Antes de mais, desejo enviar uma saudação calorosa a todos os visitantes deste fórum, aos conhecedores e interessados nas questões militares e àqueles que, por uma razão ou outra, aos modos castrenses se sintam ligados. Passo a apresentar-me: o meu nome é João Luiz Mendes Paulo, major, arma de Cavalaria, nascido em 1932 e passado à reserva em 1971. Completei o ensino secundário no Colégio Militar e cursei na Escola do Exército (hoje Academia Militar). Fui mobilizado para Goa em 1958 (onde estive até 1961, em Valpoy, no 1º pelotão do Pel/Rec 4, com sede em Bicholim) e depois para a Zambézia, Moçambique, com o Batalhão de Cavalaria 571 (63-66). No seguimento da vida militar (as Forças Armadas combatiam então em três frentes de guerra em África), embarquei para Angola com o Batalhão de Cavalaria 1927 (destino final e base da unidade: Nambuangongo). Em 1970 fui de novo mobilizado, desta vez para a Guiné, como Oficial de Operações do Batalhão de Cavalaria 2922 (seria a minha 4º comissão, a terceira em cenário de guerra).
O motivo que aqui me traz é simples. Um amigo indicou-me este fórum e chamou a minha atenção sobre um assunto que me é particularmente caro: a acção dos carros de combate M5A1 do exército português no Norte de Angola, em finais dos anos sessenta. Num dos temas em discussão (creio que sob o título «Aquisição de novas viaturas para o Exército»), a certa altura, um dos participantes afirmou qualquer coisa como «toda a gente sabe que os carros de combate em Angola só serviam para as fotografias...». Sei, por conhecimento e experiência própria, que esta afirmação não corresponde à verdade. Ao interveniente em questão (a quem, desde já, envio um abraço), diria que muitas das acções do exército português e dos seus soldados permanecem ainda desconhecidas - responsabilidade e culpa que, como português e oficial do Exército, será também minha. E essa é mais uma razão para intervir neste fórum.
Os carros de combate M5A1 foram levados para Angola como consequência das ideias e argumentação de um jovem oficial do exército. Esse oficial, entre as comissões em terras de além-mar, tinha sido instrutor de Instrução Táctica de Cavalaria na Academia Militar (anos de 63 e 67). O principal meio de ensino de então era o carro de combate M5A1 e - acreditou esse oficial - as características do carro pareciam indicadas para o seu uso na guerra em África. A saber: o M5A1 possuía uma torre e peça em posição elevada (sendo obsoleto para a guerra «convencional», teria vantagem nas picadas rodeadas de capim); o carro era extremamente fiável do ponto de vista da mecânica, com provas dadas quer no deserto do Norte de África, quer nos Invernos rigorosos da Alemanha; como carro de combate, com as suas lagartas, blindagem e armas (uma peça de 3.7 e três metralhadoras Browning - nunca encravavam, desde que bem tratadas) o M5A1 podia ripostar imediatamente sob fogo numa situação de emboscada e até avançar sobre o inimigo mato adentro, protegendo a coluna e os nossos soldados; o carro era ágil, muito fácil de conduzir e extremamente rápido (80 km/h, provavelmente o mais rápido tanque de guerra na época); finalmente, e como razão determinante, existiam dezenas de carros de combate M5A1 arrumados para a sucata no Depósito de Material de Guerra em Beirolas... Bastava escolher os melhores, treinar as tripulações e passar da teoria à prática.
Esta era a ideia e, como devem ter percebido, o jovem oficial de então é o autor destas linhas. Recordo bem todas as cartas, relatórios e memorandos que enviei ao Comando, e os esforços que fiz no sentido de levar os carros de combate para África. E ainda hoje, conhecendo a pesada tradição da burocracia lusitana, não deixo de ficar espantado ao reler os despachos que determinaram a preparação, treino e embarque dos três M5A1 adstritos à CCS do Batalhão de Cavalaria 1927.
Os carros foram revistos nas Oficinas Gerais de Material de Engenharia e levados para o RC3, em Estremoz, unidade mobilizadora do B. Cav. 1927, no verão de 67. Foi da Companhia de Comando e Serviços (normalmente associada aos cozinheiros, faxinas, escriturários, mecânicos e clarins) que saíram as tripulações - homens e soldados cuja dedicação, dádiva e competência nunca esquecerei.
Dois meses depois estávamos em Nambuangongo, a principal base das NT no Norte de Angola, literalmente cercados por grupos de guerrilheiros da FNLA. O primeiro ataque deu-se a 21 de Dezembro. Dois M5A1 faziam a protecção de uma coluna que fazia reparações na picada quando começou a emboscada. Relato do 1º cabo condutor António Domingos Machado: «Era de madrugada, ainda não se via nada. Com os potentes faróis do carro vi pegadas na picada, pensei que alguém ali tinha posto uma mina. Avisei o nosso comandante e logo ali começou o tiroteio. Avançámos contra o inimigo com o carro a disparar o canhão e as metralhadoras e, passado algum tempo, acabou a confusão. Nesse dia fomos atacados mais duas ou três vezes sempre com o mesmo resultado: abríamos imediatamente fogo, entrávamos pela mata fora e o IN punha-se em debandada».
Outro ataque (dia 1 de Maio de 68), outro relato (furriel José de Matos Bento): «O nosso carro fechava a coluna. Caímos numa emboscada, disse ao pessoal que se mantivesse calmo e confiasse na nossa equipa. Disparámos a peça mais de vinte vezes, disparámos as metralhadoras para as palmeiras e a base das palmeiras, varremos aquilo tudo. Saímos daquela situação sem feridos, sem mortos, sem problema nenhum».
Continuando os depoimentos. Joaquim Fernando Pouca Roupa, 1º cabo mecânico, CCS B. Cav. 1927: «Eram emboscadas duras, mas tivemos uma saída muito airosa porque eles temiam as nossas máquinas. Estes carros de combate, que aqui estavam na sucata, protegeram muitas das nossas vidas e a posição que tínhamos em Angola na altura.»
Soldado Rec. Inf. Manuel Leite Ferreira: «Constituímos três extraordinárias tripulações em três tanques de guerra e a prova demonstrada é que nunca sofremos uma única mordedura de mosca na picada».
E, realmente, Leite Ferreira tem razão: ao longo de quinze meses em Nambuangongo, não foi registada uma única baixa, morto ou ferido (nem um único ferido ligeiro), militar ou civil, nas colunas sob escolta dos carros de combate M5A1. Para a história fica também este facto: os três tanques realizaram, nesse período de tempo, cerca de 30.000 km, nas condições mais adversas (picada, pó, lama, emboscada), mais do que o conjunto de todos os blindados de lagartas então existentes em Portugal. Foram também os únicos carros de combate a entrar em acções de guerra em toda a história do exército português.
Três anos depois, encontrando-me na Guiné com o batalhão 2922 (Piche, junto à fronteira com a Guiné Conacri), o general Spínola - já conhecedor da eficácia dos M5A1 em Angola - encarrega-me de ir imediatamente a Lisboa recuperar o maior número possível de CC M5A1: a situação na Guiné tornava-se cada vez mais difícil e toda a ajuda era bem vinda. Existiam ainda nessa altura cerca de setenta M5A1 a apodrecer em Beirolas. Destes, de acordo com o relatório que então apresentei, vinte estariam prontos para a guerra num curto espaço de tempo e outros tantos alguns meses depois. Infelizmente - e escrevo esta palavra no sentido único que refere a protecção da vida dos nossos soldados (palavra e homenagem aos que a cada dia arriscaram a sua vida, no mato, longe dos seus) - o poder estabelecido recusou o uso dos carros na Guiné. Tratava-se de material NATO e os Estados Unidos exerceram pressão no sentido de tornar claro que esse equipamento não podia ser usado nas campanhas de África.
Como alternativa fui encarregado de preparar, testar e levar para a Guiné as primeiras viaturas anfíbias Chaimite V-200. Estas Chaimites foram também as únicas que entraram em acção na guerra do Ultramar. Muitos dos sistemas destas viaturas (rádios, blindagem, armamento e suspensão) eram inadequados e em muitos dos teatros de operações os M5A1 dariam melhor conta do recado. As HK-21 (metralhadoras que equipavam as Chaimites) encravavam com facilidade e os semi-eixos partiam com demasiada frequência. Uma das Chaimites foi atingida por um RPG-7 e ficou totalmente destruída, no que resultou a morte do condutor e do chefe de carro.
Entretanto, sem as modificações e melhoramentos que foram efectuados ao longo dos tempos (as Chaimite de hoje pouco têm a ver com as de então), nunca estas viaturas poderiam manter-se hoje, trinta e cinco anos passados, ao serviço do exército português.
Regressando ao início, posso assegurar que os carros de combate M5A1 foram armas extremamente eficazes, tão acarinhados pelos nossos soldados como temidas pelos guerrilheiros da FNLA. O sucesso foi tal que se criou uma lenda: o IN não ousava atacar as colunas se os tanques estivessem presentes.
Desejando contar esta aventura - a epopeia dos velhos tanques da Segunda Guerra Mundial em terras de Angola - escrevi um depoimento e memória, procurando todos os documentos, arquivos, fotografias, mapas, relatos e testemunhos. Toda esta informação - incluindo um DVD com mais de duas horas de duração, onde se mostram as únicas imagens filmadas da actuação dos M5A1 em África - estará brevemente disponível.
Não é minha intenção usar este espaço para fazer publicidade ao meu trabalho, razão pela qual não divulgo o título do mesmo. Os livros vendem-se porque existe um público interessado e se o assunto não interessa o trabalho merece ficar nas prateleiras.
Escrevo com orgulho porque acreditei naqueles velhos tanques da segunda guerra mundial e na sua capacidade de ajudar a proteger a vida dos nossos soldados. Escrevo, antes de tudo, porque quero relembrar aqueles homens (jovens soldados de vinte e poucos anos de idade) que viveram sob as escotilhas, carne com ferro, perdidos na imensidão de África, dos carros fazendo anjos de guarda - os seus e de todos que os acompanhavam. Eram soldados do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira e do Algarve... Homens que um dia, se existe justiça, serão reconhecidos como verdadeiros heróis de uma história ainda por contar.
Logo que possível, indicarei um endereço na Internet onde gostaria de incluir fotos, filmes e documentação variada sobre o assunto. Desde já, procurarei responder a qualquer questão que me seja colocada.
As FA vão construindo o seu futuro. A todos convém conhecer o passado.
Um abraço a todos os intervenientes.