fundamenta as suas ambições nucleares. Torna-se quase impossível descortinar qualquer resquício de racionalidade quando quase tudo está envolto em irracionalidade e em imprevisibilidade. Ninguém consegue colocar-se “nos sapatos” de Kim Jong e tentar adivinhar como reagirá. Ao contrário do Irão, que tem por detrás do seu programa um projecto de liderança regional, que a enorme disponibilidade de recursos energéticos facilita, a Coreia do Norte, sem recursos naturais e praticamente em falência económica e financeira, parece apostar no nuclear como forma de garantir que não é invadida nem que o regime será mudado por influência exterior.
É a lógica de afastar a guerra tornando-a o mais aterradora possível, o que constitui a essência da teoria da “dissuasão limitada”, materializada pela capacidade de infligir um dano inaceitável através de um ataque a um centro vital. Por outras palavras, a Coreia do Norte conta com o seu arsenal nuclear apenas para “funcionar” pela sua própria existência e não pela sua utilização, como instrumento de influência estratégica da defesa do seu regime, objectivo que se tornou particularmente importante depois de se tornar um dos últimos sobreviventes do desmoronamento do bloco comunista, de onde recebia protecção e ajuda. Para que o arsenal pudesse ter uma dimensão de dissuasão completa teria que dispor de “second strike capability”.
Vista a situação sob apenas esta perspectiva, dir-se-ia que as reacções internacionais à ameaça nuclear que a Coreia do Norte representa estão a sobrevalorizar os riscos. Porém, não é assim. Mais do que a maior ou menor capacidade da Coreia do Norte como potência nuclear, o que é especialmente relevante para a segurança mundial é o risco do caminho escolhido para a estabilidade regional e a contrariedade que representa para o combate à proliferação dos armamentos de destruição maciça, em especial num momento em que existe um melhor ambiente internacional para rever, de forma útil, no próximo ano, o Tratado de Não Proliferação.
Obviamente, um eventual sucesso na solução do problema coreano não garante um desfecho semelhante para o caso do Irão, mas um insucesso tornará muito mais difícil, senão impossível, resolver este último caso; pior, deixará instalar-se o pretexto (ou desculpa) para uma corrida regional aos armamentos, designadamente por parte do Japão que dificilmente se conformará em dispensar uma capacidade nuclear a partir do momento em que a Coreia do Norte a tiver de forma comprovada. A Coreia do Sul poderá, eventualmente, seguir o mesmo percurso. Aliás, ambos países dispõem de tecnologia avançada nessa área, em especial o Japão que faz enriquecimento de urânio.
Existe, em toda esta situação, um dilema que se põe directamente à China: se não força a Coreia do Norte a abandonar o programa nuclear, corre o risco de ter que enfrentar um risco de proliferação regional a que terá que responder num ambiente de maior instabilidade; se corta a ajuda que mantém o regime coreano, terá que lidar com o problema social do seu colapso, incluindo um enorme fluxo de refugiados a repartir-se com a Coreia do Sul.
Por quanto tempo vai a China continuar a tentar um caminho intermédio, depende da cooperação que conseguir de Kim Jong e do impacto que possa resultar da aplicação da Resolução que o Conselho de Segurança das Nações Unidas acaba de adoptar unanimemente. É uma das mais exigentes de sempre; exige o abandono do programa nuclear de uma forma verificável pela comunidade internacional, impõe um embargo ao comércio de armamentos, que apenas exclui o armamento ligeiro, e permite inspecções de navios mercantes suspeitos de envolvimento no comércio ilegal de armamentos ou material nuclear, proveniente ou destinado à Coreia do Norte.
A Coreia do Norte talvez espere que os EUA continuarão a avaliar a ameaça do seu arsenal nuclear como não suficiente para justificar o risco de um novo conflito na península coreana mas devia também ter presente que não foi a posse de um arsenal nuclear, aliás muito mais importante que o seu, que evitou o colapso da URSS; foi precisamente a corrida aos armamentos em que se deixou envolver sem ter base de sustentação económica.
Jornal Defesa