https://eco.sapo.pt/2025/12/09/custos-de-certificacao-afastam-empresas-de-menor-dimensao-do-setor-da-defesa/Custos de certificação afastam empresas de menor dimensão do setor da Defesa
"Bunkers", pessoal qualificado, inspeções periódicas ou requisitos de rastreabilidade são algumas das exigências para produzir para a defesa. Um processo "muito difícil" que afasta empresas menores
Acertificação para a NATO deu muito trabalho. Tive de fazer um bunker de betão armado na própria empresa para a informação estar lá guardada“, recorda Reinaldo Teixeira, o dono da Carité Calçados, uma das empresas portuguesas do setor do calçado que já produz para o setor da Defesa há vários anos. O testemunho do histórico empresário de Felgueiras ilustra as dificuldades das empresas para obter certificações que lhes permitam colocar os seus produtos junto do setor da Defesa, naquilo que qualifica como um processo “muito difícil”. Um esforço que a AED Cluster defende que deve ser ajudado com instrumentos públicos.
A Carité venceu o seu primeiro concurso para a NATO, quando em 2020 ganhou um concurso para produzir 100 mil pares de botas militares para a organização. Mas, para chegar a esta fase a empresa precisou preparar-se e obter uma certificação, sem a qual não poderia oferecer os seus produtos. “É muito difícil, nem qualquer empresa consegue esse certificado“, comenta o empresário, ao ECO/eRadar, destacando que a manutenção da certificação obrigada a custos que, possivelmente, só podem suportados por empresas médias e grandes.
Mas como foi conseguir este “selo”? Além do bunker que teve de construir — e restringir o acesso a apenas duas pessoas —, Reinaldo Teixeira contratou um escritório “que já tinha feito a certificação para uma têxtil” e ajudou a empresa de calçado a preparar todo o processo, que “demorou à volta de um ano“. Apesar do trabalho e esforços exigidos, o dono da Carité destaca as vantagens de ganhar via verde para o setor: “Se queremos o futuro temos de o preparar.”
No mercado desde 1983, a EID tem vindo “a construir um posicionamento adaptado às necessidades e exigências do setor da Defesa em Portugal e no resto do mundo”, adianta fonte oficial da empresa. Há mais tempo neste setor, onde fornece sistemas integrados de comunicação, a EID já tem o nível de certificação da NATO e, por isso, ganhou acesso a participar em projetos para a NATO Communications and Information Agency (NCIA) e para a NATO Support and Procurement Agency (NSPA).
“A exigência atual prende-se com as certificações que são solicitadas para as pessoas que irão trabalhar nesses projetos, como a Acreditação Nato Secret, um processo que decorre junto do GNS – Gabinete Nacional de Segurança”, explica a mesma fonte. Apesar de os processos de certificação terem acabado “por decorrer de forma tranquila”, “também houve desde logo a consciência coletiva da mais-valia do reconhecimento por parte de uma entidade externa de que os nossos métodos de trabalho são sistemáticos e, em última análise, asseguram que as nossas soluções vão ao encontro das expectativas dos clientes”
O principal desafio para a empresa “foi a necessidade de ultrapassar a resistência natural à alteração do modo de trabalhar, nomeadamente no que respeita à criação e manutenção de registos que, no âmbito de uma certificação, são o meio de evidenciar a robustez e a rastreabilidade dos processos”, explica fonte da companhia.
“Como qualquer empresa que atua na Indústria da Defesa, a EID enfrenta desafios naturais ao posicionar os seus produtos e soluções no mercado internacional, desde ciclos de decisão longos até requisitos técnicos muito específicos“, destaca fonte oficial, acrescentando que uma das suas vantagens é “a enorme capacidade de combinar tecnologias fiáveis, a proximidade com os clientes e uma forte reputação construída ao longo de décadas”. “Isto permite-nos transformar desafios em oportunidades e consolidar a presença da EID em vários mercados estratégicos”, remata a mesma fonte.
Fernando Cunha, CEO da Beyond Composite, que desenvolve e comercializa soluções de proteção balística em materiais compósitos, tanto para proteção pessoal como para plataformas terrestres, navais e aéreas, realça que “num setor como o da Defesa, é fundamental a existência de credibilidade, historial técnico e prova de desempenho real“. “É um mercado que valoriza profundamente a experiência acumulada e as referências internacionais, pelo que a entrada de novos players exige capacidade de demonstração, testes exigentes e um acompanhamento técnico muito próximo dos clientes”, explica o líder da empresa onde a família Azevedo adquiriu uma posição maioritária.
Em termos de certificações, Fernando Cunha explica que podem ser divididas em dois eixos distintos. “Por um lado, temos o licenciamento da empresa: a Beyond Composite está devidamente licenciada pelo Ministério da Defesa Nacional para a comercialização de bens e tecnologias militares. Este processo exige conformidade legal, auditorias e mecanismos de controlo de exportação.”
Por outro lado, os materiais da empresa são testados e certificados segundo a norma STANAG 4569, que estabelece os requisitos de proteção para veículos blindados militares. “Esta certificação comprova que as nossas soluções conseguem proteger plataformas contra munições e ameaças balísticas estandardizadas, garantindo comparabilidade e fiabilidade internacional”, explica o CEO da Beyond Composite, atualmente “em vários mercados europeus e em programas de cooperação transatlântica, com fornecimento de soluções para parceiros em setores terrestre, naval e aéreo”.
Mais do que o processo de certificação em si, o responsável diz que “o verdadeiro desafio não é apenas certificar uma solução, mas sim certificar a melhor solução possível para cada cliente“. “A nossa abordagem é baseada em desenvolvimento iterativo: testamos, ajustamos e otimizamos continuamente”, acrescenta.
Fernando Cunha admite que este é um setor com uma “cadeia de valor altamente estável, onde a credibilidade e a confiança são determinantes”. “Essa estabilidade significa naturalmente uma menor permeabilidade à entrada de novos players, especialmente estrangeiros“, diz, acrescentando que “muitos países mantêm políticas industriais que protegem e priorizam fabricantes locais“.
Ainda assim, o gestor reforça que “quando as empresas demonstram elevada competência técnica, capacidade industrial e conformidade com normas internacionais, é possível conquistar espaço e desenvolver parcerias estratégicas“.
Certificação apoiada com instrumentos públicos
“O reforço do investimento em Defesa na Europa e em Portugal é uma oportunidade única para o nosso ecossistema industrial”, defende José Neves, presidente do AED Cluster Portugal. Segundo o mesmo responsável, “a inserção em cadeias de fornecimento internacionais — incluindo NATO, UE ou OEM (Fabricante do Equipamento Original) globais — exige que as empresas nacionais cumpram padrões robustos de qualidade, segurança e compliance, que são inerentes ao setor da defesa”.
José Neves refere que “a preparação para certificações é um esforço de médio prazo, que deve ser apoiado por instrumentos públicos e alinhado com a estratégia nacional de capacitação tecnológica“.
O presidente do AED Cluster nota que embora cada programa tenha requisitos específicos, há linhas orientadoras que as empresas devem seguir:
Alinhar-se com normas técnicas internacionais, como EN9100, AQAP ou outras certificações de qualidade e segurança reconhecidas no setor;
Reforçar processos internos de rastreabilidade, cibersegurança e gestão industrial, aspetos essenciais para operar em ambientes regulados;
Antecipar exigências de integração nas cadeias de fornecimento, sendo ouvidas e envolvidas antes da assinatura dos contratos, “algo que a AED Cluster Portugal considera crítico para evitar que requisitos sejam definidos sem considerar as capacidades nacionais”;
Trabalhar em parceria com entidades certificadoras, Forças Armadas e OEM, garantindo que requisitos técnicos e operacionais são cumpridos desde fases iniciais de desenvolvimento.
Investir na formação profissional qualificada.
Para José Neves, “o setor da Defesa é, por natureza, um mercado altamente regulado, competitivo e frequentemente protegido, onde os países procuram maximizar a sua base industrial e tecnológica”, um contexto que “cria desafios evidentes para empresas de menor dimensão, como é o caso da maioria das empresas portuguesas“.
Para que a indústria nacional não perca esta oportunidade única, o responsável defende que “a solução passa por construir relações industriais de longo prazo, garantindo que cada grande aquisição nacional abre portas à participação de empresas portuguesas em programas internacionais”. “É essa lógica que permitirá transformar compras militares em verdadeiro investimento económico, reforçando a presença internacional de Portugal e afirmando o país como parceiro credível e competitivo”, remata.
Para José Neves, há uma “falta de visão estratégica integrada”. “Portugal ainda não possui uma política industrial de Defesa clara e duradoura — algo que a AED está neste momento a trabalhar — que dê previsibilidade às empresas”, explica, sublinhando que “sem previsibilidade, a indústria não investe e não escala“.