Somália: um quebra-cabeças para a construção de uma nova ordem mundial no século XXI - Parte I
Carlos Manuel Valentim, Miguel Monteiro de Barros e Pedro Barge Cunha
Somália - uma caracterização geral
Introdução
A Somália é um Estado colapsado, mas nem sempre assim foi. Este trabalho analisa o processo que levou a que tal acontecesse: qual o momento chave em que se pode afirmar que houve um antes e um depois, quais os factores que terão estado na desagregação do Estado e que o impedem de se recompor.
Não há respostas fáceis. Sendo a História um processo contínuo, muitas das raízes dos problemas são profundas e obrigam a recuar no tempo para se poder entender como se desenrolaram todos os processos e porque evoluíram de uma determinada maneira e não de outra. Aparentemente, a Somália teria as condições necessárias para possuir um Estado estável e para constituir uma nação. Repare-se: possui uma base etno-linguística homogénea, não existem minorias significativas, os seus habitantes partilham uma cultura comum, africano-árabe e muçulmana. Mas, na realidade é um país sem coesão, profundamente dividido em linhagens de clãs e sub-clãs, cujos líderes competem entre si pelos recursos disponíveis; retalhado em diversas regiões, na prática independentes entre si. É um Estado-Nação que existe apenas nos mapas.
Sem problematizarmos aqui a questão - o que se forma primeiro, o Estado ou a Nação, quando analisamos este país, inferimos de que possui muitos dos requisitos que, pelo menos na perspectiva dos pensadores ocidentais, estão na base da constituição das nações. Então porque não existem na Somália, Estado e Nação? Uma das razões, porventura a mais forte, será o facto de, nesta zona do mundo, de fronteira entre o Saara e a África verde, as populações, por via das condições climáticas adversas serem, tradicionalmente, semi-nómadas e criadoras de gado. Este estilo de vida potencia a manutenção de estruturas tribais, em que os laços de sangue têm primazia sobre quaisquer outros. Torna-se, pois, difícil incorporar valores como os de bem comum (num sentido mais alargado, “nacional”), já que esses valores, apesar de existirem, vivem confinados ao grupo humano com o qual se partilha o sangue.
Por outro lado, não podemos ocultar o papel e as imposições do colonialismo europeu que se aproveita das divisões da sociedade somali. Toda esta região vai sofrer as vagas de vários colonialismos: inglês, francês, alemão, italiano, em pouco mais de um século. A essas formas de domínio convém-lhes a ver representada a sociedade somali dividida em clãs, o que é muito cómodo para invasor, pois tem em vista a dominação e o controlo social. Em suma, aplica-se aqui a velha máxima de “dividir para reinar”.
Assim, e apesar de um Estado somali ter existido de forma mais ou menos funcional desde a independência até à queda de Siad Barre em 1991, a verdade é que, também esse Estado carregava no seu interior estas características, mascaradas então pela contingências da Guerra-Fria.
Quando analisamos fenómenos mais recentes, que colocaram a Somália no centro das atenções mundiais, como é o caso da pirataria, constatamos que, também aí, estas características culturais continuam bem vincadas – a estrutura organizativa dos grupos de piratas insere-se numa lógica tribal, e esta lógica impede (e vai continuar a impedir) que o Estado se recomponha. A sublinhar esta realidade temos o exemplo da Puntlândia, onde uma “espécie” de Proto-Estado, controlado por um dos clãs aí maioritários, que se dedica à pirataria, conseguiu estabelecer uma certa ordem, coisa que o governo “central” em Mogadíscio não consegue!
Para ultrapassar esta situação não há respostas fáceis ou rápidas. Só o desenvolvimento económico conseguirá quebrar esta lógica tribal e alargar as redes de solidariedade e de sentimento de pertença a outros grupos que não apenas os que se baseiam nos laços de sangue. Tal levará anos e, se esse desenvolvimento económico não for sustentado em actividades produtivas geradoras de mudanças não apenas económicas mas também mentais, assistiremos, provavelmente, à criação de mais um Estado petrolífero, onde as questões tribais não desaparecerão, estarão apenas mascaradas pelo poder do dinheiro.
1. Caracterização geográfica
637.657 km quadrados, 2.800 km de costa, bordejada por recifes de coral. A oeste, limitada pelos planaltos etiópicos de Haud e de Ogaden, que penetram em território somali. Excluindo as montanhas a norte, com uma altitude máxima de 2660 metros, o país é constituído por um vasto planalto semi-árido, inclinado na direcção do oceano Índico. Possui dois rios com algum significado, ambos originários dos planaltos da Etiópia (o Juba e o Shebelle). Nas margens destes rios encontra-se a única vegetação permanente do país. Considerando a importância que a água assume numa região semi-árida, esta geográfica física torna ainda mais delicadas as relações entre os dois países, colocando a Somália numa situação de dependência relativamente ao país fronteiriço com o qual, historicamente, possui mais diferendos.
Clima – duas estações: a monção de Novembro traz com ela um vento quente e poeirento de nordeste. A monção de Junho traz a frescura do sudoeste. Os máximos de calor e humidade situam-se nos períodos de acalmia do Tangambili (“entre dois ventos” em swahili).
Grandes centros urbanos: Mogadíscio, Chisimaio, Merca, Hargeisa, Berbera.
2. População
Maioritariamente de origem Cuchitica e muçulmana. Aparentada, do ponto de vista étnico e linguístico com outros ocupantes do Corno de África (na sua maioria residentes na Etiópia). A população é homogénea ao nível étnico, religioso e cultural: eis uma excepção na África pós-colonial. Coexistem diversos dialectos. Esta homogeneidade é, todavia, enganadora, pois encontra-se fracturada pelo tribalismo. Cerca de 70% dos habitantes dedica-se à pastorícia de carácter nómada. Os rendimentos são precários, o que não surpreende ao verificarmos as condições climáticas prevalecentes.
Segundo a lenda, os somalis descenderiam de dois nobres árabes, aparentados com o profeta Maomé, e que teriam originado os 6 clãs ou tribos (Darod, Isaq, Dir, Hawiye, Rahanwein e Digil) que constituem a população somali. É a pertença ao clã que continua a definir, em grande parte, o indivíduo somali e a sua importância social e política. Há uma forte clivagem entre os dois sexos, típica de sociedades nómadas ou semi-nómadas. Há tarefas que os homens consideram indignas, como a agricultura, a caça, e quase todas as ocupações manuais. Tradicionalmente, as suas ocupações eram (e permanecem) a guerra, cuidar dos camelos, estudar religião e a poesia. As mulheres dedicam-se às tarefas “domésticas” (montagem e desmontagem das tendas, cuidar do gado ovino e caprino, etc.). As ocupações manuais eram (são) levadas a cabo por grupos étnicos distintos (geralmente bantos) da população maioritária. Os camelos são símbolo de riqueza, forma de pagamento de uma esposa ou de compensação pelo assassinato de um membro de um outro clã. Para além da sua importância como sinais de posicionamento social, possuem alguma importância económica – produzem carne e leite mas nunca são montados, excepto por doentes ou feridos.
3. Contexto histórico
3.1. Esboço
A Somália, situada num cruzamento de influências entre a África negra e o mundo muçulmano, possui um carácter que se pode denominar árabe por via da religião, dos laços culturais e comerciais. Simultaneamente, a sua geografia física e humana, a recente história colonial e certas características económicas (a preponderância da pastorícia e de uma agricultura de subsistência), ligam-na à África negra. Esta filiação dupla originou uma cultura própria, que gera conflitos com os seus vizinhos (Etiópia e Quénia), por causa das populações somalis muçulmanas que vivem nestes dois países.
No caso da Etiópia, esse conflito assumiu características militares, no caso do Quénia, os diferendos foram resolvidos na vertente negocial. Se a relação conflituosa que a Somália mantém com outras potências da zona se deve ao facto de ser um país de fronteira entre religiões e civilizações – a cristã, a muçulmana e a africana, já os conflitos internos têm raízes geo-históricas – referimo-nos aqui à já mencionada falta de água, da qual dependem as pastagens, essenciais na economia somali. Esta situação é agravada pela pulverização da população em clãs ou tribos, o que dificulta a percepção de pertença a uma nação, cujos objectivos comuns não são considerados importantes para uma significativa parte dos somalis. A base de sustentação da lealdade continua a ser os laços de sangue e não a “nacionalidade”, conceito importado tardiamente do Ocidente.
A situação acima descrita ajuda a entender a participação de populações somalis na pirataria no Corno de África, questão por nós desenvolvida mais adiante.
3.2. Da Idade Média ao período colonial
Verificou-se uma constante expansão somali na direcção sul e oeste, à custa da Etiópia e dos povos bantos e galla. Os primeiros foram reduzidos à escravatura até à abolição desta, mas são, socialmente, considerados uma casta inferior, muito devido ao facto de se dedicarem à agricultura. Os galla foram, em grande parte, assimilados. Ao mesmo tempo que esta expansão interior ocorria, mercadores árabes e persas instalavam-se nas zonas costeiras, fundando as cidades de Mogadíscio, Zeila, Berbera, Merca e Brava, criando um lucrativo comércio entre as costas somalis e a península arábica e fortalecendo os laços religiosos com o mundo islâmico. No século XVI as costas somalis foram atacadas diversas vezes pelos portugueses. Aliás, dado o fracasso na conquista do Aden, em 1513, por forças lideradas por Afonso de Albuquerque – o objectivo era controlar as entradas e saídas do Mar Vermelho – Portugal estabelece um ponto de vigilância nas ilhas de Socotorá, no Golfo de Aden. No século XVII tornaram-se domínios do imã de Mascate.
No século XIX a Somália foi partilhada – no norte instalou-se o poder egípcio e, no sul, estabeleceu-se o poder do sultão de Zanzibar. No século XIX, após a abertura do canal do Suez, a França e a Inglaterra instalaram aí protectorados e a Itália uma colónia. Quando estas conquistas ocorreram, o imperador da Etiópia (Menelik II) estendeu as fronteiras etíopes, invocando a segurança do seu território. Os tratados estabelecidos nesta época determinaram, após a II Guerra Mundial, a concessão de Ogaden e de Haud à Etiópia, apesar dos protestos somalis.
No fim da II Guerra Mundial, a Assembleia Geral da ONU decidiu que a Itália continuaria a administrar a Somália, durante dez anos, e até à independência, em conjunto com um Conselho Consultivo (composto pela Colômbia, pelo Egipto e pelas Filipinas). Em 1960 a Inglaterra concedeu a independência ao seu protectorado. O Estado da Somalilândia durou cinco dias, quando se deu a união, previamente acordada, com a antiga colónia italiana (denominada Somália do Sul), surgindo, a 1 de Julho de 1960, a República da Somália, com um regime parlamentar, pluripartidário e com sufrágio universal. Nos cinco anos a seguir à II Guerra Mundial, com o auxílio das Nações Unidas, procedeu-se à fusão dos dois estados e das respectivas administrações (de influência inglesa e italiana). A questão da escrita (que não existia para a língua somali), originou conflitos. Até 1972, ano em que se adoptaram a escrita latina e o somali como língua oficial, os documentos oficiais eram redigidos em inglês, árabe e italiano.
3.3. O período pós-independência
No período compreendido entre a independência e 1969 tiveram lugar três eleições gerais. Desde o início do novo sistema que a formação dos partidos esteve ligada a ambições tribais, regionais e pessoais, o que originou várias lutas pelo poder, colocando-se desde o início a questão de se, apesar da unidade étnica, religiosa e cultural, a Somália pode ser considerada uma verdadeira nação.
Nestes dez anos a Somália integrou-se em algumas das organizações pan-africanas, nomeadamente na convenção de Yaoundé (mercado comum criado entre 19 países).
3.4. A Guerra-Fria
Durante a Guerra Fria, a posição estratégica do Corno de África tornou-o um lugar de conflito entre as duas superpotências. Em 1969, após um golpe de Estado com características tribais, o país adoptou o socialismo como forma de governo, estreitando os laços económicos e militares com o bloco de Leste. O novo presidente, Siyad Barre, propunha, no seu programa de governo, combater o tribalismo, o analfabetismo, o nepotismo e a corrupção e assegurar a democracia e a justiça, no fundo criar as bases de uma nação e de um Estado. A República da Somália passou a designar-se República Democrática da Somália. Seguiram-se as nacionalizações, incluindo das propriedades agrícolas. Tratava-se de um regime comunista de características especiais, já que nunca se pôs a questão de laicizar o Estado, que permaneceu muito ligado ao Islão, de resto como aconteceu noutros regimes de tendências marxistas instalados em países muçulmanos.
Em 1977 as relações com a URSS esfriaram, quando esta última apoiou o regime (também comunista) de Addis Abeba, contra a tentativa somali de anexação do planalto de Ogaden (o exército somali chega a ameaçar a cidade de Addis Abeba). A URSS e Cuba enviam homens e armas para a Etiópia a partir de Aden. A Somália aceita então uma substancial ajuda financeira saudita, que exigia, como contrapartida, uma ruptura completa dos laços com a URSS. A verdade é que esta ajuda (que incluiu ainda alguma ajuda ocidental, iraquiana e persa), se revelou mais limitada que o esperado, comparativamente à ajuda fornecida pela URSS e por Cuba ao regime de Addis Abeba. A ajuda ocidental foi dúbia – por um lado apoiou a Somália com a garantia de que protegeriam as suas fronteiras em caso de um ataque etíope-soviético. Por outro, para não hostilizar a OUA, os países europeus e os EUA criticavam oficialmente a Somália e a sua agressão à soberania etíope.
3.5. A Aproximação ao Ocidente
Após esta ruptura, a Somália aproximou-se do Ocidente (enquanto Adis Abeba permaneceu próxima da URSS), e a sua pertença à Liga Árabe levou-a a aproximar-se dos estados árabes moderados. Os somalis perderam esta guerra, tendo a derrota, como consequência imediata, um golpe de Estado fomentado pelos militares em Abril de 1979. Foram convocadas eleições. Nada de estrutural mudou porque o presidente continuou a ser o chefe incontestado (juntamente com o seu clã, dominavam a vida política somali).
4. O Tempo Presente
4.1. A crise económica e social
A guerra de Ogaden, o afluxo de refugiados somalis após este conflito e uma seca sem precedentes originaram uma crise económica grave, fazendo com que o país não consiga sobreviver sem ajuda exterior. A partir de 1978 a Somália foi palco de várias tentativas de golpes de Estado, fazendo com que o regime apenas sobreviva graças a forças policiais que protegem o seu “núcleo duro”. Verificou-se um recrudescimento da oposição desde o bombardeamento efectuado por forças governamentais em Hargeisa (Junho de 1988). Em 1990 a capital sublevou-se contra o presidente Siad Barre. De Novembro de 1991 a Março de 1992 verificaram-se confrontos violentos entre os apoiantes do presidente e os seus opositores. Quando o exército somali, apoiante do presidente deposto foi desmantelado, em Janeiro de 1991, foram abandonadas cerca de 40.000 armas: uma poderosa “matéria-prima” para os conflitos futuros.
Nesta altura, a ONU interveio de novo no país por causa de uma violenta seca. Uma operação militar-humanitária de enorme envergadura, denominada Restauração da Esperança, dirigida pelos EUA, foi efectuada para tentar minorar esta situação catastrófica. Apesar de a operação ter conseguido travar a fome, não propôs nenhuma estratégia política de regulação do conflito. As fraquezas e hesitações dos responsáveis pela operação, aliadas à situação política caótica, culminaram no assassinato de centenas de somalis, de cerca de 20 soldados americanos e de capacetes azuis da ONU. Os EUA abandonaram a Somália, colocando as Nações Unidas numa situação insustentável. Quando esta missão terminou, em 1994, foi considerada como tendo sido um dos maiores fracassos de manutenção da paz da ONU.
Em Maio de 1991, a Somalilândia declarou a secessão, criando-se um novo Estado na zona. A situação de enorme instabilidade política e social manteve-se.
4.2. Que desenvolvimento?
Esforço de guerra, seca, afluxo de refugiados da guerra de Ogaden e erros de gestão, contribuíram para a actual situação etíope, cujo PIB per capita é um dos mais baixos do mundo. A população cresceu a um ritmo considerável (3,5 milhões em 1975, contra mais de 7,5 milhões em 2001, aos quais se acrescentaram 1,5 milhões de refugiados), sendo que a produção, em todos os sectores, ou baixou ou estagnou. Logo após a independência verificou-se algum progresso, em grande parte sustentado pela ajuda internacional, tendo sido construídas diversas infraestruturas, nomeadamente estradas, portos, escolas e hospitais.
A tomada do poder pelo exército, em 1969, levou à adopção de uma economia de tipo socialista, pouco eficiente, que privilegiou o sector estatal. As secas periódicas constituem um problema estrutural, que a Somália espera ver resolvido em breve, com a construção da barragem de Bardera, no rio Juba, destinada a produzir electricidade e para irrigação de cerca de 200.000 hectares de solo (o Banco Mundial opõe-se à sua construção, devido aos custos elevados, mas espera-se que a obra seja realizada por um consórcio euro-árabe).
A questão do desenvolvimento económico da Somália passa também pelo facto de uma parte substancial da sua população ser nómada, sendo estes grupos humanos particularmente afectados pelas secas. Esta forma de vida dificulta, também, a aplicação das ajudas no terreno. Daí que, após as secas de 1974-1976, o governo tenha promovido a sedentarização através da criação de cooperativas de agricultores e de pescadores no sul do país. Estas cooperativas, após um sucesso inicial, esbarraram na falta de meios financeiros. A falta de capitais é, de resto, um dos principais entraves ao desenvolvimento económico do país. A dívida externa é enorme, tendo obrigado o país a pedir reescalonamentos da dívida em 1985 e 1987, e a aceitar as medidas draconianas de contenção da despesa impostas pelo FMI.
II. Reconstruir a Somália - uma tarefa hercúlea
1. Tentativas de reconciliação
A partir da queda do general Siad Barre, em 1991, a Somália passou a ser um Estado colapsado. Desde então, as tentativas para reconstruir um Estado fiável falharam. As pressões criadas pelos constantes conflitos tribais, e a interferência estrangeira, nomeadamente da Etiópia e da Eritreia, justificam a falência das tentativas.
Em Maio de 1991, a Somalilândia (noroeste da Somália) declarou-se independente e, em 1998, a Puntlândia tornou-se autónoma. O sul somali manteve-se dividido por influências tribais e religiosas. Desta forma, e de como resto já verificámos, a Somália é um “país” fragmentado.
A guerra civil verificada nos anos 90 provocou uma grave crise humanitária, levando à intervenção das Nações Unidas e, particularmente, dos EUA. Em 1995, verificou-se a retirada das tropas estrangeiras “com a sua missão por cumprir”.
Em Arta, Djibuti, teve lugar uma conferência de reconciliação, onde ficou estabelecido o Transitional National Government (TNG), em Agosto de 2000. O TNG não conseguiu exercer autoridade para além da capital, Mogadíscio, direccionando a sua atenção para a procura de reconhecimento e apoio internacional, deixando para segundo plano a procura de apoio intra-fronteiriço.
Neste contexto, a pedido do Egipto e de Djibuti, a Liga Árabe apoiou o TNG. A Etiópia, alarmada com as ligações do TNG a militantes islâmicos, tornou-se hostil e apoiou o Somali Restoration and Reconciliation Council (SRRC) – coligação rival do TNG.
O dinamismo político definia-se pela polarização entre o TNG e o SRRC. A Etiópia era a força que apoiava o SRRC, providenciando material militar e apoio logístico, embora a uma escala menor, quando comparado com o apoio dado pelos Estados árabes ao TNG. Estes Estados, ao fornecerem armas e munições estavam a violar o embargo de longa data estabelecido pelas Nações Unidas.
Assim sendo, a conferência de Arta falhou na tentativa de formar um governo funcional na Somália. Em Janeiro de 2002, numa cimeira da Inter-Governmental Authority on Development (IGAD) em Cartum, no Sudão, verificou-se a necessidade de uma nova conferência de paz para a Somália. Com a Etiópia e o Djibuti a apoiar diferentes facções somalis, coube ao Quénia dirigir as conversações.
A escolha foi Eldoret. A conferência iniciou-se a 15 de Outubro de 2002, tendo, duas semanas depois, atingido um dos seus principais objectivos – a assinatura, a 27 de Outubro, da Declaration on Cessation of Hostilities and the Structures and Principles of the Somali National Reconciliation Process. Do conteúdo da declaração constava o cessar das hostilidades; um acordo estabelecido numa nova carta federal ou constituição; a criação de estruturas abrangentes, representativas e descentralizadas de governo federal, aceitáveis para todos os partidos; a implementação do embargo de armas da ONU; o combate ao terrorismo; o convite à comunidade internacional para monitorizar a implementação dos acordos; o garante da segurança dos responsáveis pela ajuda humanitária.
Apesar da conferência parecer promissora, o resultado não foi o que se esperava. Dias depois da assinatura da declaração, irromperam combates em Mogadíscio entre facções rivais. Todavia, o problema central da conferência foi a falta de concordância entre os países do IGAD. “Os estados do IGAD estão divididos. Se eles não se conseguem reconciliar entre si, não conseguirão reconciliar outros,” afirmou Hassan Abshir, primeiro-ministro do TNG em funções durante a conferência.
Os diplomatas ocidentais presentes em Eldoret afirmaram que a Etiópia e o Egipto (este não faz parte do IGAD) deram a entender que estavam preparados para novos combates caso as conversações falhassem. Segundo Abdirizak Hussein, antigo primeiro-ministro – “Esta conferência está a ser manipulada por interesses externos. O sentimento geral é que a conferência está a ser completamente dominada pela Etiópia”.
A 2 de Dezembro de 2002, foi assinada uma declaração, pelas diversas facções de Mogadíscio (incluindo o TNG), que previa o cessar das hostilidades e a junção de forças no sentido de restabelecer a segurança na capital. No entanto, esta declaração assemelhou-se mais a uma coligação anti-Etiópia do que a um genuíno acordo de paz. Mesmo após estas conversações, a Somália continuava volátil e fragmentada.
Em 2004, com o objectivo de reconciliar o SRRC e o TNG, foram lançadas conversações, lideradas pelo IGAD, no Quénia. Addis Abeba, entre 2001 e 2004, ofereceu apoio político e militar ao SRRC no sentido de enfraquecer, ou mesmo substituir, o TNG. A influência da Etiópia no IGAD foi fundamental para a criação do novo governo, o Transitional Federal Government (TFG) – que vigora actualmente, e é a autoridade estatal reconhecida internacionalmente.
2. Missões na Somália - da teoria à prática
2.1 Conceito teórico
O conceito de peacebuilding não é muito preciso, apresentando diferentes concepções, que variam consoante a perspectiva dos autores. Baseando-nos na abordagem do extinto Instituto de Altos Estudos Militares, peacebuilding é “o conjunto de medidas levadas a cabo no seguimento da resolução de um conflito, destinadas a identificar e fortalecer estruturas adequadas ao reforço e consolidação do processo político, a fim de evitar o retorno das hostilidades. Assume a forma de projectos de cooperação, que contribuam para o desenvolvimento económico e social e para aumentar a confiança, sendo elemento fundamental para a preservação da paz e podendo requerer, quer o envolvimento civil, quer o militar”.
O conceito de peacebuilding alberga um conjunto de medidas que correspondem ao processo de reconstrução de Estados. Estas medidas incluem, segundo Boutros-Ghali, “desarmamento, a restauração da ordem, a destruição de armamento, repatriamento de refugiados, treino das forças de segurança, monitorização de eleições, protecção dos direitos humanos, a reforma das instituições e a promoção da participação política (…) a reconstrução das instituições e das infra-estruturas das nações devastadas por conflitos”. A reconstrução de Estados tem assim dois objectivos subjacentes: o fim da violência armada e a satisfação das necessidades básicas da população.
Podemos analisar o conceito segundo a óptica do seu objectivo, meios, dimensão temporal, actores e organização. Desta forma, e segundo Haugerudbraaten, identificamos duas concepções:
Concepção 1:
a. Objectivo: Promover a boa governação e os mecanismos de resolução dos conflitos.
b. Meios: Essencialmente intervenção política
c. Tempo: Curto prazo
d. Actores: Comunidade Internacional
e. Organização: centralizada nas NU, maior ênfase na coordenação do que na diversidade.
Concepção 2:
a. Dedicada às raízes profundas dos conflitos
b. Intervenção mais abrangente nas esferas política, económica, de segurança e humanitária.
c. Longo prazo.
d. Actores nacionais.
e. Participação de vários actores, maior ênfase na diversidade do que na coordenação.
(Fonte: José Amaral Lopes, «A reconstrução de estados em África. A CPLP e a sua capacidade de intervenção no domínio do “statebuilding”. Desafios e oportunidades para Portugal».)
Jornal Defesa