“Organismos vis”: investigação de dez anos revela raízes extremistas e ligações neonazis das chefias da Rússia no Donbas
Uma ucraniana compara o símbolo usado pelas Forças Armadas russas ao símbolo nazi Thierry Monasse
São 80 páginas que demoraram quase dez anos a coligir. Dois jornalistas independentes, Pierre Vaux e Michael Weiss percorreram arquivos públicos de instituições russas, redes sociais de centenas de mercenários, “voluntários”, soldados do exército regular, ideólogos e oligarcas para descobrir as raízes extremistas dos grupos russos que operam na Ucrânia. De declarações abertamente nazis, aos guias sobre como torturar prisioneiros de guerra, esta é uma viagem chocante pelo submundo dos grupos paramilitares
Ana França
Jornalista da secção Internacional
O plano para fazer do Donbas parte da Federação Russa não foi pensado em 2014, nem em 2013, quando milhares de ucranianos se reuniram na Praça da Independência, em Kiev, nos últimos meses desse ano, para protestar contra o afastamento progressivo do seu Governo em relação à União Europeia.
O projeto original é bem mais antigo e teve início logo após a Revolução Laranja de 2004, um movimento de cidadãos, de alguma forma percursor das revoltas de 2013 e 2014, contra a eleição de Viktor Yanukovych, o Presidente pró-russo que havia vencido com um pequeno empurrão de Moscovo. As pessoas vieram para a rua pedir novas eleições - e conseguiram-nas. O resultado foi uma clara vitória para Viktor Yushchenko, mais próximo do Ocidente, com 52%, contra os 45% de Yanukovych.
Em 2005 o plano estava no terreno. Como explica o extenso relatório “Vile Bodies”, resultado de 10 anos de investigação da Fundação Free Russia, fundada nos Estados Unidos em 2014, começou com um movimento que deixava explícito no seu próprio nome o seu objetivo: “República de Donetsk”.
Foi um embrião que se formou nas mentes de alguns dos membros mais voluntariosos da Juventude Euroasiática (ESM), um grupo de extrema-direita liderado pelo pensador, filósofo, sociólogo russo Aleksandr Dugin, ele mesmo defensor de teorias supremacistas e participante assíduo, ao longo dos anos 80 e 90, em conferências, tertúlias, reuniões e outros fóruns de antissemitas na Rússia e por toda a Europa. O “eurasianismo” de Dugin é a ideia de que a Rússia está no centro do mundo - o que faz de Moscovo um inimigo potencial dos grandes poderes do Atlântico. É daí que vem a ideia de construir um império até Lisboa, de que o próprio Dugin, que arranha o português e gosta de MPB, já falou.
Entre os principais dinamizadores desta concepção excêntrica do mundo estavam, na altura em que esta história começa, Andrei Purgin e Oleg Frolov. As atividades com vista ao melhoramento das capacidades militares e doutrinárias dos membros da ESM começam em por volta de 2006.
Os arquivos de uma das televisões estatais russas, a Rossiya-3, mostram fotografias de Purgin e outros acólitos de Dugin da Juventude Euroasiática tiradas em várias cidades do Donbas ao longo dos anos 2000, tal como campos de treino militar deste e de outros grupos russos estabelecidos em território ucraniano quase cinco anos antes de o Ocidente se ter apercebido da presença de tropas russas, separatistas pró-russos, mercenários ou qualquer atividade bélica ligada a Moscovo. O movimento “República de Donetsk” haveria de se tornar o partido dominante em Donetsk - Purgin foi “vice-primeiro-ministro” e “porta-voz do soviete supremo” durante um ano.
O grupo começou por defender a independência da região através de manifestações e petições. Em certos momentos com mais potencial mediático, o grupo aproveitava para ser particularmente disruptivo, aconteceu com a visita do então embaixador norte-americano em Moscovo John Tefft ou com uma missa organizada em honra das vítimas da Grande Fome, ou Holodomor, um período, nos anos 30, em que a obrigatoriedade de entregar toda e qualquer produção agrícola a Moscovo matou à fome quase quatro milhões de ucranianos. Em 2012 já havia uma “embaixada” desta “república”, que funcionava na sede do movimento fascista de Dugin, em Moscovo.
Estamos a dois anos de qualquer conquista territorial e já há quase nove que essa invasão se planeia nas linhas laterais. Dugin não é essencial na história, a sua influência junto de Vladimir Putin já foi desmontada por muitas investigações, no entanto as suas prescrições dogmáticas encontraram o seu próprio caminho.
As “repúblicas” populares de Donetsk e Luhansk, as duas regiões do leste da Ucrânia que a Rússia está a tentar tomar na totalidade desde essa altura, não são reconhecidas pela comunidade internacional como territórios independentes, só que isso não interessa a quem se senta no Kremlin - pela lente da propaganda russa o estabelecimento destas entidades é a prova do sucesso desses movimentos que, segundo a investigação de Pierre Vaux e Michael Weiss, jornalistas independentes especializados na análise de fontes de consulta pública (OSINT), nunca agiram isolados do poder, mas sim dentro dele, com o conhecimento, conivência, até com a deferência do Kremlin.
OS TRÊS AMIGOS INSEPARÁVEISAlém de Purgin, Dugin e Frolov, há mais nomes a fixar nesta história. Por exemplo os de Aleksandr Borodai, Igor Girkin e Olga Kulygina, três agentes russos que acabariam por liderar (com outros agitadores mais ou menos anónimos) a invasão da Ucrânia em 2014 e até chegaram a fazer parte do “Governo” da autoproclamada República Popular de Donetsk.
É na Guerra da Transnístria (1990-1992) que alguns dos nomes mais importantes da invasão do Donbas se forjam. E é também nesse conflito, que opôs separatistas defensores da independência da Transnístria, apoiados pela Rússia, às forças pró-Moldova, que se forma a escola de combate que haveríamos de ver em ação na Crimeia, no Donbas e agora, na invasão em larga escala da Ucrânia. Borodai tinha 19 anos quando se alistou. Ao seu lado lutaram todo o tipo de extremistas, incluindo ucranianos de extrema-direita, cerca de 400, uma vez que um terço da população da região separatista era ucraniana. “Tínhamos de os proteger”, foi a explicação dada por um dos voluntários ao jornal ucraniano pró-russo “Segodnya”, num artigo de 2012.
These were Aleksandr Borodai, the "prime minister" of the "People's Republic of Donetsk;" Igor Girkin, the FSB officer turned "defense minister" of the DNR, now convicted in absentia in the Netherlands for downing MH17; and Olga Kulygina, almost certainly a member of the GRU.
A fórmula adoptada no Donbas - e que vemos a espalhar-se como um eco em outros conflitos com dedo do Kremlin desde então - não é muito complicada: uma vez finda a URSS, ex-agentes dos serviços de informações da União Soviética passaram a ser enviados especiais para a desestabilização das ex-repúblicas soviéticas. Agitar rancores antigos, legado de uma pulverização desordenada de um Estado que controlava tudo e providenciava o pouco que havia para distribuir, tornou-se o papel principal destes ex-agentes, agora assalariados do Kremlin.
Em 1993, todos os atores-chave na criação da “República Popular de Donetsk” estavam alinhados com a oposição a Boris Yeltsin durante a crise constitucional, que opôs o então Presidente ao parlamento russo, onde nacionalistas e comunistas se uniam cada vez mais contra o seu programa de abertura económica. Um episódio haveria de desaparecer na história dessa crise mas é particularmente significativo para esta história que a investigação conta.
Dia 3 de outubro desse ano, um grupo de oposicionistas dirigiu-se aos estúdios de televisão no norte de Moscovo, em Ostankino. Entre eles estava o general Albert Makashov que, quando chegou ao local, gritou o conhecido slogan antissemita: “Mala! Aeroporto! Israel!”. Entre os que aplaudiam estavam muitos dos nomes que falamos até agora. De repente, uma explosão vinda ainda não se sabe de onde provocou o pânico entre a multidão reunida em frente aos estúdios e as forças especiais do Governo abriram fogo. Oficialmente, morreram 45 pessoas, os médicos denunciaram na altura um número superior: 62. No dia seguinte, Yeltsin manda os tanques para o Parlamento. Morrem 127 pessoas no fogo imenso que consome o edifício.
Em 1996, Kulygina apresenta Borodai a um outro nacionalista emperdernido: Igor Girkin. Os primeiros dois estiveram no cerco ao Parlamento e os três, como já referimos, tinham estado na Transnístria. Girkin é historiador, foi agente do FSB de 1996 a 2013 (assim o confirmam os seus próprios emails, colocados online por um grupo de piratas informáticos de seu nome Sholtay Boltay - ou “Humpty Dumpty”) e hoje é uma voz incontornável do nacionalismo pró-guerra. Avisou há dias, escreve a agência Reuters, que está a preparar-se para entrar na política activa com pessoas que, como ele, consideram a estratégia de guerra demasiado branda para conseguir garantir os interesses russos na Ucrânia.
Como qualquer nacionalista a sério, Girkin é um crente em teorias que ajudam a “provar” culpa alheia nos malogros russos.
Girkin is currently the head of the Angry Club of Patriots and acts as a permanent gadfly of the "special military operation," and railing daily on video against the incompetence of the Russian army and the stupidity of the war planners.
As for Kulygina, she's now a "paramedic from Moscow" serving with the Grom Battalion in Ukraine. The battalion was formed by members of Borodai's Union of Donbass Volunteers. Below from Gazeta Metro. Caption: "Although Olga looks menacing,
she only helps people in the war."
Excertos seus na revista Zavtra (“Amanhã”), uma publicação dirigida por Aleksandr Prokhanov, nacionalista e militarista radical, mostram que Girkin defende que existem “mestres de marionetas” a operar contra a Rússia por todo o mundo. Os textos mais conhecidos, e que são citados no relatório, remontam a 1999, porém podiam estar a ser lidos em qualquer página do 4chan ou de outro fórum dedicado à evangelização dos membros do QAnon.
Girkin é também antissemita. Em 2018 declarou que o Holocausto foi motivado por um desejo de vingança dos países do leste europeu por aquilo a que apelidou “uma campanha dominada por judeus para nos fazer acreditar num genocídio perpetrado pelos bolcheviques”. Na verdade, acrescenta ainda numa publicação na rede social russa VKontakte, morreram não mais de 800 mil judeus, “e não seis milhões, ou até dos dois ou três milhões”. A história dos judeus foi “ampliada” em “detrimento” das mortes russas na segunda guerra mundial. Borodai, Kulygina e Girkin são todos autores no “Amanhã”.
Em fevereiro de 2014, os três foram enviados para a Crimeia. Logo depois migraram para o Donbass - para as cidades de Sloviansk e Donetsk, em particular - coordenando as atividades insurgentes desde o início. Borodai tornou-se “primeiro-ministro” da “república” e nomeou Girkin seu “ministro da defesa”, responsável por uma série de atrocidades em Sloviansk e arredores.
Almost all of these fascist actors returned to Ukraine after the full-scale invasion in 2022.
Borodai and Girkin (who hasn’t rejoined the war effort) have fallen out and condemned each other. Kulygina and Borodai formed the Union of Donbas Volunteers, with Kulygina now presenting herself as a “medic.” The group regularly hosts the neo-Nazis of Rusich.
O trabalho de Girkin para o FSB (sucedâneo do KGB), como vimos pelos emails, já estava bem estabelecido. Os laços de Borodai com os serviços secretos russos acabaram por ficar claros depois da divulgação de escutas conseguidas pelos serviços secretos da Ucrânia (SBU), nos quais se ouve o próprio Borodai a descrever a sua proximidade com a “Kontora” (gíria russa para o FSB).
Kulygina apareceu em Sloviansk disfarçada de “especialista em teoria da administração pública”, mas foi rapidamente capturada pelos serviços de informações do exército ucraniano. Não terá cedido qualquer informação durante o interrogatório mas o GRU, o serviço de inteligência militar da Rússia, não descansou enquanto não a libertou. Ofereceram 17 militares ucranianos - e Kulygina foi libertada.
“O reinado de Borodai e Girkin em Donetsk foi tão curto quanto vergonhoso”, escrevem os jornalistas. Girkin viria ser condenado à revelia por um tribunal holandês como um dos culpados pela queda do voo da Malaysia Airlines, atingido por míssil antiaéreo BUK importado da Rússia, que matou todas as 298 pessoas a bordo. Borodai acabou substituído pelo antigo chefe do KGB da Transnístria, Vladimir Antyufeyev.
UMA REDE EXTENSAA história da utilização de extremistas nos vários cenários de guerra que a Rússia fabricou na Ucrânia estava apenas a começar.
Pouco antes do início do cerco de Sloviansk, membros de um culto que na verdade era parte do KGB - o “Conceito de Segurança Pública” ou “Konceptsiya Obshchestvennoy Bezopasnosti” (KOB) - assumiu as transmissões no centro de TV da cidade.
A grelha de programação passou a estar integralmente ocupada por palestras do falecido major-general russo Konstantin Petrov, uma lengalenga interminável de teorias antissemitas misturadas com jargão político-administrativo criado de propósito para ser o mais críptico e entorpecente possível.
O chefe do KOB era Filipp Bobkov, que tinha dirigido o 5º Diretório da KGB. O movimento era - e é - uma mistura entre a “veneração de Estaline e noções de neopaganismo”, lê-se no relatório. Este não é o primeiro documento a falar das crenças “neopagãs” de algumas elites militares russas. Um ex-comandante do Grupo Wagner, Marat Gabidullin, escreve, num livro lançado recentemente ("Eu, Marat", nome da edição em português) e que detalha o seu tempo com o grupo de mercenários russo, que muitos dos seus companheiros professavam uma espécie de “paganismo pan-eslavo”, a “Rodnovaria”, (“fé original”).
Just before the siege of Sloviansk, members of a KGB-spawned cult called Concept of Public Security or “Konceptsiya Obshchestvennoy
Bezopasnosti” (KOB) took over city’s TV center.
The group broadcast lectures recorded in the 90s by the late Russian Maj. Gen. Konstantin Petrov, who was full of antisemitic conspiracy theories and mind-numbing management jargon.
https://expresso.pt/internacional/guerra-na-ucrania/2023-06-15-Organismos-vis-investigacao-de-dez-anos-revela-raizes-extremistas-e-ligacoes-neonazis-das-chefias-da-Russia-no-Donbas-0a27ac93?imp_reader_token=b86a94e0-0ef0-4f16-a903-658ceb78b416