Jornal de Notícias
Deficientes foram levados como escravos para Espanha
Investigação Entre uma e duas dezenas de pessoas continuam dadas como desaparecidas PJ deteve 22 suspeitos de integrarem organização que levava as vítimas para quintas espanholas
Uma operação de grande envergadura, levada a cabo por elementos da Polícia Judiciária do Porto, do departamento de Braga e da inspecção de Vila Real, levou à detenção de 22 indivíduos de etnia cigana, indiciados por tráfico de pessoas, escravatura, associação criminosa, sequestro e branqueamento de capitais. Em causa está uma rede que há mais de uma década se dedicaria ao tráfico de pessoas para quintas espanholas, onde depois eram obrigadas a trabalhar em condições miseráveis.
As autoridades desconhecem quantos portugueses poderão já ter sido vítimas desta organização - embora sejam muitos os relatos de desparecimentos e regressos - sabendo-se apenas que a maioria deles residia em aldeias transmontanas. Os suspeitos moravam em Torre de Moncorvo e Alfandega da Fé, embora malguns deles passassem a maior parte do tempo em Espanha ou França. Hoje, deverão ser ouvidos no Tribunal de Instrução Criminal do Porto. Entre uma e duas dezenas de portugueses continuam desaparecidos, tendo a Judiciária já pedido ajuda à sua congénere espanhola, com vista à sua localização.
Propostas de empregos
Os suspeitos pertenciam a uma rede perfeitamente organizada. Tentavam aliciar portugueses, a quem ofereciam um futuro melhor. O emprego seria nas vindimas em Espanha, onde bons ordenados os esperariam. Pouco tempo depois, garantiam os angariadores, regressariam a casa e poderiam ajudar os familiares, também pobres e com dificuldades de subsistência.Muitas histórias deste tipo foram sendo repetidas pela generalidade dos órgãos de Comunicação Social, com desfecho sempre iguais.
Habituados a trabalhar no campo, muitos aceitavam o negócio. Partiam pela calada da noite, com indivíduos que não conheciam. O fim da história era depois diverso. As autoridades acreditam que a maioria permanecia em quintas espanholas, onde trabalhava de sol a sol. O ordenado não era pago e muitos ficavam sem os documentos, alegadamente para os empregadores arranjarem documentos com vista à legalização.
O facto da maioria das vítimas sofrer de perturbações mentais facilitava a permanência destes trabalhadores. Com dificuldades em exprimir-se e vivendo onde até a língua era um entrave, a possibilidade de fuga era diminuta.
Mesmo assim, nos casos em que resistiam os indivíduos da rede acabavam por os deixar partir. Para além da má alimentação e de agressões pontuais, não há conhecimento de casos de violência extrema ou mortes. Os que resistiam eram levados até à estação de comboios mais próxima, onde recebiam bilhetes de comboio.
Histórias comuns
Nos últimos anos, avolumaram-se as queixas nos postos da GNR. Partiam de familiares que davam conta do desaparecimento dos seus filhos, pais ou irmãos. As histórias tinham, no entanto, denominadores comuns contavam que os desaparecidos tinham sido aliciados para trabalharem em Espanha, mas que prometeram voltar um ou dois meses depois.
Muitos dos que voltavam, embora em condições miseráveis, evitavam apresentar queixa. Pouco ou nada sabiam sobre os empregadores, porque os contactos eram rápidos e habitualmente eram feitos por quem depois aceitava trabalhar em Espanha. As autoridades admitem ainda que a inexistência de queixas esteja relacionada com o medo de represálias.
Agora, a Polícia Judiciária vai concentrar-se na localização dos portugueses desparecidos e as autoridades espanholas já asseguraram que irão colaborar.
Cerca de uma dezena de suspeitos conseguiu escapar e já terão sido emitidos mandados de captura internacionais para os mesmo. A PJ apreendeu ainda 12 armas ilegais.
Gémeos recusaram trabalho e conseguiram regressar
Deolinda de Fátima, residente em Carrazeda do Alvão, concelho de Vila Pouca de Aguiar, Vila Real, recorda ainda os gritos do marido quando os filhos, gémeos ( cujo nome preferiu não revelar), foram levados para Espanha. "Pensava que nunca mais os via, chorou durante uma semana. Os vizinhos ajudaram-nos a procurá-los". A ausência durou pouco, oito dias, mas desde então Deolinda de Fátima redobrou a vigilância aos filhos, que apresentam deficiências mentais profundas, não conseguindo, por isso, subsistir sozinhos.
Foi num final de tarde - Deolinda não recorda bem o ano, mas admite ter sido em 2000 ou 2001 - dois homens, de etnia cigana, que ela não conhecia, lhe levaram os filhos. "Disseram ao meu tio para ir ele. Ele não podia e os ciganos levaram os rapazes. Não tive tempo de dizer nada. Desapareceram".
Deolinda não se conformou. Apresentou queixa na GNR, procurou os ciganos que lhe levaram os gémeos, organizou com os vizinhos viagens para procurar os filhos, que foram encontrados a pouco mais de 20 quilómetros da fronteira francesa, numa casa agrícola. "Vieram-nos trazer. Eles não sabem dizer o que aconteceu, não contaram se foram maltratados nem por onde andaram. Mas agora estou sempre atenta e não os deixo afastarem-se".