Ucrânia. Até onde irá Putin?Alexandre Reis Rodrigues 
A Ucrânia não recuperará tão cedo a soberania sobre a Crimeia, se é que algum dia a terá de volta. Para a Rússia é uma oportunidade única de repor uma situação que foi alterada em 1954 por uma decisão, no mínimo, polémica.1 O que ainda não é certo é como se desenvolverá a crise a partir daqui noutras áreas, principalmente, na região ucraniana de maioria russa.
Talvez Putin não arrisque, de imediato, estender a invasão a outras áreas mas vai, com certeza, manter a Ucrânia numa situação de instabilidade tal que nenhum próximo governo, seja qual for a sua natureza, ousará tentar passar de novo a linha vermelha da manutenção do País na área de influência russa. A invasão da Crimeia e subsequente anexação é mais um sinal de que não se tolerarão novas tentativas do que uma ação de proteção de um objetivo vital.
O que é crucial, em termos de segurança, para a Rússia, é a Ucrânia na sua totalidade e não apenas a península da Crimeia, como se pensa nalguns setores, com base na existência da base naval de Sebastopol. Esta tem uma grande importância simbólica para a Rússia mas tem uma alternativa que Moscovo prepara desde 2003, em Novorissiyski, que também garante acesso ao Mar Negro, sem os constrangimentos de Sebastopol.2
Já se sabia – aliás, havia muitos alertas a lembrá-lo - que, para Moscovo, a Ucrânia não era um simples vizinho e que um dia a Rússia, desde que se sentisse confiante, iria criar dificuldades sérias à política de alargamento da NATO a Leste, se chegasse à Ucrânia. Esta, sendo vista por Moscovo como uma área vital para a segurança russa, nunca seria deixada sair da sua área de influência. Kissinger, uma personalidade insuspeita na defesa dos interesses dos EUA, sempre disse que a Ucrânia nunca deveria integrar a NATO. Mas malgrado as recomendações fundamentadas que fez sobre esse assunto não foi devidamente ouvido. A administração americana de George Bush preferiu seguir o racíocinio de Brzenziski que defendia exatamente o contrário, pondo Moscovo em permanente alerta.
Esta linha de ação esteve quase a concretizar-se. Há quase precisamente 6 anos, por ocasião da Cimeira NATO de Bucareste (2/4 de abril de 2008), no respetivo comunicado final, os Aliados formalizavam a sua concordância quanto à futura entrada da Ucrânia e Geórgia. Não fossem as reservas dos europeus quanto à insistência da administração Bush em acelerar o processo de admissão destes dois países na NATO, a decisão da sua entrada na Aliança teria ficado tomada nessa Cimeira.
Quatro meses depois da Cimeira a Rússia invadia a Geórgia, aproveitando a oportunidade dada por uma ação irresponsável do presidente Saakashvili. Malgrado anteriores declarações do presidente Bush garantindo que os EUA seriam sempre um “amigo sólido”, a Geórgia acabou por ter que se conformar com a declaração de independência de duas das suas províncias (Abecásia e Ossétia do Sul), que a Rússia incentivou e apoiou, militar e politicamente.3
Brzenzinski, tendo-se, entretanto aproximado da linha de pensamento de Kissinger, passou a defender uma “solução à finlandesa” para a Ucrânia. Sim à sua integração na União Europeia, não à integração na NATO. Para os líderes europeus, que não concordavam com a integração na NATO, esta linha de ação, certamente defendida pela atual administração americana, deve ter feito sentido pelo menos político entre os líderes europeus. Interesse económico, obviamente, nunca deve ter feito; estava a dar-se um “quase” acesso à União Europeia quando o País estava à beira da bancarrota e dividido entre entre duas comunidades completamente distintas em termos étnicos, religiosos e políticos. Era de esperar problemas políticos e económicos.
Mesmo assim, o chamado “Association Agreement” esteve quase a consumar-se. Faltava apenas o passo final quando, à última hora, Yanukovitch o rejeitou, sobre
pressão de Moscovo e promessas de ajuda para tirar o País de uma situação de bancarrota muito próxima (dois mil milhões de euros foram de imediato disponibilizados e prometidos mais treze). Putin entendia que os interesses ucranianos ficariam melhor servidos no âmbito da “Eurasian Union”, que além da Rússia englobará a Bielorússia e o Cazaquistão. Uma parte dos ucranianos concorda, a outra, definitivamente, não.
Não sei que avaliação terá sido feita na Comissão Europeia sobre a oportunidade de avançar com a proposta do “Association Agreement” – se é que foi feita alguma
avaliação. Existem vários argumentos que, de facto, sugerem que seria uma boa altura. De momento, a Rússia já não se encontra no ritmo de crescimento que teve
nos últimos oito anos; estará a entrar numa fase de estagnação económica que ninguém sabe se é temporária ou sistémica. O regime já não é tão monolítico como
era no passado; mesmo entre a elite próxima do poder há muita competição. Os oligarcas que controlam os grandes negócios não querem ouvir falar em crises que
restringirão o seu espaço e oportunidades. Aquilo de que mais se queixam os ucranianos – corrupção – ecoa bem dentro da Rússia, onde largos setores da
população mostram idêntico inconformismo.
Putin continua com índices elevados de popularidade (na casa dos 60%) mas já teve melhores. Pode-se ter presumido que não reagiria de forma violenta ao acordo com a UE para não desbaratar tão cedo o prestígio internacional que lhe trouxe a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, quer pela qualidade do evento, quer pelo nível de segurança conseguido. Pode também ter-se admitido que não quisesse correr o risco de sofrer um revés semelhante ao resultante do apoio que deu à independência das duas províncias da Geórgia, que a comunidade internacional recusou reconhecer.
Em resumo, pode ter-se pensado que todas estas circunstâncias iriam restringir as opções de Putin e que era seguro avançar no âmbito da União Europeia. Foi um erro de avaliação. Moscovo não cederá no caso da Ucrânia como o fez no caso dos Países Bálticos. Por razões de segurança que são conhecidas desde sempre e que hoje se tornaram mais fáceis de proteger porque a Rússia está mais forte e a Europa e os EUA precisam de alguma colaboração na resolução dos problemas que
mais afetam a paz e estabilidade mundial (Irão, Síria, Coreia do Norte, etc.).
Se a situação não se agravar proximamente será apenas porque Putin quer manter algum espaço para recuar se as reação europeia levar o conflito por um caminho
que afete a sua base de apoio interna. É onde as sanções poderão fazer diferença, se os EUA e a Europa, fizerem uma frente unida.
1
Khrushchev, que era ucraniano, decidiu que era boa ideia incorporar a província no território da Ucrânia, como parte da celebração dos 300 anos de um acordo com os cossacos. Na altura, não fazia grande diferença porque era tudo território da União Soviética. Porém, hoje, voltar à situação anterior a 1954 faz toda a diferença.
2
Em Sebastopol, Moscovo está impedido de estacionar navios com armas nucleares e limitações aos
número de navios e militares.
3
Hoje, apenas quatro Países reconhecem este desfecho, o que, no mínimo, constitui um embaraço diplomático para Moscovo. Poderá acontecer o mesmo com a Crimeia, mas Moscovo, aparentemente, fica indiferente perante esse facto.
Jornal Defesa