https://cnnportugal.iol.pt/guerra-na-ucrania/ucrania/isto-nao-e-a-russia-nunca-foi-nem-nunca-sera-ucranianos-que-vivem-em-territorios-ocupados-dizem-que-regressaram-ao-tempo-da-urss/20250414/67fbd90ed34e3f0bae9cde6d,
"Isto não é a Rússia, nunca foi nem nunca será": ucranianos que vivem em territórios ocupados dizem que regressaram ao tempo da URSS
Quando lhe perguntaram porque é que ela e outros ucranianos preferem continuar a viver sob a ocupação russa em vez de fugir, a mulher parou por um momento.
“Não sei como explicar o sentimento”, começa por dizer. "É como se não conseguíssemos acreditar que o mal pudesse vencer. Mesmo depois de três anos, as pessoas não conseguem acreditar que é assim. Continuam a acreditar que a ocupação vai acabar. É por isso que continuam a ficar aqui e não fogem".
A mulher, membro do grupo de resistência feminino Zla Mavka, vive numa cidade no sudeste da Ucrânia que ficou sob controlo russo poucos dias depois de Moscovo ter lançado a sua invasão total e não provocada do país em fevereiro de 2022.
Zla Mavka - que se traduz como Mavka Furiosa, sendo Mavka um espírito feminino da floresta no folclore ucraniano - dedica-se apenas a atividades não violentas. Mas participar em qualquer forma de protesto e falar com os meios de comunicação ocidentais é extremamente perigoso, razão pela qual a CNN não publica o nome ou a localização da mulher.
A vida sob ocupação russa é exaustiva e incrivelmente assustadora, confessa à CNN.
"Podemos ser presos por qualquer coisa. Temos de nos preocupar com tudo. Temos de verificar o nosso telemóvel, o que temos no apartamento, temos de esconder muitas coisas, não podemos dizer o que pensamos e não podemos confiar em ninguém", conta.
O presidente dos EUA, Donald Trump, deixou claro que quer o fim do conflito, mesmo que isso signifique mais perdas territoriais para a Ucrânia. Trump diz ser “improvável” que a Ucrânia recupere todo o seu território, afirmando que “a Rússia tomou muitas terras, lutou por elas e perdeu muitos soldados”.
Entre estas terras poderia estar a cidade natal da mulher de Zla Mavka.
"As pessoas no estrangeiro falam sempre de territórios e esquecem-se, talvez, que não se trata apenas de territórios. Trata-se de pessoas. E as pessoas aqui ainda estão à espera. As pessoas não se mudaram e não querem mudar-se. E porque é que têm de sair das suas casas?", questiona.
As forças russas ocupam atualmente cerca de um quinto do território ucraniano, onde vivem cerca de seis milhões de pessoas, incluindo um milhão de crianças, que vivem numa situação que a ONU descreve como “desoladora em termos de direitos humanos”.
Stepan, um ucraniano de 22 anos que fugiu recentemente de uma zona ocupada no sul da Ucrânia para Kherson, que está sob o controlo de Kiev, viveu na primeira pessoa aquilo de que as forças de ocupação são capazes.
Stepan e os seus pais foram detidos pelas tropas russas no verão de 2022. Stepan ficou detido durante duas semanas e foi repetidamente espancado e torturado com eletricidade. Os seus pais ficaram detidos durante vários meses.
Nunca foi dito a nenhum membro da família porque razão estavam detidos. Nunca foram condenados ou acusados de qualquer crime.
Quando Stepan foi libertado, foi separado do resto da sua família. Acabou por ficar na margem esquerda do rio Dnipro, que continua a ser ocupada pela Rússia. A sua mãe, Olha, conseguiu fugir para uma zona controlada pelo governo depois de ter sido libertada na primavera de 2023.
“Tinha muito medo”, conta Stepan sobre o tempo em que viveu sob ocupação. "Sempre que saía à rua, olhava à volta para ver se eles estavam lá para me levar outra vez ou para me fazer alguma coisa. Não saía de casa se não fosse preciso. Era assim todos os dias", relata à CNN.
Stepan teve sorte - conseguiu escapar e reuniu-se com a sua família no mês passado. Foi trazido de volta graças a um “esforço coordenado” que envolveu os “Anjos”, uma unidade das forças especiais ucranianas que resgata pessoas vulneráveis dos territórios ocupados, de acordo com Roman Mrochko, o chefe da Administração Militar da cidade de Kherson. Stepan e a sua família disseram que não estavam autorizados a partilhar pormenores da operação.
Consequências terríveis
Tanto Stepan como a mulher do Zla Mavka dizem que mesmo a mais pequena suspeita de ser “pró-ucraniano” pode ter consequências terríveis para as pessoas que vivem sob ocupação.
"Os meus amigos e conhecidos foram muitas vezes detidos por não quererem obter um passaporte russo ou por não se inscreverem no serviço militar. Eram levados e trazidos de volta uma semana mais tarde com os braços e as pernas partidos e, por vezes, com a cabeça partida. Eram muitos, estamos a falar de dezenas de pessoas", conta Stepan.
Segundo grupos de defesa dos direitos humanos, Moscovo tem vindo a intensificar a sua campanha para “russificar” a Ucrânia ocupada nos últimos meses, provavelmente para reivindicar as áreas em qualquer futura negociação de paz.
“Tentam retirar tudo o que é ucraniano da nossa cidade, desde a língua às tradições”, afirma a mulher de Zla Mavka, acrescentando que o grupo fez da manutenção da cultura ucraniana viva sob ocupação uma das suas missões.
“Estamos a divulgar poemas ucranianos e obras de autores ucranianos, e [celebramos] feriados ucranianos, os tradicionais, apenas para lembrar a todos que isto não é a Rússia, nunca foi e nunca será”, assegura.
A mulher descreve a vida na cidade como “entrar numa máquina do tempo e regressar à URSS”.
“Há propaganda e monumentos de estilo soviético, e feriados soviéticos, e estamos sempre à espera em filas, como nos tempos soviéticos, para obter ajuda, ou para ir ao médico, ou para obter alguns documentos, temos de esperar nestas longas filas e não há lojas normais nem marcas... apenas coisas que se podem obter nos mercados de rua e alguns produtos chineses estranhos”.
As autoridades russas têm vindo a apagar meticulosamente a identidade nacional, a religião e a língua ucranianas nos territórios ocupados. Organizaram referendos fictícios sobre a adesão à Rússia e têm forçado a população local a tornar-se cidadã russa.
No mês passado, o presidente russo, Vladimir Putin, assinou um novo decreto que ordena aos cidadãos ucranianos que vivem nessas zonas que “regularizem o seu estatuto jurídico” adotando a cidadania russa. De acordo com o decreto, aqueles que não o fizerem até setembro tornar-se-ão estrangeiros e só serão autorizados a permanecer no país por um período limitado.
Moscovo já coagiu efetivamente muitos ucranianos a aceitarem passaportes russos, porque a vida é quase impossível e muito perigosa sem esses documentos.
Aqueles que não têm documentos russos enfrentam a ameaça diária de prisão e deportação para a Rússia, não têm direito a trabalhar, não têm acesso aos serviços de saúde mais básicos ou a pensões e estão impedidos de possuir propriedades.
Nem sequer se pode chamar uma ambulância sem um [passaporte russo]. Se não tivermos um passaporte russo, a ambulância não vem", revela a mulher.
Os organismos de defesa dos direitos humanos têm afirmado repetidamente que Moscovo está a violar o direito internacional ao obrigar a população ucraniana a adotar passaportes russos.
"E depois o grande problema para os homens, os homens que foram forçados a obter passaportes russos, estão agora a tentar mobilizá-los para o exército russo. Querem forçá-los a lutar contra o seu próprio povo", diz..

Cerimónia de adesão ao movimento do Exército da Juventude, na região de Donetsk controlada pela Rússia em setembro de 2024.
(Alexander Ermochenko/Reuters)

m homem passa por uma loja destruída por um bombardeio em Donetsk, controlada pela Rússia, em janeiro de 2025.
(Alexander Ermochenko/Reuters)
O risco de tentar fugir
Milhões de ucranianos recusam-se a abandonar as suas casas nos territórios ocupados - a maioria porque ainda acredita que Kiev, com a ajuda dos seus aliados ocidentais, acabará por libertar todo o seu território.
Há também alguns que simpatizam com a Rússia e estão satisfeitos com o novo regime - embora tanto a mulher de Zla Mavka como Stepan digam acreditar que se trata apenas de uma pequena minoria.
"São muitas vezes pessoas que não tinham uma vida muito boa antes. Por exemplo, não tinham educação e não tinham um bom emprego, mas agora, se gritarem em voz alta ‘Eu amo a Rússia’, vão conseguir um emprego no governo, vão receber ajuda e dinheiro da Rússia", afirma a mulher do Zla Mavka.
O SOS Donbass, uma linha de apoio ucraniana para pessoas que vivem em territórios ocupados e zonas de combate, recebeu mais de 57.500 chamadas no ano passado. Segundo Violeta Artemchuk, diretora da organização, a maioria das pessoas pede conselhos sobre como sair em segurança, como ter acesso a ajuda e quais são as implicações de ficar e ser forçado a obter um passaporte russo.
As autoridades ucranianas têm dito repetidamente às pessoas que se encontram nas zonas ocupadas que devem fazer tudo o que for necessário para se manterem em segurança.
"Se precisam de obter alguns documentos, obtenham-nos. Isto não altera o vosso estatuto", garante Heorhii Tykhyi, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, após o anúncio do decreto que exige que os ucranianos nos territórios ocupados se tornem cidadãos russos.
Para Tykhyi, “a melhor solução, se possível, é partir para o território controlado da Ucrânia”.
Mas, para muitos, partir é impossível porque é demasiado perigoso, demasiado caro e demasiado traiçoeiro.
“Teoricamente, é possível sair, mas é preciso passar por uma filtragem”, adianta mulher de Zla Mavka, referindo-se a um processo de controlo de segurança conduzido pelas forças russas em todas as saídas das zonas ocupadas.
"Estão a verificar tudo, por isso... digamos que há uma mulher cujo marido foi soldado em 2014 e, se descobrirem, ela terá um problema enorme. Por isso, para ela, é mais seguro não tentar. Mas pode ser qualquer coisa, como um comentário nas redes sociais, algo no seu telemóvel, eles podem simplesmente prendê-lo e deportá-lo para a Rússia", acrescenta.

Uma bandeira comemorativa das vitórias militares soviéticas, em Melitopol, cidade sob ocupação russa.
(Andrey Borodulin/AFP/Getty Images)
Milhares de cidadãos ucranianos foram ilegalmente detidos e enviados para a Rússia, e a CNN documentou casos de pessoas que foram apanhadas em pontos de filtragem russos e posteriormente enviadas para instalações a milhares de quilómetros de distância da Ucrânia.
É impossível atravessar diretamente da Ucrânia ocupada para as áreas controladas pelo governo, o que significa que qualquer pessoa que deseje fugir tem de viajar através da Rússia, sair da Rússia e depois viajar pela Europa de volta à Ucrânia.
"Não é fácil deixar tudo e tornar-se um refugiado. Não se pode vender o apartamento, não se pode atravessar a fronteira com uma grande quantidade de dinheiro, não se pode levar muita coisa... por isso, é possível, mas não para toda a gente", admite a mulher.
Por isso, por agora, ela e milhões de outras pessoas decidiram ficar e assistem, todos os dias, horrorizados, às notícias que chegam da Casa Branca e de outros locais.
"As pessoas estão muito nervosas e têm muito medo de ouvir falar de uma negociação e de como as nossas cidades se vão transformar na Rússia, esse é o maior medo. Mas posso dizer-vos que, mesmo que isso aconteça, a resistência não vai parar".