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REPORTAGEM || A natureza da guerra está a mudar e o campo de batalha na Ucrânia é um gigantesco laboratório cujas lições podem ser a diferença entre a vida e a morte. Longe da frente na Ucrânia, o exército português observa atentamente
Eles não sabiam, mas estavam a ser observados. À distância, um drone operado por uma equipa de militares portugueses estudava atentamente as posições do grupo armado que ocupa um conjunto de casas, no meio de um campo rodeado de árvores. "Dentro de momentos, aqueles arbustos vão começar a disparar", diz um oficial do exército português com um sorriso na cara, enquanto apontava para um amontado de árvores e arbustos ao lado do complexo de edifícios.
E não estava a mentir. O combate ainda não tinha começado, mas o lado inimigo já estava em desvantagem. Quando a tempestade de tiros chegou, foram completamente apanhados de surpresa. Poucos segundos depois, aproxima-se o drone que tudo vê e com ele chegam os reforços: dois blindados com os militares que vão "limpar" aqueles edifícios - um a um.
Operado por uma equipa de dois homens, que reportam diretamente ao comandante da unidade no terreno, o drone sobrevoa o terreno, passando de casa em casa, à procura de movimentos inimigos. Assim que o adversário é encontrado pelo drone, o alferes de infantaria Paulo Fernandes dá ordens precisas aos seus soldados sobre como se posicionar e por onde atacar o inimigo. Em poucos minutos, a missão está cumprida.
A máquina está bem oleada. Mas apesar da intensidade e do realismo, este foi apenas um exercício num ambiente controlado, feito por homens e mulheres que dentro de poucos meses vão estar destacados na Roménia. Ali, a poucas centenas de quilómetros da Ucrânia, vão confrontar-se com a sombra de um conflito que está a mudar drasticamente a forma como se combate — uma realidade que está a deixar o Exército em profundo "desassossego".
"Nós nunca estivemos tão perto da possibilidade de voltar a um combate convencional e isso tem de nos desassossegar. Temos de andar desassossegados e, efetivamente, andamos. Isto significa que treinar não basta, estamos a trazer outro grau de exigência ao exército", revela o brigadeiro-general José Freire, comandante da Brigada de Intervenção portuguesa.
Um campo de batalha hiper-letal
Manobras idênticas às treinadas pelo exército português desapareceram quase por completo do campo de batalha moderno, onde os drones e pequenos grupos móveis dominam. Na Ucrânia, após quase quatro anos de guerra, a utilização de blindados em manobras ofensivas caiu a pique, em parte porque uma grande fatia da reserva russa foi destruída, mas sobretudo porque os drones tornaram esse tipo de manobras autênticos suicídios programados. Estima-se que 70% das baixas na guerra da Ucrânia sejam provocadas por drones, de acordo com comandantes militares ucranianos.
O número de veículos aéreos não-tripulados de reconhecimento na linha da frente é tão numeroso que obter o elemento surpresa, outrora a chave para o sucesso de uma operação, tornou-se extremamente difícil. Assim que uma aglomeração de militares ou de equipamento é detetada, os drones "kamikaze" levantam voo em direção ao alvo, tudo numa questão de poucos minutos. Na Ucrânia, em muitos casos, os veículos blindados nem chegam a conseguir sair das imediações inimigas, acabando por ser imediatamente destruídos. Tudo na linha da frente passou a ser visível.
"O espaço de batalha tornou-se verdadeiramente transparente. Aquele espaço entre trincheiras com cerca de 15 quilómetros, a zona de ninguém, é permanentemente vigiado e é altamente difícil de atravessar sem ser atacado", explica o brigadeiro-general Freire.
Esta capacidade de detetar e atingir com precisão alvos de alto valor não é nova. As grandes potências como os Estados Unidos, China, Rússia e alguns países europeus tinham-na em forma de mísseis balísticos e nos satélites militares. A grande novidade na Ucrânia é que essa capacidade passou agora "aos mais baixos escalões", com um soldado na frente a ser capaz de dirigir uma carga explosiva contra um militar, uma viatura ou uma trincheira.
Neste cenário, os dois blindados Pandur do exército português seriam alvos prioritários do inimigo. A própria equipa do drone, que opera na tranquilidade do campo de treino sem ser vista, estaria ativamente a ser "caçada" por pilotos de drones inimigos. Para contrariar esta nova realidade, o exército criou vários protótipos de uma estrutura com rede que é colocada no topo dos blindados para evitar que os veículos sejam atingidos no seu principal ponto fraco, a parte de cima, aumentando a taxa de sobrevivência dos militares.
A arte esquecida de sobreviver
"O espaço de batalha está tão letal que primeiro temos de perceber como é que vamos sobreviver lá. Só depois é que vamos cumprir a missão de combater para vencer", admite o brigadeiro-general José Freire, comandante da Brigada de Intervenção.
Esta nova realidade está a obrigar o exército português a recuperar muito conhecimento que tinha sido "abandonado" após a queda da União Soviética, quando os países da NATO passaram a defender um modelo que contemplava o fim das "guerras convencionais". Durante esse período, os procedimentos militares foram adaptados para missões de paz "musculada" ou contra-insurgência, como no Afeganistão ou nos Balcãs
ma das primeiras medidas tomadas pelo exército foi o regresso de um conhecimento "ancestral" para os militares: a trincheira. Apesar de parecerem rudimentares no meio de um combate cada vez mais tecnológico, estas estruturas não só permitem aos militares defenderem-se dos bombardeamentos, como ajudam os militares a manter-se longe do olhar atento dos drones inimigos. Por isso, o exército tem reforçado de forma "mandatória" a capacidade de treino de várias unidades com base nas estruturas que existem na Ucrânia.
Outra capacidade "ancestral" que está a ser recuperada é a camuflagem, já que a capacidade de "desaparecer" aos olhos do inimigo é a diferença entre a vida e a morte. Não só os militares estão a ser treinados em como camuflar-se, como estão também a dar uma maior atenção à camuflagem das suas posições e do armamento no campo de batalha.
As condições criadas pela mortífera combinação de uma constante vigilância com os rápidos ataques de drones tornam a linha da frente um lugar extremamente hostil para os soldados. Isto significa que, caso seja ferido em combate, é cada vez mais difícil ir socorrê-lo sem ser detetado e atacado. Isto obriga os militares a sair em socorro apenas quando existem condições favoráveis, como dias de chuva e vento ou até mesmo durante a noite.
Esta é uma realidade que "preocupa imenso" o exército português, que já começou a implementar um exigente treino de primeiros socorros em combate aos militares que estão em aprontamento para missões no estrangeiro, no seu Centro de Saúde Militar, em Coimbra. "Não há condições no campo de batalha para evacuações militares. Por isso, o militar sozinho tem que ser capaz de se autopreservar se for gravemente ferido, porque todo o apoio que lhe chega é via rádio", reforça o brigadeiro-general.
Mudança de software
Algumas mudanças, como a integração de pequenos drones FPV (First Person View) de reconhecimento nas unidades mais pequenas, já foram implementadas com sucesso e os militares que se estão a preparar para ir para a Roménia são prova disso. "Nós já começámos a adaptar as nossas táticas de modo a colmatar essas novidades que surgem no campo de batalha. Usamos os drones a nosso favor e agora um comandante consegue ter uma maior compreensão situacional do que está a acontecer", explica o alferes Paulo Fernandes.
Mas outras mudanças são mais difíceis de colocar em marcha, até porque Portugal não partilha o mesmo sentimento de urgência que motiva a inovação ucraniana. O exército português, à semelhança de muitos dos seus aliados, ainda debate a melhor forma de implementar os drones kamikazes nas unidades mais pequenas. Para os líderes militares, ainda não é certo qual o melhor caminho a escolher: integrar os drones nos baixos escalões, onde os militares já são obrigados a utilizar outras plataformas e equipamentos ou criar unidades "puras de drones", como os militares ucranianos já estão a fazer.
"Como é que nos estamos a adaptar? Muito lentamente, muito lentamente. E isso é que às vezes é um pouco preocupante. A preocupação do exército neste momento é dotar os baixos escalões de drones. Mas ainda não percebemos se as unidades de drones vão ser o sistema de armas central numa unidade terrestre, como foram os carros de combate. Os processos têm de ser amadurecidos. Há tendências que depois não se provam", refere o general.
Longe vão os tempos em que a guerra eletrónica limitava-se a proteger os postos de comando, a garantir comunicações e a atacar as comunicações inimigas. Nos campos ucranianos, as capacidades eletrónicas fazem parte da "defesa imediata" do soldado. O exército garante estar atento para a necessidade de dar o salto no campo da guerra eletrónica, estudando formas de implementar medidas "ao mais baixo escalão", porque já não é possível conduzir operações "sem ter uma bolha eletrónica" que confira proteção electromagnética.
Mas a resposta mais radical à ameaça constante dos drones inimigos não é um novo equipamento, mas sim uma nova forma de estar no terreno: a dispersão. Para sobreviver debaixo do olhar sempre atento dos drones, as unidades militares estão agora obrigadas a espalhar-se por áreas cada vez mais vastas de terreno, em pequenas parelhas de soldados, que defendem posições que podem estar separadas por centenas de metros.
Esta nova forma de estar vira completamente do avesso a própria experiência de combate. A coesão da unidade, antes cimentada pela proximidade física e pela camaradagem, passa a depender de comunicações frágeis e de uma grande confiança individual. A linha da frente do campo de batalha, que já é um local de pressão sem precedentes, está agora a tornar-se ainda mais solitário.
É uma realidade que já começou a ser treinada no terreno, mas que ainda não foi totalmente interiorizada. Nós ainda estamos com distâncias muito convencionais. Nós europeus ainda não introduzimos com a urgência devida aquilo que já são realidades", alerta.
A arma mais importante
Mas esta "nova geometria" da guerra, que confina os militares ao isolamento e à dispersão, obriga a uma mudança inevitável da forma de comandar. O modelo de liderança mais centralizado e rígido, onde as ordens descem do topo e a iniciativa individual é desincentivada, pode tornar-se um autêntico desastre num campo de batalha que é cada vez mais fluído e que requer uma rápida adaptação.
Esta é uma filosofia que o exército português está à procura de aprofundar. Em vez de ditar cada passo, o comandante define a intenção e o objetivo final, entregando aos seus subordinados a liberdade e a responsabilidade de tomar decisões táticas no momento para o alcançar. É uma aposta na inteligência e na criatividade de quem está no terreno, uma necessidade absoluta quando o sargento ou o alferes no terreno têm mais informação sobre a situação imediata do que o quartel-general a quilómetros de distância.
sto representa uma revolução cultural que choca de frente com a imagem tradicional do militar que apenas cumpre ordens. Nas palavras do Brigadeiro-General Freire, a mudança é total: "Antigamente dizia-se: o soldado não pensa. Não, hoje o soldado tem que pensar. E é bom que ele nos ajude com as ideias dele". Para isso, o exército está a recorrer aos chamados war games, ou Tabletop Simulation, exercícios onde dois oficiais se defrontam para encontrar as melhores soluções num determinado cenário de guerra, estimulando a criatividade e a decisão sob pressão.
No final, o "desassossego" que percorre o Exército não se resolve apenas com a compra de novo material ou com a reintrodução de táticas esquecidas. A lição mais profunda da Ucrânia é humana. A verdadeira transformação acontece na mente dos comandantes e na confiança depositada em cada militar. A guerra do futuro, travada em campos de batalha transparentes e solitários, será vencida não pela máquina mais perfeita, mas pelo soldado que melhor souber pensar.