https://cnnportugal.iol.pt/terceira-guerra-mundial/historiador/nao-estamos-longe-da-terceira-guerra-mundial-o-pior-vem-a-seguir/20250419/68014d9dd34ef72ee444e689“Não estamos longe da Terceira Guerra Mundial. O pior vem a seguir”
ENTREVISTA || A História não se repete, mas rima. António José Telo, historiador e professor catedrático da Academia Militar, olha com atenção para um mundo que tem cada vez mais paralelos com os períodos que antecederam alguns dos momentos mais violentos da história da humanidade. Os ingredientes estão todos lá, diz: a corrida ao armamento, uma confusão ideológica que busca romper com o sistema vigente, potências prontas a desafiar a hegemonia estabelecida e o aparecimento de tecnologias disruptivas que ameaçam tornar o futuro campo de batalha ainda mais desumanizado. "Este é um período bastante preocupante, mas infelizmente para nós ainda não é o pior. O pior vem a seguir".
CNN - O rearmamento da Europa, com países como a Alemanha a assumir uma postura mais assertiva em termos militares, traz-nos à memória alguns períodos históricos. Que paralelos podemos traçar com o atual momento, em que tudo aponta para uma corrida ao armamento, e que lições podemos tirar disso?António José Telo - Para mim existe um paralelo evidente. O período que vivemos faz-me lembrar muito os períodos que antecedem os grandes conflitos mundiais, os conflitos verdadeiramente globais. Aqueles conflitos onde o que está em jogo é a hegemonia global; o como vai ser o mundo no futuro, as suas regras, o novo sistema que se quer identificar. Este período tem muito de semelhante com as duas guerras mundiais do século XX. Estes períodos, normalmente, são precedidos de uma corrida aos armamentos, em que a regra é que quem começa o desafio de alterar a nova ordem mundial e quer criar uma nova ordem é quem inicia esta corrida ao armamento. E geralmente obtém as primeiras vitórias.
Estes períodos são também precedidos de um conjunto de pequenas guerras. Pequenas quando comparadas com a dimensão do que vem a seguir. Quer a Primeira Guerra Mundial, quer a Segunda Guerra Mundial (II GM) foram precedidos de múltiplas guerras em vários continentes, que traduzem essa rivalidade global, que iria a dar origem ao confronto principal. Em certa medida, são laboratórios de ensaio.
CNN - Como a Guerra Civil Espanhola, por exemplo...AJT - Exatamente, como a Guerra Civil Espanhola, é um excelente exemplo. Confesso que muitas vezes fico admirado com os pontos de contato, os pontos de semelhança, entre a Guerra Civil Espanhola e a guerra da Ucrânia. Têm muitos pontos de semelhança. A guerra civil espanhola serviu justamente como teatro de experimentação de praticamente tudo o que viria depois a ser utilizado na II GM.
Por exemplo, os bombardeamentos massivos de cidades são experimentados pela primeira vez na Guerra Civil, como no famoso caso [do bombardeamento] de Guernica. Na II GM estas técnicas viriam a ser aplicadas numa escala incomparavelmente maior. Mas não só: as armas blindadas, particularmente os [veículos blindados de combate] panzers alemães, também seriam utilizados em Espanha, ainda que numa escala mais reduzida, quando comparado com o que estava para vir. Ainda assim, na altura, eram os maiores combates blindados até então. A Rússia e a Itália também enviaram vários equipamentos.
CNN - É um cenário parecido com o que vemos hoje na Ucrânia, onde vários países enviam apoio militar de todo o tipo, incluindo armas que ainda não tinham sido utilizadas no campo de batalha, mesmo que não se envolvam formalmente no conflito?AJT - A semelhança é muito grande. Na Guerra Civil Espanhola, houve muitas interferências estrangeiras, embora essas nações tivessem a preocupação de não se envolver diretamente com os governos. Inclusive foi criada uma Comissão de não intervenção. E quem é que estava nessa comissão de não-intervenção? Os maiores interventores da guerra, obviamente.
CNN - Então, à semelhança do que aconteceu na Guerra Civil Espanhola, a lição histórica que retira do momento em que vivemos é que um conflito que venha a seguir a este terá sempre uma dimensão muito superior?AJT - O conflito que vem a seguir é aquele que irá decidir a ordem mundial futura e que irá decidir as hegemonias futuras. Isto é um período muito confuso em muitos aspectos, porque é um período em que as placas tectónicas geoestratégicas estão em movimento. E, nestas situações, acontece a mesma coisa que com as placas tectónicas reais, que quando estão em movimento chocam entre si e esse choque libertam energias imensas que vão afetar grandemente a superfície terrestre e os seres vivos que nelas estão.
Neste momento, as grandes placas tectónicas geoestratégicas estão em movimento. O equilíbrio existente anteriormente já não as satisfaz e elas procuram um novo equilíbrio. E isso nota-se. Uma das coisas que caracteriza estes períodos que antecedem os grandes conflitos é precisamente uma grande confusão ideológica. De repente, aparecem novas ideologias, novas teorias políticas e formas de atuação que nada têm a ver com o passado.
CNN - Algo particularmente vincado nos períodos antes das guerra...AJT - Muitas formas de atuação que não têm nada a ver com o passado. Por exemplo, a Primeira Guerra Mundial foi precedida de um aumento imenso de atos terroristas, que não eram semelhantes aos atuais, porque normalmente eram atos terroristas dirigidos contra uma pessoa ou contra um alvo específico. Eram atos terroristas dirigidos, por exemplo, contra um Presidente do Conselho, ou contra um Embaixador, ou contra uma figura representativa do Estado.
Mas, de repente, [isso] explodiu um pouco por toda a parte, ligado a novas correntes ideológicas, como por exemplo o anarquismo, que se desenvolveu em muitos países europeus e que esteve presente na Guerra Civil Espanhola. Ou, por exemplo, as primeiras manifestações do que viria futuramente a ser o comunismo, com o partido bolchevique na Rússia.
CNN - Ainda sobre o rearmamento: a Comissão Europeia anunciou há relativamente pouco tempo o pacote de 800 mil milhões de euros para rearmar o continente. Como interpreta este movimento no contexto da história europeia, especialmente quando ainda há bem pouco tempo reinava uma certa hesitação em falar em armamento no bloco dos 27?AJT - Em primeiro lugar, é fácil anunciar, fazer é que é mais difícil. Hoje, uma das coisas que caracteriza o armamento e caracteriza a evolução do mundo bélico é que qualquer projeto significativo é muito mais demorado do que no passado. Um caça famoso da Segunda Guerra Mundial, como o Spitfire ou Messerschmitt 109, desde o início do projeto até ao desenvolvimento do protótipo, demorou pouco mais de um ano. E ainda assim, foram aviões que marcaram profundamente a guerra. No caso da Primeira Guerra Mundial, esse desenvolvimento durava ainda menos tempo. Aviões como o Camel ou o Albatross eram concebidos em meses e com um custo relativamente reduzido para as sociedades que os produziam.
Hoje em dia, não é assim. Hoje em dia, demoram-se muitos anos, em alguns casos décadas, para um grande projeto em termos de sistema de armas. Um exemplo disso é a tentativa da Índia em desenvolver submarinos nucleares. Os indianos conseguiram produzir dois submarinos nucleares estratégicos mas, desde os primeiros passos do projeto, até ter uma pequena força de dois, passaram 40 anos.
CNN - Esse também é o caso dos aviões furtivos F-35. A Europa tem demonstrado uma incapacidade em encontrar alternativas credíveis. Porque é que isto acontece?AJT - Exato. Acontece precisamente o mesmo com o avião de quinta geração americano, que, para além de um custo imenso, é algo que demora dez ou doze anos, no mínimo, para ser produzido. Não se improvisam este tipo de armas. Os sistemas de armas mais sofisticados, aqueles que vão dominar os campos de batalha do futuro grande conflito que se avizinha, demoram muito tempo e custam muito mais do que no passado. O que significa que têm que ser preparados com tempo e, hoje em dia, é muito difícil encontrar uma estabilidade do pensamento político e uma capacidade de gerar uma força executiva minimamente consolidada que possa, no tempo, desenvolver esse esforço.
CNN - Pensa que a polarização política que se vive, em particular no continente europeu, está a retirar à União Europeia capacidade de decidir de forma decisiva? AJT - É mais do que polarização. Polarização é uma palavra que nos aponta para dois pólos. A situação atual é diferente. Podemos olhar precisamente para os períodos que antecederam as duas guerras, mas particularmente a Segunda Guerra Mundial. A situação atual é como se a sociedade estivesse cansada das ideologias que a marcaram durante longas décadas, mas não souberam como se reformar e regenerar. Como tal, fizeram-se muitas experiências que davam em coisas absolutamente incríveis, algumas cómicas e outras ridículas. No fundo, eram experiências na procura de um novo caminho.