Tendências das componentes terrestres das Forças Armadas
Miguel Moreira Freire
O empenhamento operacional em Teatros de Operações exteriores aos territórios nacionais nos quais se realiza uma mescla de operações militares que incluem operações de combate, estabilização e ajuda humanitária (three block war) tem consumido os recursos humanos e financeiros dos exércitos da Europa Ocidental.
Este empenhamento, acumulado com a introdução de novas tendências tecnológicas, tem demonstrado ao poder político e às chefias militares a necessidade de reequacionar orgânicas, missões, instrução, doutrina, equipamentos e tecnologia ao serviço nas Forças Armadas. O esforço sistémico, nem sempre conseguido, de compreender e encarar todo este conjunto tem sido apelidado com o jargão de “transformação”, no fundo não é mais do que o epílogo do longo processo de debate político, académico e científico que caracterizou a “revolução nos assuntos militares” (RAM) da década de noventa do século XX.
Se nos Estados Unidos da América a RAM se iniciou quase por uma imposição tecnológica, na Europa, existiram outras envolventes de natureza política, económica e social que ditaram as directrizes dessa evolução (o “r” de revolução ainda não chegou, se é que chegará, ou mesmo se é preciso que chegue). Esta evolução materializou-se num conjunto de mudanças levadas a cabo pelos exércitos europeus: abandonar a conscrição e adoptar exércitos profissionais ou semi-profissionais; substituir a mobilização das forças pela sua prontidão; consciencializarem-se de que a segurança não é feita pela defesa directa do território mas sim na defesa de interesses além‑fronteiras (na ideia de uma vizinhança segura e pacificada).
As Forças Armadas destes países, mas principalmente as suas componentes terrestres, tiveram por isso de abandonar a ideia de territorialidade das suas forças e apetrecharem-se para serem facilmente projectáveis, ou seja, participarem no esforço expedicionário que caracteriza actualmente as operações militares.
O contributo das componentes terrestres no esforço conjunto da transformação tem sido no sentido de se tornarem mais facilmente projectáveis, sem contudo, uma vez no Teatro de Operações, perderem as suas características primárias e que as tornam únicas: ocupar o terreno e interagir com a população, deter poder de fogo, protecção e mobilidade táctica para cumprir a missão.
Na prática, o esforço de transformação tem-se caracterizado pela edificação de forças médias, ao mesmo tempo que se protege melhor as forças ligeiras (pela introdução de viaturas blindadas) e se aligeira as forças pesadas. Ou seja, permitir que os exércitos detenham capacidades no domínio das forças ligeiras, médias e pesadas. Esta caracterização de forças é consequência directa do crescente “peso” em blindagem (logo em protecção) e poder de fogo e, naturalmente inversa, à capacidade de ser projectada estrategicamente para onde for preciso. As primeiras tendem a ser conotadas com unidades maioritariamente de infantaria ligeira, as segundas com unidades equipadas com viaturas blindadas ligeiras (de rodas ou lagartas) com protecção relativa contra fogo de armas ligeiras, as últimas conotadas com viaturas fortemente blindadas e com poderosas armas de fogo, das quais o Carro de Combate é a imagem de marca.
A tipologia adoptada pretende somente dar uma ideia relativa da sua projectabilidade estratégica bem como do seu grau de protecção e poder de fogo no Teatro de Operações. No entanto, e ao contrário do que se possa deduzir, não existe nenhuma relação directa entre o tipo de forças e a intensidade e perigosidade do local onde operam, porquanto todas têm o seu papel a desempenhar. Mesmo num teatro de operações de alta intensidade como foi a guerra do Golfo em 1991 ou em 2003, a infantaria ligeira ou unidades com viaturas blindadas ligeiras tiveram um papel insubstituível – importante é compreender a Missão, o Inimigo, o Terreno, os Meios, o Tempo disponível e as necessárias considerações de natureza civil.
O exército português está também num esforço de transformação, que teve como um dos mais recentes marcos, a aprovação da nova Lei Orgânica do Exército (Dec-Lei61/2006, de 21 de Março, Lei Orgânica do Exército).
Como central à concepção do exército ficam três capacidades: Reacção Rápida, Intervenção e Mecanizada, que correspondem, respectivamente, à tipologia das forças ligeiras, médias e pesadas e que ficam materializadas em três unidades de escalão brigada: “Brigada de Reacção Rápida”, “Brigada de Intervenção” e a “Brigada Mecanizada”.
Um dos aspectos mais marcantes, é pois, a criação da capacidade de intervenção, materializada na “Brigada de Intervenção” que sucede à “Brigada Ligeira de Intervenção”, ou seja, em termos práticos, trata-se de equipar esta brigada com mobilidade táctica blindada e com poder de fogo acrescido. A aquisição das viaturas blindadas do tipo 8x8 inserida na Lei de Programação Militar recentemente aprovada materializa esta intenção que se estende também ao Corpo de Fuzileiros da Marinha Portuguesa. Assim, o Exército Português e os Fuzileiros da Marinha Portuguesa no particular do programa de aquisição de viaturas blindadas reflectem a tendência verificada em praticamente todos os exércitos dos países que pertencem à NATO.
O que constitui ponto de divergência entre os Estados-membros da Aliança Atlântica e que é consequência directa das suas posturas estratégicas nacionais (no sentido puro e duro – usar a coacção militar para impor a vontade a terceiros) é a dimensão atribuída a cada um dos tipos de força. Por exemplo, os Italianos pretendem, em 2015, ter uma proporção equitativa dos três tipos de forças com uma tendência de longo prazo para incrementar o número de forças médias para 60% do total, à custa da diminuição proporcional das forças ligeiras e pesadas. Por outro lado, os Franceses pretendem ter 50% de forças médias e o resto, equitativamente distribuído por forças ligeiras e pesadas.
A opção nacional foi de ter no exército uma distribuição equitativa dos três tipos de forças que operacionalizou em três unidades de escalão brigada. Contudo, dada a especificidade geoestratégica de Portugal decorrente da sua centralidade transatlântica e das suas ligações a África, cada vez mais uma “vantagem competitiva” a explorar pelas grandes potências, nomeadamente os Estados Unidos da América, importa começar já a pensar se no médio prazo não deverão ocorrer ajustes que apontem para mais forças ligeiras e médias, ou a conversão de pesadas em ligeiras.
Um outro aspecto que é importante e que tem sido recorrente no debate académico dentro das instituições militares e das comunidades mais abrangentes que se debruçam nos domínios da segurança e defesa, é a necessidade de uma abordagem holística neste esforço. A transformação não se esgota com a aquisição de viaturas blindadas é preciso também agilizar processos decisórios a nível político mas também assumir uma atitude expedicionária nos homens e mulheres que integram as unidades. Com o mesmo rigor com que se pensou a aquisição destas plataformas é preciso reequacionar a doutrina que lhes permite o seu emprego táctico coerente, a instrução dos militares e dos quadros e o treino e instrução das unidades.
Quando se compra um computador gostamos que hardware e software sejam compatíveis para rentabilizar a máquina e nos podermos aventurar na concretização de ambições. Nada vale termos um computador muito bom se o sistema operativo está desactualizado e emperra o funcionamento da máquina não nos convidando a sair das tarefas rotineiras de um processador de texto ou a abrir os manuais técnicos do software em uso. O desafio da transformação na defesa é também um pouco assim.
fonte:
http://www.jornaldefesa.com.pt/opiniao_v.asp?id=370