Sempre ás ordens
A questão da tortura é polémica. Não há dúvida de que ela beneficiou em muito as forças francesas. Mas o que é certo é que também alienou grande parte dos argelinos e fez com que eles quisessem ter cada vez menos ligações á França. Eu penso que os benefícios tácticos da tortura não superam os danos estratégicos que ela provoca.
Capítulo 4: a Guerra dos Argelinos (1954 – 1958)1 de Novembro de 1954, a data oficial do início da Guerra da Argélia, não coincidiu com a imposição de uma liderança única (a emergente FLN, por exemplo) ou com o colapso de todas as anteriores correntes políticas. Como se veio a verificar, a FLN iria-se estruturar e consolidar durante dois anos, culminando no Congresso de Soummam a 20 de Agosto de 1956. Nestes dois anos, fileiras foram recrutadas e seleccionadas, a população treinada, a ideia de independência desenvolveu-se, canais foram estabelecidos, e a guerra de guerrilha foi reinventada. Mas, sobretudo, durou dois longos anos para se ter o invejável título de “representante autorizado” reconhecido através da integração de todas as outras correntes na FLN, com excepção dos apoiantes do velho líder nacionalista Messali Hadj, que, em Dezembro de 1954 fundou o Mouvement National Algérien.
Diferenças entre os Nacionalistas
A dissolução do MTLD pelo Conselho de Ministros a 4 de Novembro de 1954 levou á detenção de várias centenas de líderes nacionalistas argelinos e militantes. Aqueles que não foram presos não tinham escolha: tinham que ir para o submundo ou juntar-se ás forças de guerrilha. A FLN aproveitou toda a vantagem da dissolução do MTLD. Preparou estruturas para interceptar a maioria dos desorientados messalistas e acolheu-os para as forças subterrâneas; apoderaram-se dos stocks de armas herdados do OS, a organização paramilitar do MTLD; e iniciaram contactos com os tunisinos e marroquinos. Um grande número de imigrantes juntou-se ás forças de guerrilha e foram aproveitados pela FLN. Mas, na primeira fase da insurreição, a FLN também sofreu golpes muito cruéis. A 15 de Janeiro de 1955, Didouche Mourad, líder de Constantinois, morreu em combate; a 11 de Fevereiro, Mostefa Ben Boulald, líder do Aures, foi preso; a 16 de Março, Rabah Bitat, que tinha organizado a guerra de guerrilha urbana em Argel, também foi preso.
Nestas condições de repressão muito activa (entre Novembro de 1954 e Abril de 1955), deram-se esforços para a reconciliação entre “activistas” (os membros do MTLD que tinham perpetrado os acontecimentos de 1 de Novembro de 1954), “centralistas” (a maioria dos membros do comité central do MTLD), e “messalistas” (os seguidores de Messali Hadj). Durante este período, a FLN ainda procurava a sua identidade, avaliando a sua força. Em Argel, no Cairo, e entre as forças de guerrilha, deram-se contactos e esforços para a reconciliação entre “messalistas” e “frontistas” (apoiantes da FLN). Isso não falhou para promover a confusão dentro da comunidade imigrante em França, e na Argélia. Certamente que os militantes nacionalistas menos qualificados tinham que se esforçar bastante para entender o labirinto de relações triângulares entre todos os partidos envolvidos (messalistas, CRUA, centralistas) e compreênder as disputas, que eram bizantinas na sua visão, no período precedente e que imediatamente se seguiu á insurreição de 1 de Novembro de 1954.
A confusão também estava no máximo entre as forças de guerrilha. Todas as correntes, embora não actuando concertadamente, aceitaram a designação “ALN” como a única estrutura militar. Uma grande parte de militantes messalistas decidiram separadamente recorrer ás armas assim que as operações de 1 de Novembro fossem conhecidas. Em certas regiões da Argélia, particularmente no Aures e em Kabylia, grupos armados formaram-se independentemente da liderança existente. Eles foram “conduzidos” após o acontecimento. Animados simplesmente pelo desejo patriótico, alguns conheciam a FLN, enquanto que outros apoiavam Messali. A 1 de Novembro de 1954, os panfletos claramente distinguiam a FLN, a organização política do movimento, e o ALN, uma organização militar. Mas no Aures, por exemplo, toda a parte política estava sob as ordens de Chihani Bachir, o segundo na linha de comando após Ben Boulald. Os líderes da zona do Aures não viam a utilidade da distinção. Eles acreditavam que era suficiente proclamar uma revolução aberta e treinar militantes. Em Kabylia, e especialmente na região de Bowra, os militantes lutavam sob o nome de “Armée de Libération Nationale”, o que tendia a provocar ambiguidade no que respeita á designação “ALN”, partilhada pela FLN e pelo MNA. Chegou-se politicamente a vias de facto em 1955.
A Guerra FLN-MNA
No início de 1955, os “activistas” do antigo MTLD, que tinham fundado a FLN, conseguiram arrastar os membros da corrente “centralista” com eles. Por outro lado, os messalistas, herdeiros de uma longa tradição política, e que não acreditavam que exclusivamente a acção militar traria independência, rejeitaram os objectivos activistas, que julgavam simplistas. Para Messali Hadj, antigo membro da esquerda francesa, os activistas eram vítimas de uma “doença infantil”. As duas organizações, a FLN e o MNA, estavam prestes a envolver-se em confrontos violentos.
A 1 de Junho de 1955, o assassínio de Saifi, um velho militante do PPA, cujo hotel e restaurante na Rua Aumaire, no terceiro
arrondissement de Paris, abrigava imigrantes ilegais, precipitou a confrontação. Num panfleto publicado no fim de Novembro de 1955, Abbane Ramdane, assistente de Krim Belkacem e líder da FLN em Argel, chamou a Messali Hadj “um vergonhoso velho que possui a frente de Angouleme, liderando um exército de polícias, que asseguram a sua protecção contra a fúria do povo”. Após vários insultos e acusações trocadas entre panfletos, as armas tomaram o lugar das palavras. A 10 de Dezembro de 1955, em Argel, Salah Bouchafa e Mustapha Fettal, militantes da FLN, executaram Sadek Rihani, o líder do MNA em Argel. O braço de ferro começou. Para ambas organizações, a natureza da futura sociedade argelina independente não estava em questão. A rivalidade violenta deu-se a um nível diferente: quem deveria ser, quem podia ser, o representante exclusivo do povo argelino?
De 1955 a 1962, os “comandos de choque” da FLN e do MNA travaram uma longa, cruel batalha usando todos os meios possíveis: armadilhas, traição, infiltração, e execuções para servir como exemplo, todos eles semeando o medo. Na Argélia, esta luta mutuamente destrutiva foi exemplificada, em Maio de 1957, pelo massacre sangrento, perpetrado pela FLN, de 374 aldeões em Melouza, que eram suspeitos de simpatias messalistas. O massacre incendiou os combatentes do MNA, especialmente os de Mohammed Bellounis, a juntarem-se imediatamente ao Exército Francês. A 20 de Março de 1962, o jornal Le Monde publicou estatísticas do alcance da confrontação entre nacionalistas em França (a FLN versus o MNA): mais de 12 000 assaltos, 4 000 mortos, e mais de 9 000 feridos. Na própria Argélia, o custo dessa guerra civil era muito pesado: 6 000 mortos e 14 000 feridos. No total, em França e na Argélia, o número de vítimas ascendeu a quase 10 000 mortos e 25 000 feridos nos dois lados.
A FLN sairia vitoriosa nesta guerra dentro da guerra. Mas milhares de militantes que tinham sido treinados para a vida política moderna no movimento imigrante em França, em particular, foram mortos no processo, e estariam cruelmente ausentes da liderança de uma Argélia em guerra, e ,depois, de uma Argélia independente.
Convertidos à FLN, o Congresso de Soummam
Em 1955 e 1956, a FLN aumentou contactos e discussões com os outros componentes argelinos. Mesmo assim, ciente da “falência” de partidos anteriores, a FLN esperava simplesmente que se dissolvessem e que os seus membros se juntassem á organização numa capacidade puramente indivdual. Seguindo os passos dos “centralistas” (Ben Youssef Ben Khedda, Saad Dhalab, M’Hamed Yazid e Hocine Lahouel), o UDMA de Ferhat Abbas juntou-se á FLN nos fins de 1955.
A FLN conseguiria obter esta conversão em massa das “velhas elites”, tão avidamente desejada, de outra organização, o ulama (um movimento religioso reformista que liderava o renascimento da identidade islâmica na Argélia). Essa organização religiosa, preocupada com a sua falta de controlo sobre os acontecimentos, passou-se para o campo da FLN durante a sua conferência a 7 de Janeiro de 1956, e glorificou a “resistência ao colonialismo”. Ainda havia o caso do Parti Communiste Algérien, ou PCA (Partido Comunista Argelino). Em Maio e Junho de 1956, Ben Khedda e Abbane Ramdane, representando a FLN, e Bachir Hadj Ali e Sadek Hadjeres, representando o PCA, começaram prolongadas discussões. A 1 de Junho de 1956 os comunistas argelinos foram integrados no ALN.
O Congresso de Soummam, que se deu a 20 de Agosto de 1956, tornou oficial “a falência das antigas organizações políticas dos velhos partidos”, e notou que os “militantes menos qualificados” se tinham juntado á FLN, e que a UDMA e o ulama tinham sido dissolvidos. Com este congresso, que decorreu no Vale Soummam em Kabylia, a “revolução argelina” mudou de aspecto. Os longos debates (20 dias) culminaram num programa bem definido, a estruturação da FLN-ALN, e a afirmação da primazia da acção política sobre a militar e da doméstica sobre a estrangeira.
Inicialmente planeado para 31 de Julho na região de Bibane, o congresso não abriu até 20 de Agosto, numa cabana de um guarda-florestal próxima da aldeia de Igbal, na vertente ocidental do Soummam. 16 delegados participaram; eles representavam de uma forma muito desigual as diferentes regiões da Argélia. A somar à ausência da delegação externa, não havia um representante do Aures – o seu líder, Mohammed Ben Boulald, tinha sido morto, e o seu irmão Omar não pode ir, devido aos movimentos constantes do Exército Francês. Oranais era representada apenas por Larbi Ben M’Hidi. Seis delegados vinham da Zona N (Norte Constantinois): Youcef Zighoud, Lakhdar Ben Tobbal, Mostefa Benouda, Brahim Mezhoudi, Ali Kafi e Rouibah. Quatro vinham da Zona III (Kabylia): Krim Belkacem, Mohammedi Said, Amirouche e Kaci. Três vinham da Zona IV (Algerois): Amar Ouamrane, Slimane Dehiles e Ahmed Bouguerra. E um vinha da Zona IV (o sul): Ali Mellah. Estes 15 homens eram os representantes dos combatentes. O décimo-sexto, o único secretário político, era Abbane Ramdane.
Das deliberações deste congresso, três preocupações principais emergriram:
- uma avaliação das forças materiais da revolução, julgada pelos delegados como moderádamente satisfatória. Havia críticas em relação ás operações de abastecimento de armas, e desfazamentos na introdução de estruturas políticas foram apontados (bom para Kabylia, apesar da existência de uns poucos enclaves messalistas, e para Constantinois; aceitável para Algerois; Oranais estava claramente atrás).
- a redacção de uma plataforma política – preparada em parte por Amar Ouzegane, mas carregava profundamente a marca de Abbane – que era articulada em redor dos princípios de uma estrutura colegial da liderança, a primazia do político em relação ao militar, e do doméstico em relação ao externo.
- a reorganização da estrutura do ALN, agora modelado em relação a um exército regular. O território argelino foi dividido em seis novas
wilayas, estas divididas em
mintaka (zonas),
nahia (regiões) e
kasma (sectores); Argel foi feita uma zona autónoma. Uma rigorosa hierárquia de unidades de batalha e fileiras foi instituída, de onde nasceria o Exército, um verdadeiro suporte do futuro estado argelino.
Este “contra-estado” em gestação foi justificado pelo poder sufocante do estado colonial. De acordo com esse argumento, a perseguição das tradições pluralistas do nacionalismo argelino anterior a 1954 parecia algo fútil para a derrota da pesada tutelagem francesa.
Embora o Congresso de Soummam, o único na história da FLN, fosse histórico no trabalho “legislativo” que conseguiu, também inaugurou a luta pelo controlo nos escalões mais altos da organização nacionalista. A 23 de Setembro de 1956, Abbane Ramdane (um natural de Kabylia) enviou uma carta a Mohammed Khider, informando-o das decisões do congresso. Quando Ben Bella soube da carta e recebeu as minutas do congresso, decidiu compor uma resposta de três pontos. Ele insistiu no carácter “não-representativo” do congresso. “O Aures, a delegação externa, Oranie, e as zonas orientais não participaram, assim como a Fédération de France.” Ele atacou “a dúvida, mais uma vez, do carácter islâmico das nossas futuras instituições políticas” e assim demonstrou a sua rejeição do secularismo do estado, e a sua recusa em arranjar um lugar para a minoira europeia. Finalmente, ele denunciou a presença de antigos líderes de partidos nas organizações de liderança. Esta resposta repetia palavra por palavra os temas da liderança do PPA-MTLD contra “os berberistas” de 1949. Mas não tinha Abbane acusado Ben Bella “de desconfiar deles por que eram Kabyles”? Parte da razão pela disputa sobre a legitimidade pode ser encontrada numa explicação “regional”.
A Batalha das Forças de Guerrilha
A principal unidade do ALN era a
katiba – o equivalente a uma companhia ligeira – que podia chegar a 100 homens, ou o pelotão, com cerca de 30 homens. Estes homens preenchiam uma existência no território que constituía o seu teatro de operações, que conheciam intimamente pois atravessaram-no em todas as direcções.
A sua solidariedade era a dos combatentes em guerra, sem pensarem em regressar, constantemente enfrentando os mesmos perigos e privações, quaisquer que fossem os postos ou funções: o oficial não era menos espartano que o
djoundi (soldado); o secretário, o médico, o operador de rádio se houvesse um, todos entravam em combate. Não era o ritual militar que provocava a coesão. Aquilo que unia os
mujahideen (combatentes) era o sangue derramado, a causa servida, o perigo que marcava as suas existências. Também era a aquisição de uma disciplina que, se quebrada, podia levar a uma punição mortal – por exemplo, por comportamento indecente ou uma arma em mau estado. Também era o passado partilhado destes homens: quase todos eram inferiores, pessoal rural, treinados para uma vida dura desde a nascença. Cada homem carregava a sua ração de sêmola ou
couscous; sempre que possível, azeite, grãos-de-bico e cebolas faziam parte do ménu diário, assim como açucar e café. Carne de carneiro e fruta fresca eram raros. O médico nem sempre tinha os medicamentos necessários para os doentes e feridos. Enquanto que a batalha era uma provação, marchar não o era para um montanhista ou camponês. Assim que se tornasse soldado, ele era equipado pelo ALN com leves botas, chamadas “Pataugas”, feitas de dura lona com solas de borracha. O seu equipamento era reduzido ao mínimo. Ele não tinha uma muda de roupas. Excepto por umas pequenas rações e possivelmente um cobertor, nada era mais importante que a sua arma e munição. A unidade movia-se mais ou menos constantemente. Em primeiro lugar, tinha que estar presente em todo o lado, com intervalos reduzidos o suficiente para manter a população ciente da sua força.
Acção verdadeiramente ofensiva requeria sempre que a
katiba (ou pelotão) movesse secretamente e rapidamente de um ponto para outro que seria o mais afastado possível, pois na guerra de guerrilha nada é tão eficaz como a surpresa. Isso significava que marchas, excepto as realizadas em florestas, eram normalmente feitas à noite em colinas, em
wadis, ou no máximo, sobre trilhos de gado. Os soldados dormiam ao relento. Sem aviso, um posto da SAS seria atacado com morteiros; um autocarro rural seria atacado e queimado; ou uma emboscada, cuidadosamente preparada numa curva do caminho, pacientemente esperaria pela coluna militar que informadores no bairro tinham dito que era provável que passasse. Uma mina artesanal, camuflada no pó, rebentaria um veículo, bloquearia a coluna, e desencadearia fogo de metralhadora; depois viria o assalto. A todo o momento, a preocupação dos líderes da FLN era evitar a surpresa de um encontro inesperado com o adversário em toda a força, ou a possibilidade de localizarem a sua unidade a descoberto. Nesse aspecto, as condições de existência do ALN variávam bastante, dependendo da altura e região consideradas. Em algum
massif empedernido, selvagem ou arborizado, ou um ainda pouco penetrado pelo Exército Francês, uma unidade do ALN teria os seus acantonamentos, normalmente vários, ás vezes em abrigos cavados na terra, ás vezes numa aldeola relativamente despovoada: entre duas mudanças de localização ou duas intervenções, podia descansar ali mais ou menos à vontade.
Nessa guerra subterrânea, o mundo normal estava fechado para o guerrilheiro, que não tinha meios de fuga excepto a morte ou a paz definitiva. Foi nos anos de 1956 e 1957 que o ALN (que tinha aproximadamente 6 000 homens) teve os seus maiores sucessos contra tropas do Exército Francês, graças sobretudo aos abastecimentos de armas vindos de Marrocos e da Tunísia. As coisas seriam diferentes após a construção das barreiras nas fronteiras marroquina e tunisina.
Imigração, a Segunda Frente
O recenseamento de 1954 listou 211 000 argelinos em França; o recenseamento de 1962 listou 350 000. Durante a mesma altura, o Ministério do Interior apresentou o número de 436 000. Além das considerações relacionadas com o delicado problema da nacionalidade e cidadania (quem, na verdade, era argelino em 1962, o ano do recenseamento em França, e da independência argelina?), um facto era claro: a imigração argelina para a França duplicou entre 1954 e 1962, os anos da guerra.
A maioria dos imigrantes eram homens com idades compreendidas entre 20 e 40 anos. De todas as revoluções sociais que a sociedade rural argelina viveu entre 1955 e 1962, aquelas que foram causadas pela recolocação da população foram as mais profundas e com maiores consequências. Em 1960, metade da população rural, isto é, um quarto da população total, fora brutalmente deslocada.
A somar aos “deslocamentos”, devemos mencionar que um milhão de “homens de idade activa” estavam desempregados na Argélia. Um em dois trabalhadores trabalhava menos de cem dias por ano. No total, de 1954 a 1960 só 45 000 novos empregos industiais foram criados, dos quais 25 000 eram construções e obras públicas. A pressão demográfica piorou o processo levando ao desemprego. A população de muçulmanos argelinos cresceu de 4 890 000 em 1921 para 8 800 000 em 1954. A população masculina activa aumentou em 385 000, que significa que no início de 1955 seria necessário criar 70 000 novos empregos anualmente para os jovens masculinos de idade activa. Como isso estava bem longe da realidade, a imigração era a última esperança.
A necessidade de substituir homens do contingente francês enviado para lutar na Argélia e a renovação da estrutura social interna francesa são dois elementos essenciais que nos permitem entender o paradoxo do grande número de argelinos que emigraram para um país que estava em guerra com eles.
Ao examinar a distribuição geográfica dos argelinos na metrópole, descobrimos que cinco departamentos continuaram a servir como centros de atracção: o Seine; o Nord, com a aglomeração do Lille-Roubaix-Tourcoing, que tinha minas de carvão e indústria pesada; o Moselle, que estava a viver um
boom industrial; o Rhône, com Lyons; e o Bouches-du-Rhône, com Marselha. Havia poucos argelinos envolvidos em agricultura; a maioria estavam localizados nas regiões industriais. A sua concentração nas regiões industriais só se tornou mais pronunciada nos anos 1948-1955.
A federação da FLN na metrópole reteve basicamente a mesma estrutura que o MTLD, a que pertenciam um grande número dos seus membros. A FLN dividiu o país em cinco regiões; a região de Paris e o oeste; a região norte e oriental (Longwy); a região central (Lyons); a região sulista (Marselha); a região sudoeste, ainda desorganizada em 1956. A organização tinha aproximadamente 8 000 membros em Junho de 1956, mas graças a uma melhoria no recrutamento o número de militantes registados chegava a quase 15 000 em 1957.
Os movimentos nacionalistas argelinos, aplicando o princípio que o sucesso de uma empresa é uma função dos meios financeiros que os seus organizadores possuem, devotaram os seus esforços ao desenvolvimento e aumento das suas fontes de receitas. O elevado custo das armas para as forças de guerrilha, os requesitos da acção diplomática, e o apoio a famílias de militantes que tinham sido presos ou mortos aumentava ainda mais as despesas. O desenvolvimento da organização clandestina também necessitava a instalação de novos quadros permanentes pagos pelos partidos.
Tomando o ano de 1961 como exemplo, dado o número de membros pagadores na FLN (150 000) e no MNA (10 000), e o aumento das quotas para 30 francos por pessoa, obtemos o número de 58 milhões de novos francos totais (cerca de 400 milhões de francos de 1993) para o único ano de 1961. Quase 6 biliões de centimos entraram para o único ano de 1961! Nos sete anos de guerra, aproximadamente 400 milhões de novos francos (pouco mais que 3 biliões de francos de 1993) foram obtidos dos imigrantes argelinos em França. Uma contribuição substancial, feita pela “segunda frente” do nacionalismo argelino, uma contribuição obtida ás vezes voluntáriamente, ás vezes pela força.
A Doutrina da FLN
O movimento radical pró-independência conseguiu a sua força do facto de estar localizado na intersecção de dois grandes projectos: o movimento socialista e a tradição islâmica.
No primeiro aspecto, de influência francesa, devemos referir antes de mais que o local de nascimento do movimento pró-independência (Paris em 1926) influenciou o seu desenvolvimento ideológico subsequente. A experiência francesa ensinou aos primeiros militantes radicais argelinos os modelos de organização e os princípios da ideologia socialista que eles usariam para analizar a situação da sua nação e procurar entender os mecanismos e valores de um mundo estranho; no final, essa experiência colocou-os em contacto com modelos de vida urbanos e industriais. Mas assim que tivessem regressado á Argélia, eles não poderiam entender as suas aspirações nos sindicatos esquerdistas ou partidos, que eram dominados por europeus.
Em relação á “influência francesa”, devemos também notar que a maioria dos quadros nacionalistas na FLN estavam desenraízados, cortados das suas origens sociais e integrados de uma maneira que frequentemente os levava a tornarem-se “revolucionários profissionais”. O movimento tinha poucos líderes camponeses ou intelectuais. Para a maioria, no entanto, estes líderes eram mais cultos e melhor informados que a maioria da população argelina. Muitos tinham andado em escolas francesas, e tinham completado a escola primária. É uma ironia da história que o sistema escolar francês, que se via como assimilador, na verdade parece ter aberto caminhos de críticas e libertação.
Nas mesas das escolas francesas na Terceira Républica, o credo républicano e os episódios da “Grande Revolução” de 1789 deixaram uma forte impressão nas mentes de muçulmanos argelinos que se tornariam nacionalistas. A sua curiosidade sobre a História de França era suportada por uma esperança; eles estavam interessados porque sentiam-se roubados da sua própria liberdade. Uma França abstracta com princípios universais contrastava com a França temporal. Essa concepção continuou a ser defendida durante os anos da Guerra da Argélia, como esta carta de prisão prova, escrita por Mohammed Marbi Madi, um líder da FLN: “Eu confesso-te que sou cada vez menos capaz de separar a França real da França legal. Eu procuro a França que aprendi na escola, e encontro-a apenas em alguns franceses, que, na verdade, têm vergonha de serem franceses, no que diz respeito á Guerra da Argélia”.
Em relação ao segundo factor principal, o islâmico, temos primeiro que explicar que quase todos os argelinos na primeira metade do século XX permaneceram fiéis ás tradições religiosas dos seus antepassados. Essa fidelidade era composta por relíquias sociais e hábitos, uma ligação a práticas onde a conformidade tinha um papel tão grande quanto o da convicção pessoal. As políticas de pró-independência reactivaram o factor religioso. O Islão era tanto uma ideologia de combate como um projecto social. A reaquisição dos termos e direitos fixados pelo tempo, o cada vez maior “paraíso” perdido das origens, tornaram-se cada vez mais vitais através da religião. A prometida revolução pró-independência ainda tinha certas características das revoltas baseadas em esperanças milenárias, ou dos tumultos por subsistência. Este tipo de ideologia nacionalista produziu uma recusa em se comprometer com o mundo existente. Um acontecimento central, independência, era o momento á muito esperado, o sentido de um futuro e especialmente de um presente puro. Os militantes argelinos exprimentaram as instituições coloniais nas quais eles eram destinados a viver não como fundadas na razão mas perfeitamente arbitrárias.
O mérito histórico dos líderes que iniciaram a insurreição em Novembro de 1954 foi o de, através das armas, desbloquearem o
status quo colonial. Eles permitiram que a ideia de independência encontrasse substância para milhões de argelinos. Mas, como o sociólogo argelino Abdelkader Djeghloul (1990) nota, “a guerra iniciou um processo de destruição do capital da experiência democrática e da política moderna, que as diferentes organizações políticas tinham começado a acumular antes de 1954”.
A FLN, ciente das contradições que a atravessavam, constantemente se refugiava na emergência táctica: acabando com convicções, mobilizando a energia existente para a causa da independência, enquanto que adiava qualquer exame das particularidades. Essa concepção de uma sociedade indiferenciada “guiada” por um único partido impeliu uma visão particular da nação. Após a independência, um bloco inseparável, a nação, era vista como uma figura unificada, unânime e indissociável.
O tema do “povo unido” reduzia a ameaça de agressão externa (afrancesamento, assimilação) e desintegração interna (regionalismo, particularismo linguístico). Este último tinha principalmente a ver com a “questão berbere”, que foi desconsiderada no estabelecimento das instituições nacionais no período pós-guerra. O recurso ao populismo aumentou o abismo entre a sociedade real, que era social e culturalmente diversa, e sistema político de partido único, forjado principalmente durante a segunda parte da guerra, entre 1958 e 1962. Em Dezembro de 1957, o assassínio de Abbane Ramdane (o organizador do Congresso de Soummam que tinha defendido a supermacia dos “políticos” sobre os “militares”), ordenado por outros líderes da FLN, abriu caminho para o domínio político do nacionalismo argelino feito pelos “exércitos da fronteira”. Após a construção das barreiras ao longo das fronteiras marroquino e tunisinas, o Exército estava acampado fora do território argelino. Liderado por Houari Boumédienne, a sua importância e o seu papel aumentaram a partir de 1958.
A Acção Internacional da FLN
Os nacionalistas argelinos perceberam o risco de se encontrarem frente-a-frente com a formidável máquina-de-guerra francesa. Muito rapidamente, eles tornaram-se cientes da necessidade de alargarem a sua audiência ao nível internacional. A luta armada era assim combinada com acção política e diplomática. O objectivo era o de alertar o público de todo o mundo para a causa da independência argelina, interessar governos estrangeiros e mobilizar autoridades internacionais como a ONU e a Cruz Vermelha. Essa internacionalização do conflito, desejada pela FLN, permitiria que esta encontrasse apoio material (envios de armas, especialmente de países de Leste), e apoio moral (pressão sobre França em relação á sua política argelina).
Desde o início do conflito em Janeiro de 1955, os membros da Liga Árabe, especialmente o Egipto e a Arábia Saudita, dirigiram a atenção do Conselho de Segurança da ONU para a gravidade da situação na Argélia. A Conferência de Bandung de nações não-alinhadas em Abril de 1955 ouviu os comunicados dos líderes argelinos. Em Setembro do mesmo ano, a ONU colocou o problema dos “acontecimentos da Argélia” na sua agenda pela primeira vez. Em Julho de 1956, a Union Générale des Travailleurs Algériens, ou UGTA (União Geral dos Trabalhadores Argelinos), um sindicato ligado á FLN, foi reconhecida pela ICFTU (International Confederation of Free Trade Unions - Confederação Internacional dos Sindicatos do Comércio Livre), ultrapassando o seu concorrente, a Union des Syndicats des Travailleurs Algériens, ou USTA (União dos Sindicatos dos Trabalhadores Argelinos), gerida por militantes do MNA. Ao mesmo tempo, a Union Générale des Étudiants Musulmans Algériens, ou UGEMA (União Geral dos Estudantes Muçulmanos Argelinos), activamente participou em diversos grupos culturais mundiais e desenvolveu uma intensa campanha de propaganda.
Dessa maneira, o Congresso de Soummam em Agosto de 1956 estabeleceu as acções internacionais da FLN: “Externamente, procurar o máximo apoio material, moral e psicológico. Entre os governos do Congresso de Bandung, incitar a intervenção da ONU assim como pressão diplomática (...) sobre a França”. Em 1956, quando a ONU mais uma vez pôs a questão argelina na sua agenda, delegações da FLN partiram em missão: para a Europa de Leste (Berlim Oriental, Praga), Europa Ocidental (Bona, Roma, Londres), os Estados Unidos (Nova Iorque), China, Índia e América Latina.
Os dois acontecimentos que acelararam e alargaram a internacionalização do conflito argelino foram o desvio do avião dos líderes da FLN a 22 de Outubro de 1956, e o bombardeamento francês da aldeia tunisina de Sakiet-Sidi-Youssef a 8 de Fevereiro de 1958, que teve um efeito emocional particularmente forte na opinião pública mundial. Na véspera da queda da Quarta Républica, a França encontrou-se a ser criticada pela ONU. A solidariedade atlântica e europeia era muito incerta em relação á questão do Norte de África.
Ao fazer a guerra contra a França, os nacionalistas argelinos conceberam uma “diplomacia de guerrilhas”. Desde o início, eles construíram um
apparatus diplomático, uma apresentação externa que continuaria a funcionar efectivamente após a independência em 1962.